Sou sionista pela definição mínima e não militante do termo: sou a favor da existência do Estado de Israel, ponto. Não obstante, não me inscrevi para votar na eleição recente. Explico porquê.
Para votar, é necessário estar de acordo com o Programa de Jerusalém, uma carta de princípios do movimento sionista. A Federação Sionista Brasileira disponibilizou em seu site os pontos do Programa (1), que já havia lido há muito tempo. Chamou a atenção o último ponto, que desconhecia ou não me lembrava.
“Encorajar o recrutamento e o serviço nas Forças de Defesa de Israel (IDF) e nas forças de segurança, e fortalecê-las como a força protetora do povo judeu vivendo em Tzión, assim como encorajar o Serviço Nacional completo para qualquer pessoa isenta por lei de servir nas IDF.”
Pesquisei e descobri que este ponto foi incluído em fevereiro de 2024, quatro meses após o horrendo massacre terrorista do Hamas. Um massacre que o governo israelense sabia de seu planejamento com detalhes no mínimo 18 dias antes (2) e nada fez para detê-lo (3). Um massacre que atendia à sobrevivência política de Netanyahu e ao racismo institucionalizado de ministros como Itamar Ben Gvir e Bezalel Smotrich, e seu desejo explícito de limpeza étnica e colonização de Gaza e Cisjordânia, custe o que custar a palestinos e israelenses, sequestrados inclusive. Para tanto, entregaram as comunidades do sul nas mãos dos terroristas.
Que estes traidores necessitem de soldados em fluxo contínuo para sua guerra de destruição e ocupação, não espanta. Em número crescente, soldados regulares e da reserva se recusam a continuar combatendo (4) em uma guerra ideológica e sem mais sentido defensivo, mesmo tendo que passar um mês na cadeia. Em número crescente, soldados se suicidam (5). Mas se a OSM se mancomuna à extrema-direita israelense e emula um posto de recrutamento de um exército em sua fase mais destrutiva e que não mais se limita à defesa de Israel, não poderia me engajar nestas eleições. O apelo do bilhão de dólares que serão disponibilizados anualmente por cinco anos para dividir entre as representações no Congresso Sionista Mundial não supera o que considero uma degradação moral do oficialato sionista, cada vez mais distante de parte de suas bases.
À parte disso, fiquei contente com a vitória da chapa do Meretz (6) – alinhada à esquerda sionista israelense- no Brasil. Algo a ser melhor compreendido para além do “efeito Gaza”, em uma comunidade em que seu oficialato escolheu se aliar a governadores bolsonaristas (7) e aos evangélicos dos dólares na Bíblia (8) e seus delírios messiânicos sobre um Israel mítico. Talvez sinalize uma diferença da rua judaica em relação àqueles que pretensamente os representam.
8- disponível em 27/7/25 em https://www.conib.org.br/noticias/todas-as-noticias/37610-primeiro-forum-judaico-evangelico-reune-liderancas-da-america-latina-em-sao-paulo.html
Yokohama, 30 de junho de 2002. Há vinte anos, uma final de Copa do Mundo de arrepiar. Brasil e Alemanha nunca haviam se enfrentado antes em Mundiais, e esta primeira vez seria justamente na final. Para um amante do esporte bretão como eu, e da seleção brasileira em particular, um dia de gala e de muita tensão.
Minhas fantasias de heroísmo sempre passavam pelos gramados, desde a adolescência. Volta e meia eu me imaginava capitaneando a seleção brasileira, um camisa 10 à altura de um Zico, liderando uma virada histórica em final de Copa do Mundo, em cima de… adivinhem qual seleção. Ganhar da Alemanha seria uma vingança virtual tardia e benigna para aquele rapaz, tão judeu quanto brasileiro, que perdeu toda a família nos horrores da Segunda Guerra Mundial. Uma vingança que trocava o horror de um campo de batalha pelo frescor da grama bem aparada de um campo de futebol. Um judeu capitaneando um time de mestiços contra uma seleção alemã ainda branca…doce e prazerosa fantasia!
Assim que os dois finalistas foram anunciados, esta fantasia juvenil voltou forte naquele homem de 42 anos. Na vida real, já havia estado na Alemanha, hospedado em Frankfurt na casa de uma prima casada com um alemão não judeu, e nunca tive problemas com isso. Meus pais já haviam visitado a Alemanha a convite do governo federal e da prefeitura de Wiesbaden, cidade natal de meu pai, e foram muito bem recebidos. Em 2008 estive em Berlim com meu pai, e nos sentimos muito bem. Nunca entrei numa posição de culpa coletiva em relação aos alemães. Quanto a racismo, tenho certeza de que hoje é mais fácil ser judeu na Alemanha do que negro ou indígena no Brasil.
Não obstante, a História ecoava dentro de mim, assim como minha história familiar. Sempre li muito sobre nazismo e seus funestos desdobramentos, fenômeno alemão em sua essência. Lia e ouvia os depoimentos dos combatentes judeus nos guetos e florestas, e me imaginava junto com eles. Fui atrás da história dos judeus de Pacanów, cidadezinha polonesa dos meus avós maternos, e recebi do historiador local o relato do dia da deportação dos judeus pelos nazistas, 18 de novembro de 1942. Mulheres em final de gravidez, crianças pequenas e idosos eram fuzilados nas ruas e em suas casas, pois atrasariam a longa caminhada até a cidade de onde partiria o trem que os levaria às câmaras de gás de Treblinka, e os trens eram pontuais… ainda são. Não é um assunto neutro para mim, e nem poderia ser. Aquela final de Copa do Mundo não era um jogo qualquer.
E eis que dos pés de Ronaldo veio a vitória, e minha redenção. Desde então, nunca mais tive aquela fantasia, até então recorrente. De alguma forma, estava vingado; faltava apenas aquele ato simbólico. Naquele dia, os combatentes do gueto de Varsóvia venceram. O capitão Cafu levantou a taça e, na sua camisa, a inscrição “100% Jardim Irene” soava como se fosse meu Bom Retiro natal, afirmação de pertinência às origens deste caleidoscópio -acolhedor para uns e cruel para outros- que é o Brasil. Anos depois, assim como Caetano Veloso viu e reviu São Paulo em “Sampa”, algo semelhante se passou comigo em Berlim. Pude passear na sua garoa e curtir numa boa.
É matemático: a situação política, econômica e social piora, e lá vem gente falar em nazismo. Neste Brasil onde querem que tudo se desregulamente e se libere (surfando nas mais destrutivas pulsões), os arautos da liberdade total de expressão renovam suas investidas. E porque não um partido nazista? Se todas as linhas podem se expressar, porque não debater com nazistas? Monark, o youtuber, e Kim Kataguiri, o deputado, unidos na aparente liberdade de debater, acham errado que Brasil e Alemanha criminalizem (em graus diferentes) o nazismo. Como disse o youtuber, deixem que nazistas e judeus confrontem suas ideias! Como se os judeus fossem um partido político, e como se nazistas tem interesse em debater o que quer que seja, e não impor goela abaixo sua doutrina assassina. Estranha liberdade. E então Pondé, o filósofo inteligentinho, discorre no jornalão sobre o “equívoco do jovem liberal” (Monark), enquanto a esquerda já rotula o youtuber de nazista. Sobrou até para a deputada liberal, que confrontou apropriadamente as barbaridades ditas no programa, mas cometeu o pecado (aos olhos mais intransigentes) de se deixar fotografar com supostos nazistas.
Monark não é liberal e nem nazista: ele não é nada. Um zé-ninguém vazio de ideias e ignorante da História, retirado do anonimato pelas mídias eletrônicas. E aí é que mora o perigo: ele é massa de manobra perfeita para neoliberais e nazistas, que advogam a liberdade de expressão e de associação política e econômica totais, livres de freios e regulações institucionais. Depois que tomam o poder, a coisa muda. As SA, milícia formada pela escumalha social, uniformizada por Hitler e semeadora do terror inicial nazista, prepararam o terreno para que Krupp, Siemens e Bayer faturassem alto com contratos generosos com o regime, e com trabalho escravo em suas fábricas. Ah, a liberdade de empreender! Nazistas e empresários dançaram esta valsa por um bom tempo.
Já conhecemos alguns que faturaram alto com o nazismo, mas e quem saiu perdendo? O nazismo foi ruim para quem?
Quem já viu “A Lista de Schindler” e “O Menino do Pijama Listrado” dirá de imediato: para os judeus. Quem tiver mais leitura, ampliará para outras minorias: homossexuais, ciganos, comunistas e Testemunhas de Jeová. Fica a impressão de que, não pertencendo a estas minorias, até que o nazismo poderia passar como mais um regime totalitário, entre tantos outros.
A verdade é que o nazismo foi ruim para todos, inclusive para seus apoiadores iniciais. Assim que tomaram o poder em 1933, os nazistas inauguraram em menos de dois meses seu primeiro campo de concentração, Dachau. Uma categoria profissional que frequentou bastante este campo foi a dos jornalistas. Criticou o regime? Vai para uma temporada de “reeducação” lá. Voltavam quebrados física e psicologicamente, sem trabalho e sem jornais que os albergassem, pois tiveram redações vandalizadas pelas SA e foram fechados pelo regime. Na política, Hitler proscreveu todos os partidos políticos já em 1933, mesmo os conservadores que o apoiaram inicialmente (alô, Kataguiri!). O parlamento alemão virou monopartidário, só com a claque apoiadora do regime. Liberdade política total para aplaudir Hitler. Fim da democracia, de uma só canetada.
Então não bastava ser alemão e “ariano” para se dar bem? Nem de longe. Que o digam todos aqueles que tinham a mínima crítica ao regime. Que o digam os dirigentes das SA, assassinados em 1934 a mando de Hitler para abrir caminho para as SS, na chamada Noite das Facas Longas. Que o digam os parentes de “arianos” com deficiências físicas e mentais, vítimas do programa nazista de “eutanásia”. Em Berlim, estive no memorial do Programa T4, na Tiergartenstrasse 4 (daí o nome). Os nazistas eliminaram dezenas de milhares de deficientes físicos e mentais da “raça ariana” em câmaras de gás. Hitler queria uma “raça” perfeita, e campanhas foram feitas sobre os custos de sustentar gente “inútil”. O Programa T4 serviu como treinamento para os futuros operadores das câmaras de gás de Auschwitz e outros campos de extermínio. Quem denunciava às autoridades os destinados ao “tratamento especial” eram os próprios médicos (!!!) das vítimas. No memorial, uma escultura representa os ônibus cinza que vinham buscar as vítimas em suas casas, com janelas opacas, pintadas da mesma cor. A família era obrigada a entregar seu parente. Horror puro.
Para encerrar esta fatura macabra e autofágica, ressalto uma característica do nazismo que acrescenta horror ao já horrível infanticídio de crianças das “raças inferiores”: o filicídio. A cúpula nazista mandava os próprios filhos e netos para a morte certa, em nome do sacrifício pela raça e pela pátria. Nem me estenderei sobre o conhecido assassinato dos seis filhos do casal Goebbels, envenenados com cianureto no bunker de Hitler, a mando dos pais (que se suicidaram em seguida) e pelo médico (médico!!!) de Hitler. Dou outro exemplo menos conhecido, o das pontes de Pichelsdorf, a oeste de Berlim. Em abril de 1945, últimos dias da guerra na Europa, 5000 garotos da Juventude Hitlerista foram enviados para estas pontes, com a ordem: detenham o avanço soviético até que o exército do general Wenck chegue. Só que mentiram para eles: não havia exército salvador nenhum. O Exército Vermelho chegou lá e destroçou os jovens combatentes. Antes, ofereceram rendição, sem resultado. Abalados, os soldados soviéticos contaram estarrecidos da grande quantidade de garotos que combateram até o fim e se suicidaram para não serem aprisionados. Dos 5000, restaram prisioneiros somente 500. Sacrifício inútil, crime final de um regime filicida.
O nazismo é tudo de ruim, para todos. Reduzir o mal que fez somente para minorias é um erro. O nazismo é patrimônio histórico a ser estudado e debatido nos seus detalhes, para que nunca mais floresça. Se tentar irromper, deve ser ceifado na raiz, pela letra da lei.
Vale a pena insistir em modelos participativos de democracia em uma sociedade de raiz autoritária e escravagista, que pouco faz uso de recursos disponíveis para sua participação e que elege seus próprios algozes? Artigo de opinião de um adepto da esquerda democrática.
Trabalho de finalização do curso Democratizar a Democracia – Prof. Márcio Carlomagno – pós graduação da Escola do Parlamento da Câmara Municipal de São Paulo
“Ninguém pretende que a democracia seja perfeita ou sem defeito. Tem-se dito que a democracia é a pior forma de governo, salvo todas as demais formas que têm sido experimentadas de tempos em tempos.”
“O melhor argumento contra a democracia é uma conversa de cinco minutos com um eleitor mediano.”
Estas frases foram ditas pela mesma pessoa, o ex-primeiro-ministro britânico Winston Churchill (1874-1965). Conservador e radicalmente democrata, recusou-se a qualquer compromisso com Hitler e a ditadura nazista, mesmo nos piores momentos da guerra e contra a opinião de membros da aristocracia britânica. Ninguém mais insuspeito para defender a democracia, mesmo sabendo de suas limitações. Estas duas declarações apontam para um apoio crítico à democracia, como deveria ser todo apoio. Independente de época ou país, a experiência democrática deve ser debulhada e criticada, justamente para que seja aperfeiçoada. A jovem democracia brasileira pós 1988 não deve fugir desta prática.
Se democracia é o “governo do povo, pelo povo e para o povo” (Lincoln), é quase intuitivo valorizar as experiências de democracia participativa que ocorreram e ocorrem, no Brasil e no mundo. Partindo do pressuposto de que a melhor forma de democracia é a representativa, nada mais lógico que se criem formas de participação popular que incluam os diversos setores da sociedade civil, organizada ou não, nas consultas e deliberações dos representantes do povo, legitimamente constituídos pelo voto.
Um dos principais pensadores e divulgadores da democracia participativa, Boaventura de Souza Santos (Portugal, 1940) destrincha esta modalidade de modo consistente, na teoria e na prática, como a principal concepção não-hegemônica de democracia na segunda metade do século XX. Por exemplo, debruça-se com especial atenção a um exemplo de sucesso que vem do Brasil, quer seja, o Orçamento Participativo implantado em Porto Alegre (RS) a partir de 1989, inspiração para experiências semelhantes em várias outras cidades, do Brasil e do mundo1. A própria população decidindo onde alocar recursos públicos (dentro da disponibilidade finita) através de fóruns regionais e temáticos é prática testada e aprovada, prova de que é possível uma democracia de massas, ao menos em âmbito regional.
Não obstante o bom exemplo de várias cidades brasileiras com esta prática, a realidade nacional atual aponta para outra direção. A eleição de um populista de extrema-direita como Jair Bolsonaro à presidência da República (2018) foi opção por uma política social e econômica de caráter excludente, antecipada antes mesmo das eleições. A ausência de debate, a ênfase em pautas morais e religiosas, o então futuro superministro da economia antecipando sua vontade de acabar com a previdência solidária e substituí-la por sistema de capitalização, já indicavam que políticas participativas passariam longe de sua gestão. Esta escolha estendeu-se a muitos governos estaduais (2018) e municipais (2020), com eleitos pouco comprometidos na prática com opções participativas já estabelecidas regimentalmente.
Não é o caso de elencar as várias causas da vitória de uma elite política alinhada com um governo de poucos para poucos. As ciências sociais e mesmo a psicologia já disseram muito a respeito. O desgaste do Partido dos Trabalhadores, iniciado com a crise econômica de 2014 e que culminou com o impeachment da presidente Dilma Rousseff e a prisão do ex-presidente Lula, são fatos importantes neste enredo, mas não explicam tudo. Não obstante, volto meu olhar para uma experiência pessoal: vários amigos e parentes de classe média, com boa formação educacional e acesso à informação, fizeram esta escolha. Ignoraram todos os indicativos de um candidato com nítidas aspirações antidemocráticas. Como encaixar isto dentro das teorias da democracia?
Neste escopo, é inevitável pensar na concepção de democracia de Johann Schumpeter (Áustria, 1883 – EUA, 1950). Em 1942, desgostoso com a adesão das massas ao nazismo, propôs teoria reducionista em que limitava a democracia à prática eleitoral, sem abrir espaço para a participação do povo, de quem desconfiava e mesmo temia2. Luiz Felipe Miguel assim sintetiza:
“O ponto crucial da crítica schumpeteriana está aqui: as pessoas não sabem determinar o que é melhor para elas, quando estão em jogo questões públicas. Não há uma vontade do cidadão, só impulsos vagos, equivocados, desinformados. Segundo o economista austríaco, o indivíduo médio desce para um patamar mais baixo de racionalidade quando entra no campo da política. Em suma, mesmo que possa cuidar bem dos seus negócios pessoais, não sabe tratar de assuntos públicos3.”
Schumpeter delegava a condução da política a uma elite, cabendo às massas o papel de claque votante. Ao cidadão cabe apenas escolher entre alternativas eleitorais, sem necessidade de qualquer engajamento em outros processos que não as eleições. Uma democracia elitista e baseada somente no procedimento eleitoral porta uma contradição em si: se é elitista, não pode ser verdadeiramente democrática. Carregando um pouco mais nas tintas, soa mesmo como demofobia.
Esta concepção elitista e procedimental de democracia é compreensível se pensarmos na época em que Schumpeter a formulou, sob o rufar dos tambores das hordas nazistas marchando em passo de ganso. Não obstante, podemos ver semelhanças com a atual situação brasileira, mesmo estando nós sob regime constitucionalmente democrático. Ao colocarmos no poder um presidente que nunca escondeu que gostaria de governar sozinho, com Legislativo e Judiciário cooptados, colocamos em risco o engajamento em instâncias consultivas e decisórias características de uma democracia participativa e inclusiva, delegando às elites políticas o efetivo exercício do poder. É como se concordássemos tacitamente com as concepções pouco lisonjeiras que Schumpeter fazia do eleitorado, ou seja, de nós mesmos. De certa forma, nosso presidente também é schumpeteriano: desde o início de seu mandato, ele só pensa naquilo, ou seja, na próxima eleição e na sua possível reeleição. Democracia procedimentalista, lato sensu… Ironia à parte, revela uma elite política cujo maior projeto -se não o único- é a perpetuação no poder, um paradoxo possível dentro da democracia elitista de Schumpeter. Uma democracia que contém em seu bojo a essência de sua própria destruição.
Para finalizar, repito a frase de Churchill: “O melhor argumento contra a democracia é uma conversa de cinco minutos com um eleitor mediano.” A imagem que ilustra este artigo veio da Av. Paulista, em manifestação pelo impeachment de Dilma Rousseff, em 2016. A mulher com aspecto de classe média branca ostenta um cartaz duplamente interessante. “Luto pelo fim da democracia”, ato falho revelador: luto substantivo ou verbo? “Intervenção militar já”. Abre-se mão do regime vigente para se colocar sob a tutela da elite militar, que viria para supostamente salvar uma democracia corrompida que, para esta mulher, é moribunda. Contra estas forças do retrocesso, é mister fincar o pé no nosso embrião de democracia participativa. Independente da qualidade da elite, a alternativa pode ser bem perigosa à própria democracia. E que eu, supostamente mais esclarecido do que a mulher da foto, não caia na tentação de me considerar membro de uma elite. É o primeiro passo para ser cooptado pelos verdadeiros donos do poder.
Referências
SANTOS, Boaventura de Souza; AVRITZER, Leonardo. Para ampliar o cânone democrático. In: SANTOS, Boaventura de Souza (Org.). Democratizar a Democracia: os caminhos da democracia participativa. Capítulo 10. Orçamento Participativo em Porto Alegre: para uma democracia redistributiva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
SCHUMPETER, Joseph. Capitalismo, Socialismo e Democracia.Rio de Janeiro: Zahar, 1984.
Miguel, Luis Felipe. A democracia domesticada: bases antidemocráticas do pensamento democrático contemporâneo. Dados [online]. 2002, v. 45, n. 3 [Acessado 27 Novembro 2021] , pp. 483-511. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S0011-52582002000300006>. Epub 17 Mar 2003. ISSN 1678-4588. https://doi.org/10.1590/S0011-52582002000300006.
A gente chega numa idade e a ficha cai: não adianta lutar por um mundo melhor, por mais justiça social, pelo fim da fome, e outras causas nobres. O ser humano é um predador sob qualquer regime político e em qualquer época, e sempre será. O Brasil apenas confirma a regra. Hoje, se eu e minha família estamos bem, é o que importa. Defendo minha família, e o resto que se vire (pra não dizer outra coisa). Incluo no máximo alguns amigos, desde que não me peçam dinheiro.
Vivemos bem em nosso condomínio, geladeira cheia e todas as benesses de uma vida confortável, mas não significa que não tenho preocupações. Exponho a seguir duas delas, e dou soluções.
Violência é uma delas. O número de roubos, assaltos, sequestros e mesmo latrocínios em meu bairro e cercanias é crescente. E vejam que nosso bairro é muito bem policiado, polo turístico da boemia e culinária, ótimos serviços. Pesquisei qual a melhor solução, e encontrei-a em passado recente. Durante o governo municipal de Marta Suplicy (2001-2005), quando ainda estava no PT, a prefeitura de São Paulo investiu pesado na periferia pobre da cidade. Saúde, educação, lazer, essas coisas. Dado interessante, comprovado por números: quanto mais investia na periferia, mais caía a criminalidade na cidade toda, em todas as modalidades de crimes, inclusive nos bairros ricos. Acho esta uma boa solução para diminuir a criminalidade em meu bairro.
Água. Com certeza vai faltar, e ficará mais cara. A energia de matriz hidrelétrica, também. Nosso condomínio pode pagar caminhões-pipa, mas prefiro usar este dinheiro para obras de melhoria em nosso prédio. Fui pesquisar a causa da crescente falta de chuvas, e uma das principais é o crescente desmatamento da Amazônia. Caminham em paralelo. A evapotranspiração do bioma amazônico é fundamental para regular o ciclo de chuvas no resto do país. Logo, a solução está em parar o desmatamento e reflorestar a área desmatada ilegalmente. A Polícia Federal e as Forças Armadas podem ajudar a expulsar os invasores. Acho esta uma boa solução para gastar meu dinheiro na reforma da sala de ginástica do meu prédio, ao invés de caminhões de água e contas de luz na bandeira vermelha.
Ironias à parte, estas soluções são verdadeiras e funcionam. Poderia prosseguir com outros exemplos, mas paro por aqui. Soa óbvio que investir no coletivo melhora a vida dos indivíduos e famílias, mas as dificuldades empurram muitos para soluções apenas individuais. Tem gente boa que, descrente da política, acha que consegue dar conta de tudo no âmbito individual. Não dá, e cada vez menos. E mesmo que dê, que tenha vida confortável, que país é esse que estamos deixando para filhos e netos? Imagino a decepção e o descrédito de quem votou num governo que não tem projeto algum para o país, e cuja palavra de ordem para toda sorte de desgraças que cria ou amplifica é “e daí?” Para um presidente que, em rede nacional, exalta a própria forma física como (falso) antídoto para um vírus perigoso, e que se dane quem não é atleta. Para um ministro da economia que quer extinguir o modelo solidário de aposentadoria e implementar regime de capitalização, em que cada um faz sua poupança, e quem não consegue fazer, que se dane. Somente falsas soluções individuais para questões coletivas, e colocadas de forma mentirosa. Sequer serviriam para síndico e conselho gestor de meu prédio, quanto mais de um país. Não sabem e não querem pensar no bem coletivo. E quem pensa somente no próprio bem estar está a um passo de colocar no poder aqueles que também pensam assim, mesmo que jurem colocar o país acima de tudo. Portas abertas para a barbárie da lei do mais forte, sem qualquer proteção para os mais fracos. E os mais fracos somos todos nós, mesmo que não percebamos.
Entre civilização e barbárie, não existe terceira via. Que saibamos identificar quem está em qual campo, e que rechacemos juntos a barbárie em todos os níveis. Ainda é tempo.
Vi esta inscrição algumas vezes, em portas de banheiros de dois cursinhos pré-vestibulares diferentes, em 1977 e 1978. Na face interna da porta e à altura de quem estava sentado, certamente fazia parte do que melhor seus autores conseguiam produzir, em lugar apropriado para excreções e excrescências. Esta frase ficou registrada em minha memória, e voltou à tona nestes últimos tempos. Brincadeira com fundo elogioso para a competência de muitos orientais (“japoneses”) nos vestibulares? Demonstração potencialmente perigosa de inveja assassina? Ambos?
Vivíamos sob a ditadura, ainda sob o tacão do AI-5, com abertura incipiente sob ameaça da linha dura do exército. Ainda “falando de lado e olhando pro chão” (Chico), pichações e inscrições feitas às escondidas eram formas de expressão frequentes. No Brasil onde o mito da democracia racial era cantado em verso e prosa pela ditadura de modo imperativo, manifestações de intolerância contra minorias eram abafadas. Falava-se de lado do “japonês do Geisel”, o ministro das Minas e Energia Shigeaki Ueki, depositário de preconceitos contra esta minoria. O ministro seguinte da mesma pasta, César Cals, foi questionado por constar em relatório secreto que vazou de seu ministério em 1980, que “setores da comunidade judaica” faziam parte daqueles que orquestravam uma suposta campanha contra o programa nuclear brasileiro. É claro que a imprensa (sempre ela) também foi acusada pelo complô, mas tudo isso era rapidamente abafado naquele Brasil-país-do-futuro. Parafraseando o general-presidente Figueiredo, “quem negar que somos uma democracia racial, eu prendo e arrebento!”
Na esteira destas recordações, vieram outras. Em 1978, quando o professor de História do cursinho falou na política genocida de Hitler, um colega coreano se vira para mim e diz: “se Hitler fez isso com os judeus, é porque alguma coisa eles fizeram”. Retruquei com a mesma violência: “e se o Japão fez o que fez com os coreanos durante a guerra, é porque alguma coisa eles fizeram. É isso?” No ano seguinte, um colega de turma da faculdade, também coreano, quando soube que eu era judeu, abriu um sorriso e falou de sua admiração pelo povo judeu: “90% dos Prêmios Nobel vão para os judeus!” Apenas sorri, sem contestar sua falsa estatística, inflada às alturas. Com pouca diferença de tempo e vindo de duas pessoas do mesmo extrato minoritário e faixa etária, duas falas distintas que se unem pelo preconceito para com outra minoria. Da culpabilização das vítimas à idealização fantasiosa, são faces opostas da mesma moeda. Como não lembrar de Martinho Lutero? Ao iniciar sua Reforma, tinha opinião positiva sobre os judeus. Em “Que Cristo Nasceu Judeu”, disse que, se os judeus ainda não aceitaram Cristo como messias, é porque a Igreja Católica sempre os maltratou e excluiu. Com o tempo, ao constatar que os judeus não adeririam à sua igreja reformada, virou um antissemita furibundo. Textos dele como “Os Judeus e suas Mentiras” foram citações constantes nas campanhas nazistas. Eis um bom exemplo de como, a depender da época e das circunstâncias, o preconceito inicialmente positivo muda de sinal, com consequências funestas. O ódio pode vir embrulhado em belas embalagens. Quando abertas, pode ser tarde.
Ódio este que, com o governo Bolsonaro, saiu do armário. E saiu orgulhoso de sua ignorância e macheza, com armas à mão e munição de sobra, estimulados e acobertados por um sociopata que usa e abusa do discurso violento contra todos que se opõem a ele. Basta abrir os jornais e ver a quantidade de negros, indígenas, transexuais e mulheres que morrem quase todo dia de modo violento, além das ameaças constantes a seus desafetos. Este é o clima. Com a pandemia, veio também o preconceito contra orientais, acusados de disseminar o “vírus chinês” e lucrar com sua “vachina”, discurso de Trump, ídolo confesso de Bolsonaro. O capitão não inventou o racismo e a misoginia, mas joga lenha na fogueira da intolerância quase todo dia. Triste constatar também que tem judeus que ainda se iludem com a face oposta da moeda do preconceito com que o capitão joga. O Bolsonaro “amigo dos judeus”, que empunha a bandeira de um Israel superior, criação de delírios religiosos, é tão sincero quanto o recente “amigo dos índios”, cocar à cabeça, ao lado de índios recrutados para a pantomima. Ainda não perceberam que os únicos amigos de Bolsonaro são seus filhos, e que os aliados de hoje podem ser descartados a qualquer hora. Quanto aos judeus que se sentem lisonjeados pela “amizade” do capitão, certamente inflariam o peito de orgulho com os “90% de Prêmios Nobel” de meu colega de faculdade. Não aprenderam a lição da História, a melhor das professoras, de que vestir a fantasia de Povo Eleito pode, em outras épocas, elegê-los para o pior dos mundos.
Para finalizar, volto às privadas e suas descargas de ódio. Aquelas inscrições sugerem uma meritocracia às avessas, que dispensa esforço: vence quem elimina seu concorrente, literalmente. Hoje, teriam que eliminar também cotistas, algo que só alimenta seu ódio aos diferentes. Cotistas que, aliás, se saem muito bem ao final dos cursos, na comparação com seus colegas não cotistas. Na era das redes sociais, nunca foi tão fácil culpar os diferentes pelas próprias dificuldades, algo bem menos trabalhoso do que, por exemplo, participar da luta pela defesa do ensino público gratuito. O ódio está ao alcance dos dedos. Nas mãos de populistas como Bolsonaro, o ódio é combustível para se manter no poder, ao culpar os bodes expiatórios da ocasião pela própria incompetência. Estejamos atentos para o ódio, em suas mais diversas embalagens e disfarces.