Samba Perdido – Capítulo 22

 Capítulo 22

” … dizer que o pior aconteceu,

Pode guardar as panelas

Que hoje o dinheiro não deu.”

Paulinho da Viola – Pode Guardar as Panelas

 

Os ônibus que partiam de Ipanema rumo ao centro cruzavam primeiro por Copacabana para depois sair da Zona Sul pelo Túnel Novo. Do outro lado, passavam pelo Shopping Rio Sul, pelo teatro do Canecão e pelo campo do Botafogo antes de virarem à esquerda em direção à praia de mesmo nome. De lá, beiravam a Baía de Guanabara seguindo em direção a um mundo de escritórios e de repartições públicas. No meu primeiro dia como estudante universitário me senti bem pegando o ônibus 511 que seguia a mesma rota, mas que depois do Túnel Novo pegava a direita para entrar na pacífica Praia Vermelha, terra do Iate Clube e dos quartéis mais ilustres do exército.

Enquanto o ônibus enfrentava o eterno congestionamento da Avenida Nossa Senhora de Copacabana, comecei a pensar sobre o ciclo que estava prestes a começar. Nas minhas divagacões, me dei conta de que não sabia o que esperar de um curso de Economia nem dos meus colegas. Fiquei curioso. Foi estranho saltar do ônibus em frente à Universidade Federal do Rio de Janeiro, a UFRJ, e entrar no campus. Já tinha passado por ali milhares de vezes mas nunca imaginei que um dia fosse estudar naquele lugar bonito. 

Ao cruzar o portão descobri um lugar tranquilo, com árvores bem cuidadas margeando ruazinhas sem trânsito separando construções bem preservadas do século passado. Originalmente, o prédio da faculdade tinha servido como um hospício, agora transferido para um prédio mais moderno dentro do campus, o famoso Pinel. Em pouco tempo estaria me deparando com enfermeiros correndo atrás de pacientes em fuga entre os carros estacionados e nos corredores da faculdade.

As salas eram maravilhosas, amplas e bem preservadas. Elas tinham sido o ninho da resistência estudantil à ditadura militar nos anos 60. A União Nacional do Estudantes (UNE) havia organizado muitos dos seus encontros cruciais em um dos patios internos daquela faculdade, num anfiteatro semiaberto, o Teatro de Arena. A maioria dos estudantes que haviam optado pela resistência armada tinham tomado suas decisões ali nos mesmos corredores e salas que estavam prestes a nos receber.

O legado político do prédio ainda estava vivo. Mesmo em 1981, ainda circulavam rumores de que alguns colegas eram policiais disfarçados – a carapuça servia, mas não dava para saber. O diretório central dos estudantes, o DCE, era agitado. Suas assembleias eram frequentadas por trotskistas, leninistas, maoístas e anarquistas, bem como membros dos partidos recém-formados, como o PT e o PDT, herdeiro do histórico PTB de Getúlio Vargas. Havia também gente ligada a movimentos mais antigos e barra pesada como o MR-8 e o Partido Comunista bem como aqueles militando pela ecologia, pelas nações indígenas e pela diversidade sexual.

O pau quebrava no centro acadêmico. Havia arranca-rabos sérios por quase tudo; como, por exemplo, qual deveria ser a postura do diretório dos estudantes perante a invasão soviética no Afeganistão? qual partido comunista representava de verdade as massas, o PCB ou o PCdoB? quem melhor expressava as aspirações do povo, Lenin, Trotsky, Mao, Bakunin ou Marx? Essas divergências teóricas insuportáveis faziam com que a experiência de se envolver em política estudantil parecesse com a de se pertencer ao clero. 

*

Longe das questões teóricas da faculdade, a situação política do país era assim: A utopia revolucionária dos Cubanos estava morta. Ninguém mais acreditava nela, nem a queria e seu pai rico, a União Soviética, estava falido e há muito tinha parado de investir em levantes populares. Seu envelhecido arqui-inimigo, o regime militar, estava em seu leito de morte. Apesar de tudo isso, depois de quase duas décadas de regime militar e com uma situação econômica em declínio, havia um descontentamento generalizado nas ruas e a sensação de que uma reviravolta estava por vir.

O objetivo das militâncias ainda era o de transformar ou mesmo substituir o capitalismo. O problema era que o arcabouço teórico da esquerda, que havia inspirado múltiplas gerações antes e depois das duas guerras mundiais, já não fornecia respostas suficientes para a situação atual. O sistema econômico e tecnológico tinha se tornado muito mais complexo do que quando aquelas obras tinham sido escritas. As antigas teorias não explicavam o fracasso dos regimes ditos comunistas, tanto a nível de apoio popular quanto a nível de prover um nível de vida satisfatório. Em contraste, havia o inexplicado sucesso estrondoso das democracias liberais no pós-guerra que, além de fornecer liberdade de expressão, trouxe melhorias substanciais para todas as classes sociais. Ademais, havia várias questões que passavam ao largo do tema central da esquerda: a luta de classes, como o equilíbrio ambiental, as relações humanas, a saúde física e mental da população, entre outras. 

Essa paralisação teórica continuou afetando as forças progressistas até o dia em que estas palavras foram escritas.

*

Embora impopular e praticamente inexistente no Brasil na época – principalmente na faculdade de Economia da UFRJ – a ideologia de direita estava se apresentando como uma alternativa ideológica inovadora. Seus novos defensores queriam levar o mundo a um estágio de desenvolvimento radicalmente avançado, parecido com o que se via em ficções científicas. Para conseguir isso acreditavam que se deveria deixar o terreno livre para o mercado; uma máquina irretocável, impessoal, apolítica e por isso extremamente dinâmica.

A frase que melhor definia sua visão era a da Margaret Thatcher: “a sociedade não existe.” Para eles, o egoísmo era a mola mestre do mundo. Se esquecessemos que o ser humano é um animal social e nos concentrassemos no “necessário” – sobreviver e ficar rico – estariamos livres para levar nossos talentos até o limite, sem impedimentos. Uma lei da selva benévola cuidaria para que cada um recebesse a porção merecida dependendo da sua capacidade e do seu esforço. Apostando na concorrência e na vitória da competência, todos sairiam ganhando já que todos dariam o melhor de si e obteríamos os melhores resultados possíveis. De quebra, nos veríamos livres da ineficácia dos Estados.

É claro que nessa corrida a maioria correria descalça enquanto uma minoria correria de Ferrari. As grandes corporações sairiam na frente e, sem ninguém para confrontá-las nem se preocupar com o bem comum, teriam liberdade completa. Imporiam os salários que entendessem, poluiriam o que quisessem, desalojariam, demitiriam e abusariam quem bem entendessem. Não haveria escolas públicas, hospitais públicos, políticas de desenvolvimento, ou qualquer outro esforço para o interesse da população em geral, apenas o mercado e a geração irrefreável de lucro. 

Em 1973, essa escola tinha tomado o poder na ditadura do Pinochet, no Chile, e nos anos 80 estava se espalhando como fogueira no dito mundo civilizado. Seus principais expoentes estavam sendo homenageados por governos e ganhando prêmios Nobel. Choques neoliberais estavam sendo introduzidos no Reino Unido e nos Estados Unidos enquanto regimes comunistas na Europa do Leste, o bloco soviético e o regime chinês se estavam sendo asfixiados econômicamente. Uma reviravolta parecida estava acontecendo no mundo acadêmico onde em breve as palavras socialismo, e principalmente comunismo, se tornariam como sinônimos de lepra, completamente rejeitados em faculdades “respeitáveis”.

Alem das grandes corporações e do mercado financeiro, agraciados com grandes reducões de impostos para se tornarem mais competitivos, a desregulação econômica agradaria a muitos nas classes médias. Com privatizações pipocando a torto e a direita fazendo as bolsas dispararem, muitos enriqueceram com isso. No Reino Unido, por exemplo, o governo vendeu conjuntos habitacionais e muitos dos antigos inquilinos conseguiram se tornar proprietários pela primeira vez em gerações.

Mesmo assim, pelos quatro cantos do planeta, a maioria da população foi sugada para dentro da pobreza. Países periféricos interessados em manter suas “vantagens comparativas” passaram a oferecer mão de obra com salários de fome como seu principal atrativo econômico às grandes corporações. Essa política criaria bolsas gigantescas de gente que não conseguia manter o seu sustento apesar de trabalhar o mais duro que podiam. Todos na ilusão de um dia ficarem ricos. Grande parte da população nos paises ocidentais veria seus empregos irem para recantos com salários mais “competitivos” no outro lado do mundo. Por outro lado, a diferença entre o que os executivos ganhavam e o que os escalões mais baixos ganhavam saltaria de 12 para 700 vezes. Com balanços positivos nas grandes corporações e suas ações subindo nas bolsas mas com o poder de compra muito reduzido devido aos arrochos salariais as economias neoliberais se acabariam se tornando menos competitivas que as economias mais planejadas como a russa, a chinesa e mesmo a Alemã. 

Conforme a verdade foi demonstrando que o dinamismo prometido pelos profetas do liberalismo era inexistente, a manipulação e até a fabricaçāo da realidade se tornariam cruciais. O principal inimigo do sistema se tornaria o pensamento crítico, nossos sonhos, nossa vontade de sermos livres da opressão do mercado, o índio nu na floresta que não sabia o que era dinheiro, a solidariedade a quem não trazia vantagem nenhuma e tudo mais o que não endeusasse o lucro privado. 

Para eles quem tinha que mudar éramos nós, não o sistema. Para nós, não havia nada de errado com ninguém, o que tinha que mudar era justamente o sistema. O conceito mais pernicioso do agora discurso oficial era a mentira de que nada poderia ser feito diferente. Tal como os indígenas brasileiros ensinados pelas missões evangelizadoras que seu mundo era errado e que para salvar suas almas precisavam aceitar o seu fim em prol do cristianismo e do mercantilismo por trás dele, os defensores do novo pensamento diziam que população tinha que se adaptar a Moloch ou desaparecer.

*

A Faculdade de Economia e Administração da UFRJ – a FEA – não era de esquerda própriamente dita. Sua linha era desenvolvimentista com conexão direta à CEPAL, Centro de Estudos Para a América Latina, erguida pelos governos democráticos no pós-guerra para achar soluções para o continente. Nossos professores mais influentes eram Keynesianos e defendiam uma aliança entre governo e capital privado para desenvolver o país. Os Estados Unidos tinham escolhido esse caminho nos anos 1930 para sair da recessão econômica através do New Deal implantado pelo presidente Roosevelt e era a que os aliados também adotaram para reerguer a Europa no pós-guerra com o plano Marshall. Para nossos professores o empresariado brasileiro era descapitalizado e despreparado demais para levar adiante um projeto de desenvolvimento e só um empurrão forte do Estado poderia, no jargão dos economistas, alavancar a economia brasileira.

Apesar de nunca ter apoiado a Revolução Cubana, esta escola se tornou um dos principais alvos da sua contrapartida criada pelo Departamento de Estado Norte Americano, a Escola das Américas. Seguidora fiel da Escola de Chicago e financiada por grupos interessados em assegurar seu predominio no continente, ela formaria vários ditadores e diversos personagens estadounidenses que teriam peso no futuro do continente. 

*

Os militantes de esquerda viam nossa turma como burgueses alienados. Por outro lado, os estudantes sem interesse em política viam quem se interessava em militar por avanços progressistas como playboys perdidos tirando uma onda infantil de revolucionários. Esta turma, a grande maioria mesmo naquela época, focava em se tornar histórias de sucesso depois que se formassem. Sem dúvidas, era uma postura lógica no contexto de uma faculdade de primeira linha. Porém, eu não estava no momento certo, nem na faculdade certa, para adotá-la. A verdade é que assim que entrei para a aula introdutória e vi meus novos colegas e professores tive a sensação clara de que aquilo era uma contingência e não o início de uma carreira.

O curso de economia da UFRJ visava preparar quadros para agências de desenvolvimento do governo e para companhias estatais: BNDES, IPEA, Eletrobrás, Petrobrás entre outras. Depois que as aulas começaram, descobri que muitos professores eram fascinantes e inteligentíssimos, alguns sobreviventes dos anos de chumbo da ditadura. Os professores mais engajados nos viam como uma nova espécie de estudante: um dos primeiros contingentes livres das amarras dos militares. Os que haviam voltado recentemente do exílio, estavam entusiasmados por poder lecionar livremente em seu próprio país.

O lugar e o ambiente eram estimulantes e, por isso, resolvi ignorar os pensamentos negativos iniciais e dar uma chance ao curso. Não dava para comparar aquelas aulas com o que víamos nas fábricas de passar no vestibular. Quem sabe não tivesse tomado a decisão certa e viesse a gostar do curso?

*

Tudo ia bem até que contraí uma hepatite em Mauá que me forçou a passar um mês e meio de cama. Aquela pausa marcaria o começo de uma reviravolta pessoal e, estranhamente, o início de uma reviravolta muito maior no país. A liberdade política estava garantida, as eleições diretas para presidente eram uma questão de tempo, porém uma era de inferno econômico estava despertando.

Era um acontecimento global; ao redor do planeta fundamentalistas religiosos cristãos, judeus e muçulmanos estavam desbancando a esquerda em termos de atrair a opinião pública. A AIDS estava se espalhando e Ronald Reagan e Margaret Thatcher estavam consolidando suas políticas conservadoras. Um ciclo neoliberal e careta estava iniciando um reinado de pelo menos quatro décadas.

Confinado à cama, me sentindo fraco, comendo e bebendo em pratos e copos separados para que minha infecção não se espalhasse em casa, presenciei o Fundo Monetário Internacional começar seu ataque ao Brasil. Representando as economias centrais ele decretou que dívidas contraidas em empréstimos concedidos a ditadores e antigos aliados – empréstimos realisados com fins políticos e, por isso, com facilidades especiais – eram agora uma ameaça à estabilidade mundial. As taxas de juros, agora muito mais altas, fizeram com que a dívida externa brasileira chegasse a níveis inimagináveis. As exigências do FMI e as condições para seu refinanciamento sufocaram não só a economia brasileira, mas também a economia de todos os outros países em situações parecidas.

A gestão de dívidas sempre foi uma das principais formas de subjugar. No Brasil, como de costume, a corda arrebentou para o lado dos mais fracos. O governo aumentou impostos e subiu a taxa de juros que, por sua vez, dificultou empréstimos e fez com que empresas fechassem ou diminuíssem os seus quadros de funcionários. Por outro lado, obrigado pelo FMI a cortar gastos, o governo também passou a demitir gente e a fazer menos contratos com companhias privadas. Quando essas fechavam as portas, engrossavam o exército de desempregados sem nenhuma forma de assistência social.

Devido à incompetência ou talvez à inexperiência com condições tão adversas, o próximo passo das autoridades foi apelar para a emissão de moeda para honrar suas obrigações internas e externas, um caminho certo para a inflação. A inflação, que em pouco tempo se tornou galopante, diminuia ainda mais o poder de compra da população. A crise foi se alastrando como uma dor de dentes piorando a cada dia.

Com uma média mensal entre vinte a trinta por cento durante os 15 anos seguintes, a inflação no Brasil chegou ao acumulado de 20.759.903.275.651 por cento, um recorde mundial absoluto. Para se ter uma ideia do tanto que a situação ficou feia, caso meu pai não tivesse resguardado seu patrimônio, pelo mesmo preço que havia comprado nosso confortável apartamento em Ipanema no boom da bolsa nos anos 1970, alguns anos depois só poderia ter comprado um cafezinho num boteco de esquina.

No entanto, na FEA, professores e alunos viam essa turbulência de uma maneira diferente. Acontece que o seu departamento de Economia estava na linha de frente da oposição às políticas governamentais muito antes da crise começar. Vários de nossos professores haviam dado o alerta sobre os perigos à frente. Muitos brasileiros acreditavam que aqueles acadêmicos poderiam ser a salvação para o país naquela bagunça. Por isso, eles se tornaram figuras públicas, aparecendo direto em entrevistas e debates na televisão, publicando livros e escrevendo artigos de página inteira para os principais jornais do país.

 

Samba Perdido – Capítulo 03, parte 01

Capítulo 03

Todo menino é um Rei.”

Roberto Ribeiro

 

Sexta-feira, 23 de novembro de 1968 foi um dia único. A poucos quarteirões do nosso apartamento, a Rainha Elisabeth II estava dormindo hospedada no Hotel Copacabana Palace.

Se estivesse acordada de madrugada, teria se maravilhado com o espetáculo diário do sol clareando o horizonte. A beleza do mar refletindo o céu aberto e evaporando sua agua no ar fresco desencadeava o cantar dos pássaros nas milhares de árvores das ruas entre os prédios do bairro. Essa sinfonia soava no bairro inteiro, quer na sacada do hotel, quer no nosso quarto no décimo segundo andar. Ao fundo, dava para ouvir ondas quebrando ritmicamente na praia, sua espuma salpicado a areia, indo e vindo na vastidão.

Meu pai saiu para sua caminhada diária enquanto a Rainha, sua comitiva, Renée,

Sarah e eu continuávamos no sétimo sono protegidos por ar condicionados barulhentos.

Nosso despertador tocou às seis e quinze da manhã em ponto. Por mais que a preguiça tentasse me convencer de que nada tinha acontecido, não dava para ignorar o barulho metálico alto e irritante. No estupor, vi o vulto da Sarah se levantar e aliviar a situação desligando o aparelho. Já com onze anos, estava com sua sua cabeleira negra, comprida e despenteada envolvendo seu pijama favorito até o ombro.

Me ignorando, não só ligou a luz como também fez um barulhão abrindo o armário para tirar suas roupas. Depois, saiu para tomar banho. Quando abriu a porta, o ar quente invadiu o quarto. Lutando contra a claridade e o calor de baixo da coberta, num esforço sobre humano, me estiquei para ligar o rádio de pilha deitado no chão.

Assim que deu para ouvir seu ruído, girei o sintonizador até achar a Rádio Globo. Quando consegui, entrei em sintonia com o Rio de Janeiro. Essa era rádio preferida das domésticas, dos porteiros e de outras pessoas comuns. Para mim era o Brasil em estado puro, eu adorava mas ninguém em casa conseguia entender como nem porque.

O apresentador bem-humorado com uma voz de cantor de ópera, Haroldo de Andrade, conduzia o show matinal de maior audiência da cidade. Nele, além de fazer orações, transmitia notícias, divertia os ouvintes com curiosidades e fazia entrevistas com astros do futebol, do samba e das novelas. Era um programa interativo em que gente da cidade inteira ligava para deixar opiniões sobre os assuntos do dia. Durante os intervalos, tocava os últimos sucessos do samba e hits da Jovem Guarda: Jerry Adriani, Wanderley Cardoso, Wanderléa entre outros. Roberto Carlos, o rei, devia ser muito caro para tocar naquele horário. Também havia a participação do astrólogo da programa, Alziro Zarur, que lia suas previsões com uma música mística, meio oriental ao fundo.

“Aquela porcaria” – que era como minha irmã se referia a meu programa de rádio favorito – estava no ar quando voltou do banheiro enrolada na toalha. Sem falar uma palavra, irritada com minha preguiça, mudou de estação, desligou o ar condicionado já fraco, abriu as venezianas de madeira e me mandou sair do quarto para que pudesse se vestir.

Ficou difícil dizer o que era mais irritante: não ser o mais velho, ser acordado daquela maneira ou simplesmente ter que levantar tão cedo. De qualquer forma, se me acordar era o que queria, funcionou. A luz forte e a música americana chata mataram o que restava da minha morbidez.

Antes de qualquer coisa, saí para a varanda. Assim os pés tocaram a cerâmica ainda fria, o sol bateu no meu rosto que, junto com a brisa vinda do Oceano Atlântico ali em frente, me desejou um bom dia. Aquele era o meu lugar favorito da casa; foi lá onde tinha aprendido a falar, a andar e a brincar. Adorava ficar ali contemplando a vista espetacular, sonhando acordado na rede de balanço em meio às plantas. Passava horas ali me debruçando no parapeito para ficar espiando as pessoas e os carros passando na rua lá embaixo.

Como um cão fiel, minha bola de futebol tinha passado a noite do lado de fora me esperando. Minha “dente de leite” não era uma bola profissional de couro, mas pelo menos não era daquelas infantis que mais pareciam um balão. Dava para jogar futebol de verdade com ela. Seu plástico esticado podia se tornar vil: se chutada com força contra a parede soava como um sino e caso a bolada acertasse na pele, vinha acompanhada de uma ardida enjoada. Por causa de acidentes com vasos e com outros objetos mais caros fiquei proibido de dar bicudas, fossem elas dentro de casa ou na varanda. Havia o perigo de quebrar uma janela, ou pior; segundo meu pai, se qualquer brinquedo caísse lá embaixo e acertasse a cabeça de alguém, poderia quebrar seu pescoço, rachar sua cabeça e talvez até matar.

“Já imaginou uma bola pesada?!”

“Mas como é que vão saber que ela veio daqui?”

“A polícia sabe de tudo!” respondeu Rafael se segurando para não rir.

Apesar das explicações, minha cabeça de jerico vivia tentada a jogar a bola lá embaixo para ver o que aconteceria. Estouraria? Até que altura quicaria de volta? Qual o estrago que causaria? Mas nunca me atrevi. Mais tarde acabei jogando uma daquelas bolas de borracha transparentes japonesas, mas o resultado foi decepcionante: não a vi quicando de volta nem ouvi barulho nenhum, simplesmente desapareceu.

*

Já frequentava a escola, a British School of Rio de Janeiro. Naquele dia a família inteira estava indo para o evento importante. Minha irmã, já vestida, veio até a varanda para ver o que estava fazendo. “Richard! Você ainda está aí!? Você vai atrasar todo mundo!”

Depois da mini bronca, fui me preparar. O bom de se estar no banheiro é que dava para ouvir o rádio da Maria, nossa empregada, na área de serviço. Ela também gostava da Rádio Globo mas de manhã cedo, para garantir que tudo fosse feito dentro do horário, ouvia a Rádio Relógio, uma estação que dizia as horas a cada dois minutos entre anúncios monótonos e informações bizarras.

“Você sabia que o rinoceronte africano tem dois chifres; o maior fica na frente e o menor atrás? Você sabia?… Biiip, biiip, biiiiip… são seis horas, quarenta e dois minutos e zero segundos… Biiip.”

Tanto eu quanto a Sarah adorávamos aquela mulata faladeira que vivia rindo de nossos hábitos gringos. Forte mas não gorda, lábios carnudos, um dente de ouro, olhos intensos e puxados como os orientais, ela enchia nossa casa de alegria brasileira, principalmente quando estávamos a sós. Anos mais tarde o porteiro, Zé, me contaria que Maria era fogosa e que a maioria dos empregados de nosso prédio já havia tentado algo com ela, com níveis variados de sucesso.

Depois do banho, de escovar os dentes, pentear os cabelos, vestir o uniforme com perfeição e colocar sapatos engraxados desconfortáveis estava pronto para me unir à família. Odiava com paixão aquelas frescuras, mas não tinha jeito.

Quando cheguei, estavam todos me esperando sentados embaixo do toldo na varanda. Em dias de sol, o café era servido ali numa mesa de plástico dobrável que minha mãe mandava cobrir para disfarçar sua simplicidade. Maria estava de uniforme fazendo cara séria em frente ao homem da casa e tomando cuidado para não derramar nada ao servir nosso café da manhã anglo-tropical; ovos cozidos, leite quente, mingau, geleia, bananas, mamão, suco de laranja espremido na hora, pão preto, mel e manteiga.

*

Café tomado, uniforme conferido e impecável, sapatos brilhando, com dona Renée, seu Rafael e minha irmã nos seus trajes mais finos, a família estava pronta para sair. Descemos juntos no elevador. Na portaria, minha mãe deu as chaves do carro para o garagista e logo que ele saiu com o Aerowillys na rua, eles entraram e partiram.  Não fui com eles, tinha que ir no ônibus escolar, afinal era o único que estudava lá. Fiquei esperando com o Zé falando de futebol.

Para apanhar os alunos, o ônibus vermelho ziguezagueava entre as vias principais do bairro; a Avenida Atlantica, a Avenida Nossa Senhora de Copacabana e a Rua Barata Ribeiro onde, na sombra das árvores antigas, bondes soltavam faíscas brilhosas ao tocarem o emaranhado de fios elétricos sustentados pelos postes enferrujados.

Eram oito da manhã e todos meus colegas do bairro tinham enchido o ônibus. Antes de pegar o túnel, ficamos presos num engarrafamento junto com outros ônibus lotados, bondes, lotações, taxis e carros particulares. Motoristas impacientes buzinavam e gritavam sem qualquer motivo enquanto crianças descalças das favelas passavam no meio do congestionamento conduzindo seus carrinhos de rolimã, tão baixos que quase tocavam o asfalto.

Na nossa condição de gringuinhos grã-finos, olhávamos para aqueles meninos maltrapilhos pela janela com uma mistura de inveja e de medo. Muitos eram da nossa idade e sabíamos que apanharíamos fácil se tivessem a oportunidade de nos enfrentar. Eles eram contratados por feirantes para entregar seus produtos nas casas ou nos escritórios dos clientes. Esses mercados improvisados mudavam de bairro todo dia, mas onde quer que parassem, o odor acre de frutas, de carne e de peixes expostos ao sol era o mesmo. Seu cheiro e seu barulho inconfundíveis anunciavam sua presença a vários quarteirões de distância. De dentro das bancas de frutas, homens em camisetas rasgadas cantavam rimas para atrair as madames

“Ooooolha aí! Mulher bonita paga metade se levar meio quilo! – Olha a banana novinhaaaaa, dez cruzeiros a dúziaaaaa!”

Nos cruzamentos, policiais elegantemente uniformizados controlavam o trânsito por meio de uma coreografia de apitos, olhares e movimentos de mãos que lembravam um ritual de acasalamento de uma ave rara que os motoristas pareciam entender.

*

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Samba Perdido – Capítulo 02, parte1

Capítulo 02

   "Rio seu mar, suas praias sem fim

Rio você foi feito para mim."

Samba do Avião -Tom Jobim

 

A vida carioca havia começado em clima de segunda lua de mel num quarto de frente para o mar de Copacabana no hotel Miramar. Os dias de semanas eram dedicados a nadadas e passeios nas praia semi deserta em frente. Nos fins de semana, para evitar a multidão, se deleitavam em caminhadas pela floresta da Tijuca, descobertas nos arredores da cidade e em aventuras culinárias. Os dois passaram aquelas semanas apaixonados um pelo outro e por tudo o que aquela cidade tinha a oferecer.

Descansados e aclimatados, embarcaram na sua primeira missão: escolher um lugar para morar. Sua busca os levou a conhecer como os cariocas viviam e a recantos menos turísticos porém igualmente atraentes; ruas residenciais na descolada Ipanema e no seu vizinho Leblon, bairros menos badalados beirando a Baía de Guanabara e mais para perto do Centro, como Botafogo, Laranjeiras, Catete e Flamengo. Viram imóveis ao redor da floresta, na verde Gávea e no Jardim Botânico, vizinho do parque lindíssimo com o mesmo nome. Os corretores também os levaram a áreas mais afastadas como o Cosme Velho, localizado num vale no meio da floresta tropical, à Urca, à sombra do Pão de Açúcar, e à Santa Teresa, em cima dos morros beirando o centro da cidade.

Todas essas alternativas, em geral apartamentos espaçosos e recentes, eram como um sonho para um casal vindo da fria e cinzenta Londres castigada por bombardeios. No entanto, apesar de adorarem tudo o que viram, escolheram permanecer em Copacabana. Lá, além da proximidade da praia e de Paulo, havia algo que as outras partes do Rio não tinham: o glamour com que estrelas como Fred Astaire, Ginger Rogers e Carmen Miranda haviam apresentado a cidade ao mundo. Havia carisma. O bairro às vezes lembrava as charmosas cidades costeiras da Côte d´Azur francesa, com suas ruas calmas e limpas e com seu cotidiano praieiro, noutras vezes lembrava Manhattan, com sua floresta de edifícios modernos e elegantes. Neste aspecto, o ar cosmopolita, porém ainda verde, da “Princesinha do Mar” não tinha páreo no Brasil.

As avenidas do bairro eram repletas de lojas oferecendo novidades importadas, boutiques exclusivas, cinemas e casas noturnas sofisticadas. Por ser um recanto recente e abastado, esses estabelecimentos ou eram os melhores da cidade ou pertenciam às melhores redes do país. Circulando em suas ruas movimentadas ou estacionados em suas calçadas, carros do último modelo, nacionais e importados, realçavam o seu ar internacional.

A praia em si era maravilhosa: havia quatro quilômetros de oceano aberto cercados por uma exuberante cadeia de morros que separava aquele paraíso do resto da cidade. À frente, um pequeno grupo de ilhas cobertas por vegetação selvagem quebrava a monotonia do horizonte. Seu passeio público, a elegante Avenida Atlântica, era o cenário onde de dia a elite carioca exibia seus corpos torneados e bronzeados e nos fins de tarde desfilava com suas melhores roupas nas suas caminhadas.

*

Depois de decidirem onde iriam morar, a escolha de um apartamento foi fácil. Com uma conta bancária recheada de valorizadas libras esterlinas provenientes da venda da casa em Londres podiam voar alto. Em breve estavam de mudança para uma espaçosa cobertura onde uma ampla varanda dava uma deslumbrante vista da praia. Como todos os outros prédios ao redor, a entrada parecia com a de um hotel de luxo. Painéis de mármore e enormes espelhos emoldurados revestiam suas paredes imitando palácios na Europa e cenários hollywoodianos.

A mobília do casal, comprada a preço de banana em casas de leilão na Londres do pós-guerra, era classuda e combinava bem com a elegância do endereço. Ela incluía antiguidades como uma autêntica mesa de cabeceira Chippendale, um piano de calda, talheres de prata, porcelana chinesa legítima da mais alta qualidade e pinturas clássicas, falsas porém convincentes.

Tudo havia sido enviado de antemão por navio. Agora, três meses depois, estava à espera na alfândega do porto. Enquanto Rafael saiu em busca dos contatos comerciais que seus amigos haviam fornecido, Renée ficou responsável por liberar seus tesouros.

Armada com o português básico aprendido com um professor improvisado indicado pelo consulado brasileiro em Londres, ela foi lidar com a burocracia local. Aos olhos do encarregado, a senhora inglesa era a própria figura da gringa rica e ingênua. Mesmo avisada, Renée se recusou a aceitar que um homem tão charmoso, numa posição de tanta responsabilidade, pudesse estar atrás de propina, apesar de que todos seus novos vizinhos e amigos haviam assegurado que qualquer pessoa nesse tipo de trabalho iria querer algum tipo de “incentivo” para agilizar as coisas. Numa tarde decisiva, seu medo de ofender foi tanto que não teve coragem de entregar um envelope gordo, recheado de dinheiro. Essa hesitação lhe custou mais quatro mêses de espera.

*

Depois de instalados em Copacabana, o casal foi se integrando na vida da Zona Sul. Nessa mesma época e no mesmo lugar, artistas como Vinícius de Moraes, João Gilberto e Tom Jobim estavam misturando samba, letras inspiradas e jazz dando origem à bossa nova. As casas de show espalhadas por de Copacabana. As mais exclusivas ficavam de frente para a praia na Avenida Atlântica. As mais na moda ficavam nas vielas logo atrás. Uma delas era o Beco das Garrafas onde o trio e outras futuras lendas da bossa nova se apresentavam regularmente. Esse seria o berço de clássicos do gênero como a Garota de Ipanema, que Frank Sinatra gravaria no auge de sua carreira e que venderia fora do Brasil tanto quanto as músicas que os Beatles ou os Rolling Stones estavam gravando.

A bossa era a expressão musical do otimismo pelo qual o país passava. Esse era um Brasil inteligente, urbano, sofisticado mas ainda assim apaixonado pelas suas raízes. Rafael tinha acertado quanto às possibilidades do país. Com um processo de industrialização acelerado e com um mercado consumidor em crescimento, as oportunidades eram ilimitadas. O slogan do presidente Juscelino Kubitschek era fazer “cinquenta anos em cinco”. Com isso em mente, o seu governo investiu pesadamente em infraestrutura e abriu o país para o capital externo. Ele também se dedicou a construir uma nova capital, a futurística Brasília, no longínquo Planalto Central.

Apesar de não frequentarem a noite e de esnobar a nova moda musical, os dois acabariam por se encaixar bem em Copacabana. A vizinhança era de uma classe média recente, ansiosa​ em se familiarizar com sua recém adquirida posição social. Isso incluía viver de acordo com o que viam e liam em filmes e revistas estrangeiras. Pessoas de fora personificavam as suas aspirações e proximidade com elas não só dava status, mas também dava asas à imaginação.

Após uma breve fase de se sentir alienada, Renée foi rápida em perceber a oportunidade social de assumir o papel de embaixatriz do mundo “desenvolvido”. Espelhando a jovem e recém empossada Rainha Elizabeth II, ela aceitou o cargo com convicção e prazer. Vinda de uma família de imigrantes alpinistas sociais, o Brasil​ neste aspecto lhe pareceu um El Dourado. Isolada da sua família e da sua cultura, vivendo num país estrangeiro como uma dona de casa milionária, mimada pelo marido, temida pelas empregadas, tratada como alguém especial nas ruas e sem ter ninguém que a questionasse, ela se reinventou e criou um personagem surrealista.

Trinta centímetros mais alta que a média das brasileiras, com um forte sotaque inglês e com um guarda-roupas repleto de peças elegantes feitas em Londres, para os brasileiros Renée passava a imagem de uma mulher poderosa e à frente de seu tempo. Isso era fácil num lugar onde donas de casa de respeito nunca eram vistas na noite, sequer em restaurantes com seus maridos. Seus biquínis – em voga na Europa do pós-guerra – mostravam o umbigo. Na praia, esse show de nudez chocava, e mais de uma vez os salva-vidas tiveram que lhe pedir que voltasse para casa para trocar de trajes.

Renée foi também uma das primeiras mulheres a dirigir no Rio, o que atraía muitos comentários, alguns grosseiros e outros de admiração. Nenhuma das duas reações a perturbava, já que na opinião dela os brasileiros se transformavam em caubóis selvagens quando ao volante. No país que viria a fornecer ao mundo da Fórmula Um campeões como Emerson Fittipaldi, Nelson Piquet e Ayrton Senna, ela resolveu tomar para si a missão de ensinar aos motoristas, via exemplo, como respeitar os limites de velocidade. O carro dela sempre acabava atravancando o trânsito na faixa da esquerda. Isso fazia com que recebesse um sem-número de gritos e de palavrões dos motoristas obrigados a fazer a ultrapassagem pela direita. Anos mais tarde, ela também tentaria deixar claro aos surfistas de Ipanema que o mar era de todos, nadando com a sua toquinha florida entre os cabeludos sarados e suas pranchas.

Porém, apesar da satisfação em vender como jóias colares de contas aos nativos, nem sempre a história colava​. Sem contar que havia gente que de fato pertencia àquele mundo no Rio de Janeiro, para início de conversa, a Inglaterra que provocava suspiros em admiradores incautos era agora um lugar em transformação. Após duas pesadas guerras mundiais, as tradicionais divisões de classe estavam virando uma coisa do passado. Conforme o país foi se reconstruindo, os privilégios antes reservados para a aristocracia – agora falida – foram ficando acessíveis à uma classe média emergente. A nova dinâmica criou dois campos: os que queriam enterrar o passado e construir um Reino Unido onde todos tivessem oportunidades iguais e os que queriam tomar o lugar da aristocracia declinante e desfrutar os privilégios que seus pais nunca tiveram. Renée pertencia ao segundo grupo. A rainha Elizabeth foi mais sutil e resolveu popularizar a monarquia como estratégia de sobrevivência.

As duas maiores barrerias que encontrou para sua forçação de barra eram dois: a substituição do Reino Unido pelos Estados Unidos no topo do mundo ocidental e o aparecimento da cultura jovem nesses dois países. Para manter seu sonho vivo, ela rejeitava toda e qualquer novidade que contradizesse sua narrativa de rainha modernizadora dos trópicos. Que nem a madrasta da Branca de Neve, sua vaidade parecia perguntar ao espelho “Espelho, espelho meu, existe alguém ou algo mais avançado do que eu?” Se tivesse, bloqueava na hora. Isso atingia as raias da incomprensibilidade. Sob sua guarda não havia televisão, pouquíssimo cinema e nada de música popular, fosse ela brasileira ou internacional, incluindo o jazz, a bossa nova e o rock’n’roll. A única expressão cultural válida era o teatro – o de Londres é claro – e a música clássica. Para ela, a arte contemporânea era um lixo; a pintura tinha morrido com o expressionismo e em literatura, mesmo o hiper-religioso Tolkien, autor do Senhor dos Anéis, era visto com suspeição.

Sua fobia à novidades era tanta que, por alguma razão, ela também barrou de sua vida tudo o que não lhe tinha sido familiar na Inglaterra: doçes, refrigerantes, hambúrgers, milk-shakes e pastéis. Em contrário de todos à sua volta, ela insistia em uma dieta saudável e insossa, parte de uma noção, de fato à frente do seu tempo, de que a alimentação era fundamental para a saúde.

*

Nascido em 1900 num vilarejo na província austro-húngara da Galiza, na Polônia, Rafael, seu comparsa – e agora provedor – nas aventuras de validação social, não podia ser mais diferente. Os austro-húngaros, vistos como os senhores daquele mundo, menosprezavam os poloneses, que por sua vez desprezavam, a ponto de odiar, os judeus. Por sua vez, os judeus mais assimilados e vivendo em capitais Europeias viam os do leste europeu, como a família dele, como atrasados e presos a superstições religiosas das quais tinha se livrado ao sair dos ghettos. Para piorar as coisas, os mesmos judeus do leste europeu consideravam os galitzers como camponeses que não tinham saído da idade média. Assim sendo, embora a Galiza fosse a região da Polônia mais tolerante em relação aos seus estrangeiros: muçulmanos balcânicos, judeus, turcos e russos, ele cresceu como um caipira entre os caipiras. A ida para a Alemanha tinha sido a maneira que encontrou para escapar daquele determinismo sufocante.

Apesar de ter recebido uma rica educação rabínica, Rafael nunca frequentou uma escola secular quanto menos uma universidade. Contudo era inteligentíssimo e compensava essa lacuna trabalhando duro com diligência e criatividade. Com esses atributos alcançou cedo sucesso no mundo dos negócios, tanto na Alemanha pré-nazista quanto mais tarde na Holanda. No entanto, foi em Londres, em meados da sua quarta década, que seu destino deu uma guinada inimaginável. O casamento com uma beldade de uma abastada família de Golders Green e o brinde de um imóvel pago pelo sogro numa área respeitável de uma metrópole mundial foi o equivalente a ganhar na loteria.

Esse legado fez com que na vida doméstica, tal como Sancho Panza, ele obedecesse a todas as regras que a esposa impunha, mesmo se não fizessem sentido algum. Maduro e conhecedor dos recantos mais sombrios da vida, ciente das diferenças gritantes entre os dois, Rafael soube fazer com que ela se sentisse idolatrada e que seu personagem permanecesse vivo. Com isso, conseguiu manter sólido um relacionamento improvável num lugar mais improvável ainda.

A vida confortável no Brasil virou uma tentativa de se reinventar. Em um lugar tão diferente quem sabe ele pudesse encontrar uma recalibragem interna ou a fonte da eterna juventude. Contudo, a melancolia nunca o deixou. Apesar de se sentir bem com a relativa inocência e alegria a sua volta, o contraste com sua dissimulada solidão e com o fim brutal de seu mundo era doloroso demais. O último elo que manteve com algo que se pudesse chamar de lar, foram seus negócios com a Alemanha Oriental, uma república satélite dos soviéticos nascida do país que havia lhe trazido tanto sofrimento.

Na intimidade, seus pensamentos, suas atitudes e seu compasso emocional viviam perdidos numa dimensão diferente que às vezes deixava escapar em histórias da sua infância como a de quando, na escola rabínica, colou a barba do seu professor na mesa enquanto este dormia. Também se orgulhava de ter conseguido enganar um policial polonês a procura de bebidas ilegais na casa do seu avô quando criança, despistando uma porta escondida no celeiro. Esse avô, rico e assimilado com quem todos na aldeia vinham se aconselhar, foi mais marcante do que seu próprio pai de quem nunca falava. Rafael era o repositório de uma coleção de piadas, palavras, ditados populares e ensinamentos religiosos de um mundo que agora somente existia em suas memórias, na sua língua nativa, o iídiche, e em raras fotografias.

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Samba Perdido Capítulo 1-2

Eram 5:30 da manhã em meados de Novembro de 1955, trinta e cinco horas depois de decolar de Londres, parar por três horas em Lisboa, fazer o mesmo por quatro horas em Dakar, Senegal, atravessar o oceano Atlântico e ficar mais três horas no Recife, o voo da BOAC, BA0249, estava finalmente se aproximando do Rio de Janeiro.

O sol ameaçava se insinuar no céu estrelado quando um sinal aveludado nos alto-falantes acordou os passageiros. Em seguida, uma voz feminina, primeiro em inglês e depois em português, desejou a todos um bom dia e anunciou que estavam a uma hora da destinação.

As aeromoças acenderam as luzes e passaram a servir um generoso café da manhã. Para os ingleses, ovos estrelados com bacon, torrada, marmelada e chá, para os brasileiros, ovos mexidos, pão francês, queijo fresco, goiabada e café forte. Junto com a comida distribuiram formulários de imigração e da alfândega para quem precisasse.

Terminada a última refeição a bordo, loucos para descansar numa cama de verdade, os passageiros passaram a organizar a sua chegada. Do lado de fora, a claridade já revelava o mar no horizonte. Embaixo, as primeiras luzes estavam se acendendo na descida da serra para a Baixada Fluminense. Enquanto os primeiros carros e caminhões se aventuranvam na madrugada vazia a tripulação percorria o corredor recolhendo as bandejas.

Rafael e Renée estavam preenchendo os formulários. O casal chamava atenção por sua discreta bizarrice. Ele era baixo, olhos azuis espertos e frios, cinquenta e poucos anos, um tanto antipático e com um pesado sotaque do leste europeu. Em contraste, ela era uma londrina com sotaque chique, alta e exuberante, de cabelos curtos e castanhos e muito mais jovem que o marido.

Não demorou muito para a voz feminina retornar aos alto-falantes pedindo a todos que apagassem seus cigarros e apertassem os cintos de segurança. Do lado de fora a vista se tornou magnífica. O dia estava raiando sobre o Rio de Janeiro. O sol dourava o Cristo Redentor junto com a vegetação e as pedras gigantescas da Floresta da Tijuca em torno dele. As águas da Baia de Guanabara e as ilhas no mar aberto ja se misturavam da maresia. Aquele espetáculo foi bem-vindo após praticamente dois dias chacoalhando numa aeronave apertada ouvindo o ronco incessante das hélices. Rafael deu uma olhada no relógio, 6:15 da manhã, 45 minutos mais cedo do que o esperado.

O avião deu sua sacudida final quando tocou o solo em alta velocidade. Assim que se tornou controlável, os passageiros aplaudiram o piloto que passou a guiar a aeronave lentamente rumo ao terminal. Quando parou, a tripulação apagou os sinais de apertar os cintos e de parar de fumar e abriu a porta deixando ar fresco da madrugada entrar para ventilar a cabine claustrofóbica.

Com seus pertences prontos, Renée e Rafael se puseram na fila de saída. Na porta, depois de trocarem sorrisos cansados com a aeromoças, uma brisa tropical acariciou suas peles lhes dando boas-vindas. Com sua nova cidade à frente, desceram a precária escada e se dirigiram ao terminal com os outros passageiros.

A bruma espessa e seu calor húmido tiveram o efeito de evaporar o torpor da viagem na Renée. Eufórica com o início de sua aventura carioca, estava parecendo uma criança numa loja de doces tentando puxar conversas com o marido exausto e monosilabico.

“Deveríamos achar um apartamento perto da praia, não acha? A revista disse que perto da floresta há risco de malária.”

Entraram na fila fila da imigração e ela não parava. “Eu quero ir para praia ainda hoje. Copacabana deve estar explendida!”

Quando chegou sua vez, o policial acenou. Depois de mostrarem seus passaportes e de entregarem os formulários, receberam os carimbos requeridos. Dali em diante, estavam liberados para viver no Brasil.

Ao sair para o saguão de desembarque, talvez por estarem vindo para ficar desta vez, sentiram o desconforto de serem completos estrangeiros. Com exceção dos outros passageiros europeus, ninguém ali falava inglês ou qualquer outra língua que lhes fosse familiar. Além de have mais “não-brancos” do que estavam acostumados, a emoção e os abraços com que os locais recebiam seus familiares e amigos, realçava sensação de alienação. No fundo de suas mentes uma pergunta gritava em silênico: “Será que tomamos a decisão certa?”

*

No saguão do aeroporto carregadores uniformizados e educados apareceram se oferecendo para levar suas malas até a fila de táxis do lado de fora. Depois de se certificar que as bagagens estavam devidamente organizadas no porta-malas e de dispensar o seu primeiro dinheiro local na gorjeta, entraram no carro.

“Por favor”, disse Rafael antes de ler o papel com o endereço do hotel e ponunciá-lo em um português quebrado que duvidou que o motorista fosse entender. Ele finalizou o desconforto com um desajeitado  “Obrigado”.

O motorista disse OK, mas pediu através de sinais para ver o pedaço de papel. Depois de dar uma lida, abriu um sorriso amigo e disse, “Hotel Miramar, Copacabana, yes mishterr!”

Assim que partiram, a estranheza que sentiram no aeroporto sumiu. O sol já estava a pino e fazia calor. Animados, colocaram seus óculos escuros e passaram a apreciar o cenário. Logo pegaram a Avenida Brasil, que estava apinhada de carros de fabricação americana, caminhões e ônibus de qualidade duvidosa, todos indo rumo ao centro da cidade. De repente, sentiram o mau cheiro vindo da favela beirando a estrada​. O fedor forte passou quando chegaram na zona portuária. Apesar de mais primitiva que a de Londres, era charmosa com sua série interminável de armazéns coloridos com chaminés e mastros de navios aparecendo logo atrás.

Do porto, o motorista, agora concentrado num programa no rádio, seguiu para o Centro. Lá atravessaram sua mistura contrastante de igrejas coloniais, prédios públicos de estilo modernista e construções vistosas da Belle Époque. Ao fim da avenida elegante e arborizada, chegaram na Baía de Guanabara onde deram de cara com o Pão de Açúcar. Dali o motorista, ousado demais para seus gostos, continuou a viagem apressada beirando a baía. Lá passaram pelos bairros do Flamengo e de Botafogo antes de finalmente atravessar dois túneis e chegar em Copacabana. Fizeram aquela curta viajem com as​ janelas abertas​, sentindo o vento no rosto, absortos pela beleza da cidade e relevando o programa de rádio incompreensivel e as barbeiragens do motorista.

*

A primeira coisa que fizeram depois que a bagagem chegou no quarto e que fecharam a porta, foi ligar para o Paulo. Ele havia dado a desculpa de que naquele dia tinha assuntos importantes a resolver e por isso não tinha dao para ir de madrugada recebê-los no aeroporto. Após uma conversa animada e piadas sobre o voo interminável marcaram de se encontrar no dia seguinte.

Paulo era um sujeito curioso. Além da sua personalidade fácil e de seu endereço exótico, possuía outra peculiaridade: era comunista. Esse tinha motivo original do seu exílio da Alemanha já nos meados dos trinta. Havia perigo de morte. Nunca soube dos detalhes dessa ameaça nem se continuou sua militância no Brasil, mas se tivesse, isso não teria sido pouca coisa no auge da ditadura de Vargas quando chegou.

Nos trópicos, a amizade entre os dois veteranos da loucura europeia floresceu. Apesar de antifascista, Rafael estava longe de ser de esquerda. De qualquer forma, os longos papos em iídiche trouxeram de volta as discussões políticas, tema central na vida judaica no leste europeu.

Durante uma dessas conversas, Paulo gabou-se de seu relógio produzido na comunista Alemanha Oriental ou RDA. “Está vendo este relógio aqui? Ele foi produzido livre da exploração capitalista. Pode ver! Ele funciona tão bem quanto qualquer relógio feito na América!”

Embora o relógio não fosse lá essas coisas, ao analisá-lo meu pai teve um “momento eureca”. Ele percebeu que tinha em mãos uma excelente oportunidade de negócios. Na cabeça dos brasileiros, alemão era sinônimo de confiável e, fabricados em um país comunista, seus preços seriam muito competitivos. A recém-criada classe média baixa brasileira iria, certamente, consumi-los como água.

Anos antes do golpe de 1964, com a ajuda dos contatos partidários do Paulo, Rafael atravessou o muro de Berlim, e foi se encontrar com o comissariado encarregado da fábrica de relógios. Com eles conseguiu um contrato para ser o representante exclusivo para o Brasil.

À primeira vista poderia parecer estranho que alguém com o seu passado fosse ganhar a vida vendendo produtos alemães e, pior ainda, comunistas. Seja como for, o rigor e a praticidade teutônica lhes eram reconfortantes. Adotando essa mesma objetividade fria, foi em frente sem deixar que sentimentalismos e ideologias interferissem nas suas decisões. Nisso, ele era igual à maioria de seus amigos judeus. Apesar de tudo o que eles e seus entes próximos haviam enfrentado durante a guerra, ainda guardavam respeito pelo pragmatismo e pela eficiência germânica. A subserviência ainda estava viva e, como a maioria dos sobreviventes europeus orientais, continuavam a ver a Alemanha como a liderança nata e incorruptível do seu mundo.


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