O destino daquelas férias era a encantadora capital da Bahia, Salvador. Não dava para ir de Blues Boy, a viagem de 1.200 quilômetros seria puxada demais para um fusca antigo além de muito mais cara do que a passagem de ônibus. Também, dirigir aquela distância em uma pista simples seria um desafio grande demais para minha recém adquirida habilidade automobilística. A opção que sobrou foi encarar 30 horas de ônibus, e foi assim que fui conhecer a cidade pela qual tinha me apaixonado nos livros de Jorge Amado e na música dos Novos Baianos.
Meu companheiro de viagem dessa vez foi o Maurício, aquele do joelho machucado na Casa Rosa. Ele tinha virado ainda mais careta que o Davi e sequer era chegado em correr atrás de mulher. O negócio dele era se provar em assuntos chatos: contas, problemas de matemática e física e outras questões teóricas.
Talvez devido a esses atributos, o cara tinha uma tendência à histeria quando ficava nervoso, o que era frequente. Seu corpo franzino não era propício a tais arroubos, já que não garantiria sua integridade fisica caso alguém reagisse com a mesma intensidade da gritaria. A sua sorte era que esses episódios pegavam os incautos de surpresa que ficavam se perguntando que porra era aquela. Os conhecidos já sabiam que não era para levar a sério.
Na segunda parada do ônibus, não deu outra, o caixa se equivocou no troco do sanduíche e isso causou um surto.
“O troco é dois e setenta, e não dois e vinte!!” o Maurício já estava com a cara toda contorcida.
“Ih, é mesmo seu moço! Deixa eu pegar os outros cinquenta centavos aqui.”
“Está querendo me roubar, né seu marginal!? Isso é inaceitável!!” Os gritos já chamando a atenção de todo mundo.
“Desculpa, doutor! Os cinquenta centavos estão aqui.” Disse o cara já arrependido de ter acordado naquele dia.
Isso, por alguma razão, fez o Maurício ficar com ainda mais raiva. “Desculpa o caralho, seu ladrão safado!! não tem desculpa! Cadê o gerente desse estabelecimento!! Gerente!!! Gerente!!” No canto do olho espiei um sujeito com pinta de gerente colocar a cabeça para fora da porta da cozinha e, depois de ver a encrenca, voltar para dentro.
“Cadê o gerente!? Não tem gerente nessa porcaria!!?? Eu quero a polícia aqui para prender esse ladrão agora.”
A essa altura, a parada do ônibus inteira estava presenciando o mico, chocada. Ainda que não desse para se acostumar, já conhecia esse lado do meu amigo e tive que ir lá para acalmar a situação.
“Aê Maurício, o ônibus já tá saindo, o motorista tá esperando. Deixa isso para lá, vamos embora!”
“Eu não saio daqui antes de prenderem esse marginal!!” O tom ainda não tinha baixado.
“Maurício, são cinquenta centavos, o cara já admitiu que estava errado e te ofereceu o troco certo.”
“Mas ele é um marginal! Tem que ir preso!” O tom dessa vez baixou e aquela foi só para mim, embora todos também tivessem ouvido.
“É, mas até acharem o gerente, chamarem a polícia, você prestar depoimento e tudo mais, o ônibus já vai ter partido e a gente não vai ter como chegar a Salvador. Você já mandou o teu recado. Duvido que o cara faça isso de novo.”
Essa finalmente o sossegou, mas antes de sair vieram os argumentos conclusivos. “É por isso que este país não vai para frente! Um vagabundo desses tenta me roubar e fica todo mundo do lado dele!!”
O Maurício era um cara bem-intencionado, mas era difícil. Nossos país eram amigos, nossas irmãs eram amigas, ele também era sócio do Paissandu e vivíamos jogando bola juntos até depois que tinha me juntado à “esquadrilha da fumaça”. Havia um fio de lealdade inquebrável depois de anos de amizade. Entretanto, só esperava que aquele constrangimento não fosse o presságio de umas férias pesadelo.
*
Chegamos a Salvador esperando um dos melhores – senão o melhor – carnaval no mundo. De minha parte, estava doido para ver o trio elétrico. Ainda nos seus dias de glória, esse era um gênero musical que, de acordo com os baianos, foi o pioneiro mundial no uso da guitarra elétrica. Nos anos 1940, dois músicos, Dodô e Osmar, descobriram que colocar cera de baleia ao redor dos captadores permitia que amplificassem cordas de aço num braço de bandolim sem causar microfonia. Foi assim que criaram o “pau elétrico” e quando viram que o som caía bem com frevo, foram para o carnaval de rua e o estilo virou febre. Já no fim dos anos 1960, com a chegada do rock, os trios adicionaram mais instrumentos e percussão para dar mais peso às suas performances, os instrumentos melhoraram, as influências mudaram e o som se tornou mais afiado.
Durante o carnaval, caminhões apinhados de aparelhagem de som e de alto-falantes percorriam as ruas de paralelepípedos da parte histórica da cidade com os músicos se equilibrando para não cair enquanto tocavam. As milhares de pessoas acompanhando essas fortalezas musicais se lançavam num frenesi semelhante ao de uma procissão hindu misturada com um show de punk rock.
Contrabalançando a loucura amplificada dos trios, havia blocos rústicos que desfilavam a pé. Tocavam o ritmo afro-brasileiro mais suave do afoxé. Contando apenas com seus tambores e vozes para contagiar a multidão, faziam com que ela respondesse de uma maneira mais calma, mas com a mesma intensidade aos cantos que faziam linha direta com o continente Africano. Dentre eles estavam os Filhos de Gandhi, um grupo originado de trabalhadores da estiva. Eles saiam de túnicas brancas e nos seus desfiles paravam para fazer passos ensaiados, puxavam refrões familiares ao povo – muitos do Candomblé – e passavam sua mensagem de paz baseada nos ensinamentos e na filosofia de Mahatma Gandhi.
O palco para essa folia especial eram os sobrados e as calçadas de uma das primeiras metrópoles do continente americano, a primeira capital do Brasil. Os blocos percorriam suas ruas num caminho em forma de um oito. Na junção central, onde as duas voltas se encontravam, ficava a Praça Castro Alves, o epicentro do Carnaval. Nosso hotel ficava logo depois da esquina. As bandas paravam lá para permitir que a multidão engrossasse e então tocavam seus maiores sucessos. Era comum duas bandas vindas de direções opostas chegarem na praça juntas. Esse fenômeno era chamado de encontro dos trios. Quando isso acontecia, as bandas se intercalavam e competiam pelo apreço da multidão enlouquecida. Quem saía ganhando eram as dezenas, às vezes centenas, de milhares de foliões pulando na praça.
Por uma sorte incrível, estava lá no encontro entre a realeza do carnaval de Salvador – os Novos Baianos de um lado e o Trio Elétrico de Dodô e Osmar do outro. O primeiro, a minha banda preferida de todos os tempos e o segundo, os criadores do trio elétrico que contavam com o melhor guitarrista do gênero, Armandinho Macedo, filho de Osmar. Depois de se instalarem nas extremidades da Praça Castro Alves, os dois trios deram uma pequena pausa enquanto os músicos e a multidão se preparavam para o que eles sabiam ser um dos pontos altos do Carnaval daquele ano.
Quem pegou primeiro no microfone foi Paulinho Boca de Cantor, vocalista dos Novos Baianos, que saudou a massa.
“Boa tarde, Salvador!”
Não teve uma alma na praça que não tenha ido à loucura.
“Como é bom estar aqui nessa praça, na nossa terra e tocando para a nossa gente. Viva Salvador e viva o Carnaval da Bahia!” Novamente a massa foi ao delírio.
” Queria aproveitar para mandar um abraço para o Moraes, o nosso irmão Moraes Moreira, que está do outro lado da praça com o trio de Dodô e Osmar.” Moraes tinha saído dos Novos Baianos e no Carnaval ele cantava com o trio “rival”. “Fala Moraes!! Fala Armandinho, Dodô e Osmar! A Bahia saúda vocês!!”
Quando a gritaria baixou, o Moraes respondeu: “Fala meu querido Paulinho! Um abraço e muito carinho para meus irmãos dos Novos Baianos!” Depois, ele se voltou para a multidão. “Fala Salvador! Fala Bahia!! Muito amor e muita paz para todos vocês!”
Com noção de timing, Moraes continuou. “Há cinquenta anos atrás, Osmar aqui do meu lado e Dodô começaram o trio elétrico e fizeram do Carnaval da Bahia o melhor do mundo. Esta música e uma homenagem a eles. Viva Dodô e Osmar!”
Ele olhou para a banda, deu o sinal e a guitarra baiana do Armandinho rasgou o ar da praça. Depois do solo curto, mas espetacular, o resto da banda veio atrás.
Dodô! Dodô!
Antes do gringo a guitarra ele inventou,
Osmar! Osmar!
O Carnaval veio o trio eletrizar.
Viva Dodô e Osmar!
Com a música veio o deleite, era como se a energia do Carnaval estivesse jorrando do céu e se espalhando pela praça. Depois da primeira música, os Novos Baianos retrucaram com uma marcha de Carnaval do Caetano Veloso.
A praça Castro Alves é do povo,
Como o céu é do avião,
Um frevo novo, eu peço um frevo novo,
Todo mundo na praça
E muita gente sem graça no salão…
Em toda e qualquer música a galera reunida parecia estar celebrando uma vitória incessante de Copa do Mundo. A energia irresistível parecia fazer a multidão se fundir num ente único.
*
Eu ia sozinho. O Maurício se recusava a se misturar com o povão, ele odiava multidões e gente esbarrando nele. Eu não queria perder aquela energia por nada nesse mundo. Assim, enquanto mergulhava a fundo no Carnaval de rua que não parava durante os quatro dias de festa, ele ia para bailes de Carnaval em clubes que eram uma escolha mais sensata, mas completamente sem graça.
Estava ciente do que poderia acontecer se deixássemos nossas diferenças crescerem mais do que já estavam. Já tinha quase perdido a amizade do Davi e não queria repetir isso com o Maurício. A única coisa que a gente fazia junto era comer e sair de dia para descobrir as praias de Salvador. Por isso, na última noite de Carnaval, concordei em fazer alguma coisa juntos. Decidimos entrar de penetra no baile mais exclusivo de Salvador, o do requintado Clube Baiano de Tênis. Este era um clube frequentado pela elite da cidade onde poucas pessoas realmente jogavam tênis, mas onde muita gente gostava de ter seu home associado a um esporte britânico considerado chique.
A segurança na porta estava pesada, mas os muros que cercavam o clube eram baixos e fáceis de pular. Não tardou muito para nos juntarmos a alguns passantes que haviam tido a mesma ideia que a gente. O Maurício foi um dos primeiros a pular o muro – e um dos poucos a obter sucesso. Antes da minha vez, a polícia chegou correndo e a gente teve que se dispersar. Eu e alguns dos meus camaradas de fuga achamos uma outra parte mais afastada do muro, discreta e igualmente fácil. Pulamos e caímos no meio das quadras de tênis. Assim que pusemos os pés no chão, enormes cães vieram correndo em nossa direção. Sem pensar duas vezes, subimos o muro de volta com uma rapidez de desenho animado. Depois disso desisti. Voltei ao hotel tão desanimado que nem tive vontade de me juntar a folia pegando fogo a meia quadra de distância. O Carnaval de Salvador tinha terminado para mim.
O Maurício voltou de madrugada. Como era de se esperar, não tinha comido ninguém. Esse também tinha sido o meu caso em Salvador, mas pelo menos tinha vivenciado um dos melhores encontros de trios da história.
…