Quando se está passando por uma forte crise emocional, a sensação do desamparo contamina tudo. Parece que o mundo perde a graça, as referências de sempre ficam machucadas e, sobretudo, não há saídas até onde a vista alcança.
O que acontece no terreno pessoal vale, grosso modo, para a vida social e política. Andei pensando como deveria se sentir um democrata genérico nos anos 30 do século passado. Fase em que a razão estava em estado de choque. A extrema-direita avançava em muitos países. No Brasil, os galinhas verdes andavam assanhadíssimos. Burguesias europeias, assustadas com os ecos da Revolução Russa, apoiavam grupos nazistas e fascistas para formar diques de contenção contra as organizações dos trabalhadores. Enormes manifestações de massa na Alemanha nazista encantavam congêneres a mancheias. A maré montante reacionária deve ter desanimado/deprimido o pacífico democrata. O que fazer?
Se alguém imaginou que há uma onda mundial semelhante hoje em dia, não errou muito o alvo. Crescimento de gastos militares (US$ 2,5 trilhões ao ano, mais de 40% concentrados nos Estados Unidos), xenofobias à tripa forra, crise de hegemonia dentro do capitalismo, fortalecimento de grupos neonazistas, novas tecnologias massificando desigualdade, exclusão e desespero. À diferença dos anos 30, não há um contraponto revolucionário para enfrentar a barbárie. Como resistir?
Para não se cair no imobilismo ou no cinismo, acho útil lembrar de atos de resistência em conjunturas adversas. É possível, e necessário, dizer não. Quero, a propósito, compartilhar uma descoberta recente. O fato aconteceu na Holanda, há 84 anos.
Invadida pelo exército alemão, a Holanda capitulou em maio de 1940. Não demorou muito e o modelo hitlerista começou a ser replicado, com a ajuda de quinta-colunas locais. Legislação antissemita, repressão às organizações de esquerda. No início de 1941, mais de 400 judeus de Amsterdam foram presos e deportados para o campo de concentração de Buchenwald. Agressões antijudaicas nas ruas eram frequentes.
As deportações motivaram uma resposta liderada pelo proscrito Partido Comunista Holandês. Os comunistas convocaram uma greve geral para protestar contra as perseguições antissemitas. Redigiu-se um panfleto onde se convidava os moradores da capital holandesa a paralisarem a cidade por um dia. No dia 25 de fevereiro de 1941, uma terça-feira, calcula-se que cerca de 300 mil pessoas paralisaram suas atividades. Foi ali, nas ruas holandesas, que brotou, exuberante, um exemplo de solidariedade e camaradagem que estão na base do projeto político da esquerda revolucionária.
Pegos de surpresa, os nazistas temeram que as manifestações se alastrassem e se transformassem no embrião de um levante geral contra a ocupação. A repressão foi selvagem. Houve mortos e feridos. Dezoito grevistas foram presos e executados. De acordo com o historiador Jacob Presser, houve, além da repressão policial, um segundo elemento de pressão contra a greve.
Membros do Conselho Judaico local pediram aos grevistas que interrompessem as manifestações, que se prolongaram por dois dias. Temiam que, enfurecidos, os nazistas recrudescessem a perseguição antijudaica. Achavam melhor a passividade, “esperar até as coisas esfriarem”. Anos depois, lideranças judaicas no gueto de Varsóvia repetiram a mesma postura quando souberam que jovens de várias tendências políticas estavam organizando a luta que levaria ao levante armado, em abril de 1943. “Melhor não provocar os alemães”, dizia Adam Czerniakow, presidente do Judenrat, o Conselho Judaico do gueto.
Não é meu objetivo polemizar sobre qual seria a melhor estratégia em ambos os casos. Meu interesse é registrar que, mesmo em condições dolorosamente desfavoráveis, é possível reagir às opressões. Individuais e coletivas. Cada pessoa, cada povo, escolherá a melhor forma de fazê-lo, levando em conta as condições subjetivas e objetivas do momento. Uma boa tradução deste espírito de luta, desta vontade de continuar, tão urgente na atualidade, está muito bem expressa no início do poema No te rindas (Não te rendas), do uruguaio Mário Benedetti.
No te rindas, aun estas a tiempo
de alcanzar y comenzar de nuevo,
aceptar tus sombras, enterrar tus miedos,
liberar el lastre, retomar el vuelo.
No te rindas que la vida es eso,
continuar el viaje,
perseguir tus sueños,
destrabar el tiempo,
correr los escombros y destapar el cielo.
Abraço. E coragem.