Samba Perdido – Capítulo 32 – parte 02

Desci no ponto final, na Praça da Sé. Perdido no labirinto das ruas do centro, saí perguntando e consegui encontrar um ônibus que ia para o campus. Àquela altura, tudo o que queria era descolar uma cama para passar a noite e tirar um cochilo. Contudo, quando as coisas estão fadadas a dar errado, elas só pioram. Quando cheguei na cidade universitária, me deparei com um confronto entre os estudantes e a polícia justamente por causa do dormitório onde estava planejando passar os próximos meses. As autoridades do campus tinham intervido e os estudantes queriam o controle do seu espaço de volta. Na confusão fiquei sabendo que por conta daquele atrito não estavam podendo aceitar gente que não estudava ali. Sem saber o que fazer, me dirigi à administração da universidade para explicar minha situação e pedir ajuda. Só que meu ar de playboy e meu sotaque carioca não conseguiram convencer ninguém de que estava em apuros.

Sem outra opção, voltei para o diretório dos estudantes para ver se conseguia arranjar um lugar para ficar, mesmo se fosse para dormir no chão por algumas noites. Quando caiu a noite, a sorte sorriu para mim. Em meio ​à uma assembleia, cruzei com o Carlinhos, um maluco que conheci em Canoa Quebrada, a paradisíaca aldeia de pescadores no Ceará. Expliquei minha situação e depois de alguns telefonemas, ele me convidou para ficar na casa dele.

Agradeci de coração e depois que as coisas acalmaram pegamos um ônibus e fomos lá. A família morava bem, num apartamento amplo perto da Avenida Paulista com vista de cima para a teia de telhados de São Paulo. A acolhida não podia ter sido melhor, todos eram muito gente boa e a hospitalidade acabou sendo impecável a ponto de ser embaraçosa. Me trataram como se fosse da família: tinha um quarto só para mim, comiamos juntos e depois iamos para a sala de estar para ficar coversando ou assistindo televisão até tarde. Quando saia com o Carlinhos ele me apresentava para seus amigos como um herói. Além disso, tinha a irmã mais velha do Carlinhos, Alice, uma gata, que também tinha conhecido no Nordeste. Ela ficou contente – achei que até demais –  em me ver, mas a última coisa que precisava era pôr tudo a perder tentando alguma coisa com ela.

*

São Paulo era muito mais sofisticada que o Rio. Em todas as áreas e camadas sociais, os paulistas eram mais profissionais e mais polidos. Para um carioca, tudo era limpo, organizado e funcionava bem: ônibus, sinais de trânsito​, metrô, lojas, padarias. Havia mais formalidade e o nível intelectual em geral parecia padrão de Primeiro Mundo. Os jovens não eram os ratos de praia da Zona Sul se achando a aristocracia da cidade, na paulicéia nao havia tempo para aquele tipo de hedonismo arrogante e de pretensão. Seu estilo urbano, descolado porém de pé no chão, se aproximava ao que a gente via da juventude londrina através de revistas e de video clips. O punk e o estilo gótico caiam bem, ali os anos oitenta faziam sentido.

Após uma semana com a família do Carlinhos veio a hora de ligar para casa. Falei com minha mãe, expliquei que estava tudo bem e onde estava com a intenção de acalmá-la. Contudo, como era de se esperar, a reação da Renée foi a de pânico. Minutos depois da gente se despedir e de dar o telefone da casa no caso de uma urgencia, um amigo que estava morando em São Paulo me telefonou perguntando porque não o havia procurado. Larry era um americano com uma história parecida com a minha. A diferença era que tinha um lar nem mais usual que o meu , a família não estava sofrendo com a crise e por ter uma personalidade menos curiosa e aventureira nunca tinha se atrevido a sair dos padrões esperados da sua situação social.  O conhecia o das aulas de Bar Mitzvá e da Escola Americana. Pra falar a verdade, tinha seu telefone mas não o havia procurado porque era caretíssimo e um tanto chato. Quando éramos crianças a amizade só existiu por causa da insistência da dona Renée, maravilhada com a posição do pai dele, CEO da filial brasileira de um importante banco americano.

Larry tinha acabado de voltar de Miami. Apesar de seus dois irmãos mais velhos terem se estabelecido por lá, ele não havia gostado e agora queria fazer faculdade no Brasil. Assim que soube que estava em São Paulo, ficou louco para que ficasse com ele pois na sua cabeça eu representava o Rio da sua adolescência surfista. Quanto a seus pais – acreditem se quiser – me viam como uma boa influência pois era bom aluno quando estudávamos juntos.

Tive que aceitar o convite, pois não queria abusar da hospitalidade da família do Carlinhos. Além do mais, Larry também tinha que se preparar para o vestibular da FUVEST e com a ajuda de meus pais, nos matriculamos juntos no famoso curso Objetivo da Avenida Paulista, perto das sedes da maioria dos bancos e das grandes companhias e do enorme apartamento da família do Larry . Materialmente, minha situação ficou excelente: fiquei com um quarto e com comida por conta e com duas empregadas e um motorista à disposicao, não tinha que mover um dedo. Apesar do vazio que sentia e da frustração de ter caído de volta na teia da família, volta e meio me animava a acompanhar o Larry para azarar paulistinhas usando nosso jeito de carioca. Neste quesito o sucesso foi surpreendente.

No dia da prova, não havia praia para nadar na véspera nem o bom presságio de um desconhecido parecido com meu avô me olhando da calçada. Não estava nervoso, mas assim que abri o folheto e comecei a ler as questões, me dei conta de que o vestibular de São Paulo também era um nível acima do Rio. Primeiro, havia um teste de múltipla escolha onde fui bem, mas uma semana depois,  teve uma prova específica da área escolhida envolvendo respostas dissertativas e uma redação. Havia matérias que não faziam parte do currículo do Rio e quando confrontado por quatro ou cinco questões dissertativas sobre literatura portuguesa, que nunca havia estudado, não deu para enrolar e tive a certeza de que era o fim da linha para mim.

Essa foi a primeira derrota após uma longa fase de vitórias. Pensei em ficar em São Paulo num quarto alugado por mais um ano para tentar novamente, mas no auge da depressão econômica, até eu conseguia entender que aquela não era uma opção viável. Além disso, as coisas tinham piorado em casa; Rafael tinha sofrido outra parada cardíaca. Senti que era hora de voltar para o Rio para ser um bom filho pelo menos uma vez na vida.

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Samba Perdido – Capítulo 32 – parte 01

Capítulo 32

 

“Porque és o avesso do avesso do avesso”

Caetano Veloso - Sampa

 

A inabilidade dos meus pais em me enquadrar e minha fixação na guitarra elétrica foi gerando uma uma pressão ansiosa que ninguém aguentava mais. Me tornei agressivo, Rafael não me dirigia a palavra e Renée surtava direto por tudo e por nada que eu fazia. Até a Sarah e a dona Isabel passaram a me olhar de cara fechada. O plano original era ir para São Paulo para fazer o vestibular e  farto daquele clima, resolvi ir meses antes do tempo planejado. Quando anunciei a decisão, não houve drama, talvez porque eles achassem que se ficasse fora, numa outra cidade, quem sabe fosse levar a vida mais a sério.

De qualquer forma, sair de casa de vez era um momento importante, um grande salto no escuro. Todos, inclusive eu, sabíamos que dali para frente tudo seria diferente e nossas apreensões traziam os nervos à flor da pele.

Parti tarde da noite. Escolhi aquele horário porque chegaria de manhã cedo e teria o dia seguinte inteiro para procurar a casa do estudante universitário e me instalar lá. Apesar de ter dito em casa que seria mole arranjar um lugar, não tinha conseguido confirmar. Era um risco que estava tomando. Apesar de ter o número telefônico, o contato era impossível; ou a linha ficava ocupada direto, ou ninguém atendia, ou alguém atendia e me deixava esperando para sempre, ou simplesmente atendia, dizia que não podia dar a informação e desligava na minha cara.

Embora a rodoviária estivesse vazia, ainda havia uma fila no balcão para São Paulo. Enquanto esperava, do nada, um cara de trinta e pouco anos, bem arrumado, veio me perguntar se queria uma carona. Disse que não.

“Tô legal aqui, minha vez já tá chegando, mas obrigado por oferecer.”

Ele insistiu: “Não precisa agradecer, seria um favor que você me faria.”

Apesar da negativa, ele insistiu. “Tive que ir visitar minha mãe que está doente no Espírito Santo . Estou na estrada há doze horas e com sono. Preciso de alguém para ficar conversando para não dormir.”

“Olha, entendo, mas não estou a fim.”

“Mas, por quê?”

Sem conseguir achar uma resposta convincente, mas querendo me livrar da aporrinhação respondi “Estou pegando um ônibus leito, tenho que dormir na viagem. Amanhã tenho um encontro importante.”

“Ônibus leito?! É muito caro! Meu carro é de graça e é confortável.” Ele tirou a carteira. “Está vendo isso aqui, é a minha carteira de médico. Sou cardiologista registrado, está vendo? No Hospital Albert Einstein, conhece?”

Até eu conhecia o Hospital Albert Einstein. A carteira me pareceu verdadeira e minha vez na fila estava chegando. Sentindo a vacilação, o cara continuou: “Você deve estar com medo, achando que eu sou um maluco, né? Eu pensaria a mesma coisa, mas não se preocupe, sou do bem! Olha, te levo até o carro e você pode revistar à vontade.”

“Meu irmão, não tenho medo de nada!” Estava começando a mudar de ideia. O cara parecia mesmo um médico estressado e eu era maior do que ele, o que me garantiria se rolasse algum problema. Além do que, uma passagem de ônibus leito equivalia a umas cinco ou seis refeições. “Vamos ver teu carro para ver qual é.”

Na ida ele não parava de me agradecer e de repetir que era médico, que tinha que trabalhar cedo no dia seguinte, que a mãe estava doente no Espírito Santo e que precisava de alguém para conversar para ficar acordado. O único problema é que parecia acordado demais para alguém que se dizia cansadíssimo. Talvez fosse a ansiedade, café, sei lá.

Chegamos no estacionamento e paramos um Monza azul escuro em ótimo estado. Ele abriu a porta e colocou os bancos para frente. “Pode examinar se tem alguma coisa aí dentro. Aqui, dá uma olhada no porta luvas, não tem nada. Olha debaixo dos bancos, vai lá, faço questão.”

Depois ele abriu o porta-malas. “Dá uma olhada aqui. Viu? Nem mala tem, fui de última hora para ver minha mãe e não levei nada. Olha aqui no estepe; só tem estas ferramentas, mas isto não é arma, é obrigatório. Quer que eu abra a frente para checar o motor?”

“Não, tá na boa.” Cocei a cabeça, achando que o cara estava nervoso demais para o meu gosto. “Mas não sei. ”

“Olha, tudo bem, se você não quiser ir, entendo, mas diz logo porque senão vou ter que voltar na fila, em meia hora os ônibus param de circular.”

Realmente, não havia nada estranho no carro, a história era plausível, pensei de novo no preço da passagem e pensei: “Foda-se…”

Virei para o cara e disse: “Então tudo bem, vamo nessa.”

O doutor agradeceu todo sério. “Muitíssimo obrigado, como te disse, é um favor que você me faz. Mas chega de conversa, né? Vamos embora.”

Coloquei a mochila no banco de trás, entramos no carro, fechamos as portas, ele virou a chave na ignição, o motor ligou e saímos do estacionamento rumo à via Dutra.

“Por sinal meu nome é Ivan e o teu?”

“Richard.”

“Prazer Richard, se importa se eu ligar o ar-condicionado?” Eu não ia dizer que não, estranhando estar viajando num carro confortável que não fazia parte do plano. Depois de um tempo ele quebrou o silêncio desconfortável.  “Você gosta de que tipo de música? Pode pegar a caixa de cassetes debaixo no banco de traz, fica a vontade de colocar o que você quiser.”

“Valeu, mas eu estou legal.”

“Se importa então se eu ligar o rádio, então?” Ele colocou numa estação de música ligeiramente brega. Não gostei, mas por estar de carona fiquei quieto. Na subida da serra já estávamos conversando. Quando chegamos em cima, o ar já estava mais frio, demos uma parada num posto semi vazio, tomamos café, comi um sanduíche e voltamos para o carro. Na altura de Resende, a metade do caminho, o doutor disse que estava cansado.

“Não estou conseguindo dirigir, deveria ter tomado mais café. Os olhos já estão quase fechando. ”

“Sem problemas, estou acordadão, tenho carteira de motorista, quer ver? Para o carro e a gente troca. ” Falei, animado com a ideia de pegar a Dutra à noite.

Ele retrucou com um olhar estranho e sorriu. “Sabe o que é? Estou doido para passar a noite num motel contigo. ”

A ficha caiu. Me senti um idiota completo por ter caído no papo, mas o que ele queria não ia rolar de jeito nenhum.

“Não senhor”, respondi resoluto. “Estou aqui pela carona, não tem nada de noite gay no plano!”

Dali em diante rolou uma batalha de insistência versus recusa.

“Mas como é que você pode dizer que não gosta de uma coisa que nunca provou?’

“Amigo, nunca provei nem vou provar. E você? Nasceu veado ou foi porque apanhava muito na escola?”

“Isto não vem ao caso, mas não ia ser legal a gente ficar tirando a cueca um do outro num quarto gostoso?”

“Meu irmão, dá para parar o carro na próxima parada?”

“Mas daqui a pouco estamos chegando!”

“Então que porra é essa de parar em motel?”

“É que eu estou exausto!”

“Se você está exausto deixa eu dirigir, olha a minha carteira aqui!”

O doutor não se dava por vencido e comecei a me preocupar com sua recusa de parar. Quando amanheceu, já estávamos nos aproximando da periferia de São Paulo. Finalmente convencido de que não ia acontecer nada, ele parou o carro num ponto de ônibus. Dando graças por ser mais forte que aquele maníaco pentelho, peguei minhas coisas e saí daquele inferno.

Assim que minha atenção se desviou do carro desaparecendo na rodovia e se voltou para os arredores, percebi que estava num lugar que parecia uma favela. A próxima hora e meia seria um curso intensivo de realidade urbana brasileira. Já tinha subido favela para comprar bagulho, mas era completamente ignorante sobre o dia a dia de pessoas humildes e trabalhadoras. Teoricamente, sempre soube que tinham uma vida difícil, mesmo assim, foi um choque ver, em primeira mão, o que se passava.

Ainda estava escuro e frio, mas o  ponto de ônibus descoberto já estava amontoado. Havia lanchonetes próximas, todas muito simples, onde tinha gente tomando café da manhã. O aroma da bebida sendo o único conforto na área.

As feições da maioria, senão todas as pessoas ali, eram Nordestinas. Com certeza ou eles ou os pais tinham saído de lá em busca de uma vida melhor. Seus rostos pareciam com os que tinha visto em minhas viagens, mas a falta de sol, o frio, os efeitos da vida na metrópole tinham tido seus efeitos. Suas peles já estavam cinza, suas caras com uma expressão automata. Moloch estava se alimentado da sua vivacidade.

Cansado, chateado com a minha burrice em ter aceito aquela carona, com frio e com um pouco de fome fiquei esperando o ônibus. Ao olhar para aquele povo, não podia deixar de acreditar que uma força maior havia me colocado ali para me mostrar o outro lado da moeda das minhas aventuras de verão.

Quando o ônibus chegou, me apertei com os outros para entrar na condução já lotada. Sem poder mexer um dedo, passamos pelas enormes fábricas da Ford, Volkswagen, Gessy Lever e outras multinacionais. Alguns passageiros saltaram nesses complexos isolados, mas o destino da maioria era o mesmo que o meu: o Centro da Cidade. Amontoados como sardinhas numa lata por uma hora e meia, nos contorcendo quando alguém tinha que passar para descer, tive uma amostra da rotina diária daquelas pessoas. Elas teriam que fazer a mesma viagem de volta à noite e teriam que suportar aquelas mesmas condições quase todo santo dia de suas vidas. Tudo isso para receberem um salário miserável e serem tratados como cidadãos de segunda categoria em seus empregos, sem qualquer perspectiva de melhora.

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