Nas praias de Salvador, assim como nas das outras cidades por onde passariamos no Nordeste, haviam figuras há muito desaparecidas nas do Rio: vendedores de caranguejos carregando pencas deles ainda vivos e amarrados a um pedaço de pau, vendedores de queijo coalho derretido na hora, carroças oferecendo sorvete caseiro, vendedores de abacaxi, além das tradicionais baianas vendendo acarajé e outras delícias locais. Separando a linha da costa dos intermináveis calçadões, uma infinidade de quiosques de madeira cobertos de palha vendiam cerveja, água de coco e iguarias da cozinha baiana preparadas com frutos do mar da área. Nas praias afastadas, assim como no Posto seis de Copacabana,  ainda havia pescadores com suas redes e barcos de madeira remanescentes de um passado em que a elite sequer sonhava em expor suas peles brancas ao sol e, Deus o livre, pegar um bronze.

Como no Rio, a praia era o coração do verão. Na segunda visita a Salvador já conhecia as praias certas. As melhores, Piatã e Itapuã eram distantes. Até fomos lá uma ou duas vezes mas a viagem de õnibus era longa e desconfortável. Por isso, adotamos o Porto da Barra que ficava do lado de onde estávamos dormindo. Ela tinha um clima parevido com o do Posto Nove em Ipanema. Localizada um pouco antes da saída da Baía de Todos os Santos, apesar de não ser oceânica as correntes se encarregavam de deixar o mar limpo. Sua água calma e morna era uma delícia e o grande número de pequenos barcos de pesca ancorados em frente davam um charme único ao lugar. Podíamos nadar até eles, pular para dentro e desfutar o luxo de relaxar flutuando sob o sol escaldante.

A hora certa para se chegar era depois do almoço, a hora certa de sair de sair era bem depois do pôr do sol, que volta e meia iamos ver atrás do Farol. Igual ao Posto Nove, aquela praia atraía a moçada em busca curtição, música, amigos novos e interessantes e, é claro, sexo. Talvez até amor. Nao demorou muito para Pedro e eu começarmos a conhecer o pessoal da terra. Em Salvador, como em todo o Nordeste, a rapaziada gostava de ser vista com pessoas de fora e convites para festas eram frequentes e sempre bem-vindos. 

“Hoje à noite vai ter um som porreta na casa de Capilé. O lugar é massa; um casarão antigo na Ribeira. Apareçam lá! Peguem o endereço.”

As festas eram sempre excelentes, com baseados circulando em todos os cômodos, gente jovem e bonita de todas as cores, muito riso e muito charme. Sendo os baianos poetas natos, havia muitas discussões coloridas e acaloradas acerca de cultura, musica, política e filosofia. Havia também o atrativo, quase inconfessável, de oferecerem comida e bebida de graça e de não se importarem com gente passando a noite e dormindo nos cantos. Teve uma festa que a gente foi que durou o fim de semana inteiro.

Se você não tivesse a sorte de estar transando no banheiro – quando o Pedro sumia já sabia onde ele estava – o melhor lugar era a cozinha, onde os convidados compartilhavam a animação com o dono da casa. Havia sempre um quarto ou uma varanda com pessoas reuniadas em torno de um violonista de talento. A qualidade é a quantidade deles era impressionante. Nunca consegui entender como nunca alcançariam sucesso enquanto tantas bandas ruins estourariam no Rio e São Paulo nos anos 1980.

Às vezes, também tocava, mas logo percebi que para causar uma boa impressão em Salvador, tinha que me ater ao rock que ninguém se sentia à vontade para tocar por ser fácil demais. Um local passaria vergonha depois de alguém tocar suas próprias músicas ou de exalar talento interpretando uma de Caetano Veloso, Gilberto Gil e dos Novos Baianos. Só que como nunca conseguiria competir com o que faziam de melhor, descobri que um carioca tocando rock ou reggae era uma novidade bem-vinda, principalmente se cantasse em inglês. Eu conseguia impressionar com Bob Marley, Jimi Hendrix, Pink Floyd e Rolling Stones, algo que muitos nunca tinham ouvido tocado em inglês “legitimo”.

*

A farra, a praia, conhecer pessoas novas, tocar violão e tentar – e, às vezes, conseguir –  transar eram apenas um lado da nossa aventura de verão. Nosso meio de transporte, as caronas, eram um dos pontos altos da nossa turnê Nordestina. A rotina para pegá-las era sempre a mesma: chegar de ônibus até um posto de gasolina na rodovia e lá ir de caminhão em caminhão pedindo uma carona para nosso próximo destino. Muitos dos motoristas mandavam a gente ir embora na hora, mas alguns até apreciavam nossa companhia inofensiva e, talvez, interessante.

A malha ferroviária brasileira é quase inexistente e apesar de 80% da população do país viver perto ou junto à costa, ninguém parece ter tido a ideia de transportar mercadorias por navio. Pelo contrário, quase todo o transporte entre as vastas distâncias é feito por estradas, motivo pelo qual havia um exército de motoristas de caminhão. Como qualquer outra categoria de trabalhadores, eram explorados, dormindo muito pouco e viajando dias a fio pelas estradas malconservadas do país. Faziam isso correndo o risco de serem vítimas de assaltantes e de policiais corruptos. Mesmo assim, os caminhoneiros que conhecemos eram pessoas espetaculares que possuíam sua própria cultura e um forte senso de camaradagem. Eles conheciam todas as curvas, saliências e buracos à frente, bem como os bons e maus lugares em termos de segurança, comida, diversão e mulheres. Todos tinham grandes histórias para contar e as famosas namoradas, ou até mesmo famílias, em cada parada.

Na maioria das vezes, íamos com o camioneiro na cabine. Normalmente havia uma cama de bom tamanho atrás do banco onde podíamos nos revezar para um cochilo. Outras vezes tínhamos que ir na carroceria, vivendo a liberdade mágica da BR trazida pelo ar livre, pelo céu aberto, pelos barulhos e pelo vento. À noite, viamos os faróis passando voados, as cidades na distância e as estrelas cadentes sobre montanhas enluaradas. Durante o dia, o sol forte trazia o cheiro doce da cana-de-açúcar que vinha das plantações ao lado da estrada. 

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