Samba Perdido – Capítulo 26 – parte 02

Nas praias de Salvador, assim como nas das outras cidades por onde passariamos no Nordeste, haviam figuras há muito desaparecidas nas do Rio: vendedores de caranguejos carregando pencas deles ainda vivos e amarrados a um pedaço de pau, vendedores de queijo coalho derretido na hora, carroças oferecendo sorvete caseiro, vendedores de abacaxi, além das tradicionais baianas vendendo acarajé e outras delícias locais. Separando a linha da costa dos intermináveis calçadões, uma infinidade de quiosques de madeira cobertos de palha vendiam cerveja, água de coco e iguarias da cozinha baiana preparadas com frutos do mar da área. Nas praias afastadas, assim como no Posto seis de Copacabana,  ainda havia pescadores com suas redes e barcos de madeira remanescentes de um passado em que a elite sequer sonhava em expor suas peles brancas ao sol e, Deus o livre, pegar um bronze.

Como no Rio, a praia era o coração do verão. Na segunda visita a Salvador já conhecia as praias certas. As melhores, Piatã e Itapuã eram distantes. Até fomos lá uma ou duas vezes mas a viagem de õnibus era longa e desconfortável. Por isso, adotamos o Porto da Barra que ficava do lado de onde estávamos dormindo. Ela tinha um clima parevido com o do Posto Nove em Ipanema. Localizada um pouco antes da saída da Baía de Todos os Santos, apesar de não ser oceânica as correntes se encarregavam de deixar o mar limpo. Sua água calma e morna era uma delícia e o grande número de pequenos barcos de pesca ancorados em frente davam um charme único ao lugar. Podíamos nadar até eles, pular para dentro e desfutar o luxo de relaxar flutuando sob o sol escaldante.

A hora certa para se chegar era depois do almoço, a hora certa de sair de sair era bem depois do pôr do sol, que volta e meia iamos ver atrás do Farol. Igual ao Posto Nove, aquela praia atraía a moçada em busca curtição, música, amigos novos e interessantes e, é claro, sexo. Talvez até amor. Nao demorou muito para Pedro e eu começarmos a conhecer o pessoal da terra. Em Salvador, como em todo o Nordeste, a rapaziada gostava de ser vista com pessoas de fora e convites para festas eram frequentes e sempre bem-vindos. 

“Hoje à noite vai ter um som porreta na casa de Capilé. O lugar é massa; um casarão antigo na Ribeira. Apareçam lá! Peguem o endereço.”

As festas eram sempre excelentes, com baseados circulando em todos os cômodos, gente jovem e bonita de todas as cores, muito riso e muito charme. Sendo os baianos poetas natos, havia muitas discussões coloridas e acaloradas acerca de cultura, musica, política e filosofia. Havia também o atrativo, quase inconfessável, de oferecerem comida e bebida de graça e de não se importarem com gente passando a noite e dormindo nos cantos. Teve uma festa que a gente foi que durou o fim de semana inteiro.

Se você não tivesse a sorte de estar transando no banheiro – quando o Pedro sumia já sabia onde ele estava – o melhor lugar era a cozinha, onde os convidados compartilhavam a animação com o dono da casa. Havia sempre um quarto ou uma varanda com pessoas reuniadas em torno de um violonista de talento. A qualidade é a quantidade deles era impressionante. Nunca consegui entender como nunca alcançariam sucesso enquanto tantas bandas ruins estourariam no Rio e São Paulo nos anos 1980.

Às vezes, também tocava, mas logo percebi que para causar uma boa impressão em Salvador, tinha que me ater ao rock que ninguém se sentia à vontade para tocar por ser fácil demais. Um local passaria vergonha depois de alguém tocar suas próprias músicas ou de exalar talento interpretando uma de Caetano Veloso, Gilberto Gil e dos Novos Baianos. Só que como nunca conseguiria competir com o que faziam de melhor, descobri que um carioca tocando rock ou reggae era uma novidade bem-vinda, principalmente se cantasse em inglês. Eu conseguia impressionar com Bob Marley, Jimi Hendrix, Pink Floyd e Rolling Stones, algo que muitos nunca tinham ouvido tocado em inglês “legitimo”.

*

A farra, a praia, conhecer pessoas novas, tocar violão e tentar – e, às vezes, conseguir –  transar eram apenas um lado da nossa aventura de verão. Nosso meio de transporte, as caronas, eram um dos pontos altos da nossa turnê Nordestina. A rotina para pegá-las era sempre a mesma: chegar de ônibus até um posto de gasolina na rodovia e lá ir de caminhão em caminhão pedindo uma carona para nosso próximo destino. Muitos dos motoristas mandavam a gente ir embora na hora, mas alguns até apreciavam nossa companhia inofensiva e, talvez, interessante.

A malha ferroviária brasileira é quase inexistente e apesar de 80% da população do país viver perto ou junto à costa, ninguém parece ter tido a ideia de transportar mercadorias por navio. Pelo contrário, quase todo o transporte entre as vastas distâncias é feito por estradas, motivo pelo qual havia um exército de motoristas de caminhão. Como qualquer outra categoria de trabalhadores, eram explorados, dormindo muito pouco e viajando dias a fio pelas estradas malconservadas do país. Faziam isso correndo o risco de serem vítimas de assaltantes e de policiais corruptos. Mesmo assim, os caminhoneiros que conhecemos eram pessoas espetaculares que possuíam sua própria cultura e um forte senso de camaradagem. Eles conheciam todas as curvas, saliências e buracos à frente, bem como os bons e maus lugares em termos de segurança, comida, diversão e mulheres. Todos tinham grandes histórias para contar e as famosas namoradas, ou até mesmo famílias, em cada parada.

Na maioria das vezes, íamos com o camioneiro na cabine. Normalmente havia uma cama de bom tamanho atrás do banco onde podíamos nos revezar para um cochilo. Outras vezes tínhamos que ir na carroceria, vivendo a liberdade mágica da BR trazida pelo ar livre, pelo céu aberto, pelos barulhos e pelo vento. À noite, viamos os faróis passando voados, as cidades na distância e as estrelas cadentes sobre montanhas enluaradas. Durante o dia, o sol forte trazia o cheiro doce da cana-de-açúcar que vinha das plantações ao lado da estrada. 

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Samba Perdido – Capítulo 26 – parte 01

Capítulo 26

 

“No Farol da Barra, o encontro é pouco
A conversa é curta, tudo é tão rápido como
se furta”

Farol da Barra - Novos Baianos

 

A próxima parada era Salvador onde iríamos ficar na casa de uma amiga com quem tinha tido um caso em Mauá. Rochele era mignon e uma gata, seu jeito inocente e sua voz suave escondia um lado selvagem e irresistível. O tom marrom da sua pele e suas feições possivelmente árabes a faziam parecer indiana. Por estar na moda, ela realçava o look usando vestidos soltos e batas e deixava seus cabelos escuros, longos e encaracolados nas pontas fazerem o resto. 

Rochele estava hospedada num apartamento perto do Farol da Barra, a Ipanema de Salvador . O bairro era bonito e tinha uma das praias mais bem frequentadas de cidade, o Porto da Barra, o posto nove de lá. Tambem tinha o Farol com vista para a lindíssima e enorme Baía de Todos os Santos. A rapaziada mais antenada sempre ia ali para curtir o pôr do sol.  Em frente, havia um espaço livre e grande onde, durante o verão havia shows carnavalescos gratuitos que atraiam multidões. Aquela maravilha ficava a um quarteirão de onde a gente ia ficar. 

O endereço perfeito não era o único motivo de estarmos ansiosos para chegar depois de um dia inteiro pulando de um caminhão em caminhão. Além de nos vermos livres dos mosquitos, teríamos um banheiro decente, camas de verdade e ar condicionado. Para mim, ainda havia a possibilidade de reviver o caso e passar noites em companhia feminina para aliviar a seca de Trancoso. 

Só que quando batemos na porta, não foi a a Rochele quem atendeu, foi um cara com sotaque francês e jeito de almofadinha. 

 “Sim, posso ajudarr em alguma coisa?”

Não acreditei, tinha conferido o endereço várias vezes com ela antes de sair do Rio e nenhum francês havia sido mencionado.  Por outro lado, a conhecia o suficiente bem para saber que de jeito nenhum estaria morando com um estrangeiro em Salvador.

Decepcionado respondi: “Desculpa, devo ter batido na porta errada.” 

Quando o cara estava para fechar a porta, coçei a cabeça e antes de aceitar que a danada tinha me dado o endereço errado de propósito, por via das dúvidas, perguntei: “Por acaso você sabe se no prédio tem uma garota carioca com cara de indiana, baixinha? O nome dela é Rochele. Talvez seja uma vizinha.”

“Ah, a Rochelle!” Ele me corrigiu com o sotaque “certo”. “Si, ela é a irrmã da Bebelle, minha namorrada, está morrando com a gente.” 

Ele abriu a porta um pouco mais, mediu a gente dos pés à cabeça e sem parecer muito impressionado, perguntou: “Quem devo anunciarr?”

Me segurando para não corrigir a pronúncia de Bebel, respondi: “Rique, um amigo do Rio, este é Pedro meu camarada de carona.”

“Um momento.” 

Ele fechou a porta na nossa cara sem cerimônia. No corredor, a gente ficou olhando um para a cara do outro sem saber se caía na gargalhada ou se chorava. Nem foi preciso dizer um para o outro que a gente tinha achado o cara babaca. Digerindo o ocorrido em silêncio ouvimos o francês bater numa porta. “Rochelle!! Teim uns carras do Rio lá forra parra falarr com você.”

 Demorou um pouco, a porta se abriu e a gente ouviu a Rochele responder com voz de sono: “Quem era?”

“Um deles falou que erra teu amigo, Rique.”

A gente ouviu os passos dela chegando e quando abriu porta lá estava ela com o cabelo desarrumado pela soneca me dando um sorriso amarelo. Ela perguntou para o francês, Alain, se a gente podia entrar.

“Clarro, clarro, por favorr, podeim entrrar.” 

O arcondicionado na sala estava uma delícia e fazia tempo que a gente não sentava num sofá tão confortável. Depois de reparar na decoração afro-baiana de bom gosto e voltamos a prestar atenção no Alain. “A Bebel foi darr uma volta com umas amigas. Posso oferecerr uma cerrveja? Vinho?”

A cerveja não dissipou o desconforto. Deu para reparar direto que não tinha lugar para a gente ali. Era um sala e dois quartos apertadíssimo. Dava para ver que o quarto da Rochele era mínimo. Mesmo se estivesse sozinho, duvido muito que ele tivesse liberado, ainda mais que não teria motivo para tal. Assim que ficou claro o motivo da nossa visita, ele falou na hora que não dava. Ele tinha razão, o apartamento era organizadinho demais para servir de base para dois malucos. Tinha outra coisa, pelo menos eu não estava com a menor vontade de encarar a frescurada que devia rolar ali. Contudo, nosso anfitrião se revelou mais gente boa que a gente esperava quando percebeu o que a cagada da irmã da namorada.

“Se vocês quiserrem, non vejo prroblema em vocês deixarrem as coisas aqui.” Vendo a decepção ainda estampada nas nossas caras, foi mais adiante. “Podem até vir tomarr banho e cozinharr. Mas vocês eston vendo; o aparrtamento é pequeno demais parra cinco pessoas. Desculpe.”

Depois de um papo estranho no qual poupamos a Rochelle, que não parecia muito arrependida, aceitamos deixar as coisas ali e agradecemos. Depois, descemos com a barraca para ver onde a gente podia acampar ali por perto. Exploramos a área e ficou claro que a única maneira para continuar naquele lugar privilegiado, perto da moleza de ter um chuveiro, uma latrina limpa e um lugar para cozinhar, era dormir no palco. 

Por ser o auge do verão, havia shows quase todas as noites ali, o que significava que teríamos que esperar até que todos fossem embora para subir no palco e passar a noite ali. 

Foi isso que fizemos.  Naquela primeira noite, por volta das duas da manhã subimos lá, desenrolamos os sacos de dormir no piso de madeira e , cansados da viagem, caímos no sono. Para nossa apreensão descobrimos horas mais tarde que não estávamos sós; havia uns mendigos dormindo embaixo do palco. Nunca interagimos, a não ser numa manhã quando um deles, visivelmente de ressaca, saiu para praticar a rotina de ginástica mais esdrúxula que tínhamos visto na vida.

A solução acabou sendo melhor que o esperado. O lugar se revelou seguro, retivemos as mordomias do apartamento do Alain e continuamos num dos melhores pontos da cidade. Talvez por não ter conseguido ficar zangado com a Rochelle, tivemos uma recaída e quebrei o jejum que estava me incomodando. Além disso, as pessoas achavam graça quando a gente explicava onde estava dormindo o que ajudava a quebrar o gelo nas conversas. 

*

No segundo dia saímos para explorar a cidade.

No início dos anos 1980 Salvador ainda estava alguns anos atrás do Rio. Mesmo assim, os efeitos nefastos a nova década já estavam começando a aparecer. A era do trio elétrico estava ficando obsoleta e novos gêneros de músicas de carnaval estavam aparecendo. Nos bairros populares, o reggae havia tocado os ouvidos, corações e mentes da comunidade culturalmente dominante na cidade: a afrodescendente. Nela, uma nova forma nova e adaptada de se tocar o ritmo jamaicano tinha surgido misturando o samba e o reggae, o samba-reggae. Esse genero dominava a cidade e onde quer que passassemos, quiosques, vendas, carrinhos ambulantes e pessoas comuns tocavam essa música alto para que todos pudessem ouvir, seja em rádios ou em toca-fitas .

O maior expoente do gênero era o Olodum, uma banda do Pelourinho, o bairro mais antigo de todo o país e um ícone da cultura afro-brasileira. No passado, as autoridades usavam sua praça central para punir publicamente escravisados mal comportados, fugidos ou revoltosos. Existem relatos de homens recebendo mais de cem chibatadas, molhando o poste de sangue e suor e depois tendo sal esfregado em suas feridas. Ao contrario do que acontecia em outras cidades pelo mundo onde os casarões das suas partes históricas eram habitados por cidadãos abastados, agora, os descendentes daqueles mesmos escravos moravam nas casas dos antigos opressores. A Unesco tinha inclusive tombado a área como patrimônio histórico mundial em 1985. O Olodum galvanizava essa herança em forma de música com orgulho das suas raíses africanas. Seu som reverberava por toda Salvador. Mais tarde, o a banda ganharia atenção internacional ao gravar com Paul Simon e Michael Jackson.

Por outro lado havia a novidade musical das bandas mais voltadas para o público branco e bem de vida que usavam teclados eletrônicos, caminhões futurísticos, aparelhagem de ultima geração e dançarinos performáticos numa tentativa de reinventar o trio elétrico. Elas eram bregas até dizer chega, tocando uma mistura facilmente digerível de salsa, soca e outros ritmos caribenhos. Fiquei aliviado ao saber que o Trio Elétrico de Dodô e Osmar e blocos afros e de afoxé como o Ilê Aye e o Filhos de Gandhi ainda estivessem ativos. Tivemos a oportunidade de vê-los juntamente com o Olodum e outros blocos tradicionais em eventos pré-Carnavalescos. Só que nenhum deles chegava aos pés do encontro dos trios que tinha presenciado quando fui com o Maurício.

*

 

Samba Perdido – Capítulo 21 – Parte 02

 O destino daquelas férias era a encantadora capital da Bahia, Salvador. Não dava para ir de Blues Boy, a viagem de 1.200 quilômetros seria puxada demais para um fusca antigo além de muito mais cara do que a passagem de ônibus. Também, dirigir aquela distância em uma pista simples seria um desafio grande demais para minha recém adquirida habilidade automobilística. A opção que sobrou foi encarar 30 horas de ônibus, e foi assim que fui conhecer a cidade pela qual tinha me apaixonado nos livros de Jorge Amado e na música dos Novos Baianos.

Meu companheiro de viagem dessa vez foi o Maurício, aquele do joelho machucado na Casa Rosa. Ele tinha virado ainda mais careta que o Davi e sequer era chegado em correr atrás de mulher. O negócio dele era se provar em assuntos chatos: contas, problemas de matemática e física e outras questões teóricas. 

Talvez devido a esses atributos, o cara tinha uma tendência à histeria quando ficava nervoso, o que era frequente. Seu corpo franzino não era propício a tais arroubos, já que não garantiria sua integridade fisica caso alguém reagisse com a mesma intensidade da gritaria. A sua sorte era que esses episódios pegavam os incautos de surpresa que ficavam se perguntando que porra era aquela. Os conhecidos já sabiam que não era para levar a sério.

Na segunda parada do ônibus, não deu outra, o caixa se equivocou no troco do sanduíche e isso causou um surto.

“O troco é dois e setenta, e não dois e vinte!!” o Maurício já estava com a cara toda contorcida.

“Ih, é mesmo seu moço! Deixa eu pegar os outros cinquenta centavos aqui.”

“Está querendo me roubar, né seu marginal!? Isso é inaceitável!!” Os gritos já chamando a atenção de todo mundo.

“Desculpa, doutor! Os cinquenta centavos estão aqui.” Disse o cara já arrependido de ter acordado naquele dia.

Isso, por alguma razão, fez o Maurício ficar com ainda mais raiva. “Desculpa o caralho, seu ladrão safado!! não tem desculpa! Cadê o gerente desse estabelecimento!! Gerente!!! Gerente!!” No canto do olho espiei um sujeito com pinta de gerente colocar a cabeça para fora da porta da cozinha e, depois de ver a encrenca, voltar para dentro.

“Cadê o gerente!? Não tem gerente nessa porcaria!!?? Eu quero a polícia aqui para prender esse ladrão agora.”

 A essa altura, a parada do ônibus inteira estava presenciando o mico, chocada. Ainda que não desse para se acostumar, já conhecia esse lado do meu amigo e tive que ir lá para acalmar a situação.

“Aê Maurício, o ônibus já tá saindo, o motorista tá esperando. Deixa isso para lá, vamos embora!”

“Eu não saio daqui antes de prenderem esse marginal!!” O tom ainda não tinha baixado.

“Maurício, são cinquenta centavos, o cara já admitiu que estava errado e te ofereceu o troco certo.”

“Mas ele é um marginal! Tem que ir preso!” O tom dessa vez baixou e aquela foi só para mim, embora todos também tivessem ouvido.

“É, mas até acharem o gerente, chamarem a polícia, você prestar depoimento e tudo mais, o ônibus já vai ter partido e a gente não vai ter como chegar a Salvador. Você já mandou o teu recado. Duvido que o cara faça isso de novo.”

 Essa finalmente o sossegou, mas antes de sair vieram os argumentos conclusivos. “É por isso que este país não vai para frente! Um vagabundo desses tenta me roubar e fica todo mundo do lado dele!!”

 O Maurício era um cara bem-intencionado, mas era difícil. Nossos país eram amigos, nossas irmãs eram amigas, ele também era sócio do Paissandu e vivíamos jogando bola juntos até depois que tinha me juntado à “esquadrilha da fumaça”. Havia um fio de lealdade inquebrável depois de anos de amizade. Entretanto, só esperava que aquele constrangimento não fosse o presságio de umas férias pesadelo. 

*

Chegamos a Salvador esperando um dos melhores – senão o melhor – carnaval no mundo. De minha parte, estava doido para ver o trio elétrico. Ainda nos seus dias de glória, esse era um gênero musical que, de acordo com os baianos, foi o pioneiro mundial no uso da guitarra elétrica. Nos anos 1940, dois músicos, Dodô e Osmar, descobriram que colocar cera de baleia ao redor dos captadores permitia que amplificassem cordas de aço num braço de bandolim sem causar microfonia. Foi assim que criaram o “pau elétrico” e quando viram que o som caía bem com frevo, foram para o carnaval de rua e o estilo virou febre. Já no fim dos anos 1960, com a chegada do rock, os trios adicionaram mais instrumentos e percussão para dar mais peso às suas performances, os instrumentos melhoraram, as influências mudaram e o som se tornou mais afiado.

Durante o carnaval, caminhões apinhados de aparelhagem de som e de alto-falantes  percorriam as ruas de paralelepípedos da parte histórica da cidade com os músicos se equilibrando para não cair enquanto tocavam. As milhares de pessoas acompanhando essas fortalezas musicais se lançavam num frenesi semelhante ao de uma procissão hindu misturada com um show de punk rock.

Contrabalançando a loucura amplificada dos trios, havia blocos rústicos que desfilavam a pé. Tocavam o ritmo afro-brasileiro mais suave do afoxé. Contando apenas com seus tambores e vozes para contagiar a multidão, faziam com que ela respondesse de uma maneira mais calma, mas com a mesma intensidade aos cantos que faziam linha direta com o continente Africano. Dentre eles estavam os Filhos de Gandhi, um grupo originado de trabalhadores da estiva. Eles saiam de túnicas brancas e nos seus desfiles paravam para fazer passos ensaiados, puxavam refrões familiares ao povo – muitos do Candomblé – e passavam sua mensagem de paz baseada nos ensinamentos e na filosofia de Mahatma Gandhi. 

O palco para essa folia especial eram os sobrados e as calçadas de uma das primeiras metrópoles do continente americano, a primeira capital do Brasil. Os blocos percorriam suas ruas num caminho em forma de um oito. Na junção central, onde as duas voltas se encontravam, ficava a Praça Castro Alves, o epicentro do Carnaval. Nosso hotel ficava logo depois da esquina. As bandas paravam lá para permitir que a multidão engrossasse e então tocavam seus maiores sucessos. Era comum duas bandas vindas de direções opostas chegarem na praça juntas. Esse fenômeno era chamado de encontro dos trios. Quando isso acontecia, as bandas se intercalavam e competiam pelo apreço da multidão enlouquecida. Quem saía ganhando eram as dezenas, às vezes centenas, de milhares de foliões pulando na praça.

Por uma sorte incrível, estava lá no encontro entre a realeza do carnaval de Salvador – os Novos Baianos de um lado e o Trio Elétrico de Dodô e Osmar do outro. O primeiro, a minha banda preferida de todos os tempos e o segundo, os criadores do trio elétrico que contavam com o melhor guitarrista do gênero, Armandinho Macedo, filho de Osmar. Depois de se instalarem nas extremidades da Praça Castro Alves, os dois trios deram uma pequena pausa enquanto os músicos e a multidão se preparavam para o que eles sabiam ser um dos pontos altos do Carnaval daquele ano. 

Quem pegou primeiro no microfone foi Paulinho Boca de Cantor, vocalista dos Novos Baianos, que saudou a massa. 

“Boa tarde, Salvador!”

Não teve uma alma na praça que não tenha ido à loucura.

“Como é bom estar aqui nessa praça, na nossa terra e tocando para a nossa gente. Viva Salvador e viva o Carnaval da Bahia!” Novamente a massa foi ao delírio.

” Queria aproveitar para mandar um abraço para o Moraes, o nosso irmão Moraes Moreira, que está do outro lado da praça com o trio de Dodô e Osmar.” Moraes tinha saído dos Novos Baianos e no Carnaval ele cantava com o trio “rival”. “Fala Moraes!! Fala Armandinho, Dodô e Osmar! A Bahia saúda vocês!!”

Quando a gritaria baixou, o Moraes respondeu: “Fala meu querido Paulinho! Um abraço e muito carinho para meus irmãos dos Novos Baianos!” Depois, ele se voltou para a multidão. “Fala Salvador! Fala Bahia!! Muito amor e muita paz para todos vocês!” 

Com noção de timing, Moraes continuou. “Há cinquenta anos atrás, Osmar aqui do meu lado e Dodô começaram o trio elétrico e fizeram do Carnaval da Bahia o melhor do mundo. Esta música e uma homenagem a eles. Viva Dodô e Osmar!”

Ele olhou para a banda, deu o sinal e a guitarra baiana do Armandinho rasgou o ar da praça. Depois do solo curto, mas espetacular, o resto da banda veio atrás.

Dodô! Dodô!

Antes do gringo a guitarra ele inventou,

Osmar! Osmar!

O Carnaval veio o trio eletrizar.

Viva Dodô e Osmar!

Com a música veio o deleite, era como se a energia do Carnaval estivesse jorrando do céu e se espalhando pela praça. Depois da primeira música, os Novos Baianos retrucaram com uma marcha de Carnaval do Caetano Veloso.

A praça Castro Alves é do povo,

Como o céu é do avião,

Um frevo novo, eu peço um frevo novo,

Todo mundo na praça 

E muita gente sem graça no salão…

Em toda e qualquer música a galera reunida parecia estar celebrando uma vitória incessante de Copa do Mundo. A energia irresistível parecia fazer a multidão se fundir num ente único.

*

Eu ia sozinho. O Maurício se recusava a se misturar com o povão, ele odiava multidões e gente esbarrando nele. Eu não queria perder aquela energia por nada nesse mundo. Assim, enquanto mergulhava a fundo no Carnaval de rua que não parava durante os quatro dias de festa, ele ia para bailes de Carnaval em clubes que eram uma escolha mais sensata, mas completamente sem graça. 

Estava ciente do que poderia acontecer se deixássemos nossas diferenças crescerem mais do que já estavam. Já tinha quase perdido a amizade do Davi e não queria repetir isso com o Maurício. A única coisa que a gente fazia junto era comer e sair de dia para descobrir as praias de Salvador.  Por isso, na última noite de Carnaval, concordei em fazer alguma coisa juntos. Decidimos entrar de penetra no baile mais exclusivo de Salvador, o do requintado Clube Baiano de Tênis. Este era um clube frequentado pela elite da cidade onde poucas pessoas realmente jogavam tênis, mas onde muita gente gostava de ter seu home associado a um esporte britânico considerado chique.

A segurança na porta estava pesada, mas os muros que cercavam o clube eram baixos e fáceis de pular. Não tardou muito para nos juntarmos a alguns passantes que haviam tido a mesma ideia que a gente. O Maurício foi um dos primeiros a pular o muro – e um dos poucos a obter sucesso. Antes da minha vez, a polícia chegou correndo e a gente teve que se dispersar. Eu e alguns dos meus camaradas de fuga achamos uma outra parte mais afastada do muro, discreta e igualmente fácil. Pulamos e caímos no meio das quadras de tênis. Assim que pusemos os pés no chão, enormes cães vieram correndo em nossa direção. Sem pensar duas vezes, subimos o muro de volta com uma rapidez de desenho animado. Depois disso desisti. Voltei ao hotel tão desanimado que nem tive vontade de me juntar a folia pegando fogo a meia quadra de distância. O Carnaval de Salvador tinha terminado para mim.

O Maurício voltou de madrugada. Como era de se esperar, não tinha comido ninguém. Esse também tinha sido o meu caso em Salvador, mas pelo menos tinha vivenciado um dos melhores encontros de trios da história.

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