Samba Perdido – Capítulo 03, parte 02
Quando chegamos na escola, haviam bandeiras inglêsas e brasileiras penduradas por todo lado. Ao descer do ônibus, a primeira coisa que reparamos foi a ausência do costumeiro tapete de folhas e de frutas podres que sempre cobria o enorme pátio asfaltado. Parecia um outro lugar, até o cheiro doce do podre tinha ido embora, milagrosamente os faxineiros haviam limpado tudo.
Fomos levados direto para nossas salas onde cada turma ficaria esperando a sua vez para se dirigir ao auditório. Na confusão não consegui ver o resto da família.
Nossa professora, Mrs. Feitosa, estava nos esperando ao lado da porta. Ela era uma loura autoritária de Manchester nos seus quarenta e tantos anos, casada com um brasileiro. Sua maquiagem, seu perfume e seu vestido exagerados, embora levemente ridículos, não diminuíram sua autoridade. Quando viu que a sala estava cheia fechou a porta, bateu no quadro negro e falou alto e firme.
“Alô-ô!!! Quero todo mundo sentado e prestando bastante atenção!”
Paramos o que estávamos fazendo, obedecemos e ficamos em silêncio.
“Muito bem. Estão todos me ouvindo? Vocês sabem quem está para visitar a escola, não é?” Ela fez uma pausa para que a ideia entrasse na nossa cabeça. “Hoje não vai ter desculpas para palhaçadas, todo mundo tem que estar no seu melhor comportamento. Fui clara?”
Mrs. Feitosa deu sua famosa olhada por trás dos óculos e torceu seus lábios finos. Como que por mágica, cada um dos alunos pensou que a ameaça era dirigida a ele. Foi um alívio quando alguém abriu a porta dizendo que era nossa vez de deixar o prédio.
“Agora, quero todos dando as mãos e vindo comigo.”
Fui com meu amigo Henry, um inglês louro alto de cara sonolenta. De volta ao pátio, consegui ver meus pais com os outros adultos, todos vestidos impecávelmente e esperando. Quando passamos à sua frente, acenaram e sorriram com orgulho. Depois, voltaram a olhar ansiosos de um lado para outro para ver se a convidada ilustre já havia chegado.
Estávamos para entrar no auditório quando ouvimos barulhos de sirenes. Mrs. Feitosa olhou para trás. Seguimos seu olhar e testemunhamos o grande momento: acompanhada por sua comitiva, Sua Majestade, Rainha Elizabeth II da Inglaterra, estava entrando na Escola Britânica do Rio de Janeiro.
Em todo o seu resplendor, a Rainha estava de pé em um Rolls Royce sem capota, acenando e sorrindo para a pequena multidão agora reunida ao longo da fila de palmeiras que se estendia desde a entrada da escola até o pátio. Como garotos, o que mais chamou a nossa atenção foram as motocicletas escoltando os carros oficiais; eram as mais incríveis que qualquer um de nós já tinha visto. Como num filme, eram enormes, com motores grandes e barulhentos, antenas de rádio gigantescas e para-brisas cintilantes. Os guardas pareciam estrelas de Hollywood, com o sol refletindo nos seus óculos escuros e nas suas jaquetas de couro exibindo o emblema da polícia militar.
Antes que pudéssemos falar alguma coisa, Mrs. Feitosa nos tirou do transe mandando a gente entrar rápido para dentro do auditório. Os organizadores estavam nervosos; tínhamos que subir no palco antes que a segurança liberasse a entrada dos adultos. Depois que nos acomodamos, os adultos começaram a entrar e a lotar as beiradas do salão. Com o local cheio, as portas fecharam e todos ficaram esperando a Rainha entrar. Tivemos sorte pois nosso era o melhor lugar para se enxergar o evento.
Finalmente Mr. Gordon, o diretor da escola entrou, andou até o centro do salão e pediu a atenção de todos. Num inglês impecável anunciou a convidada de honra. Quando ela colocou os pés dentro do salão foi como se o poder e a aura do Império Britânico estivessem entrando junto. Parecia que o prédio havia se transformado num lugar diferente que abrigava toda a pompa e circunstância do Reino. O Príncipe Phillip seguiu logo atrás e parou para conversar com, adivinhem quem? minha irmã Sarah, que estava em pé na parte reservada para ex-alunos. Ela foi incrível: confiante e polida.
Os dois alunos escolhidos para dar as boas-vindas à Rainha eram ingleses “puro-sangue”, que era como todos chamavam aquela panelinha. Vestido como aristocratas britânicos do passado, o garoto andou até a Rainha e de maneira cavalheiresca atirou ao chão sua capa de veludo com bordados dourados. A garota, em pé em frente dele, fez uma reverência. Ele se curvou e ao levantar gritou qualquer coisa que não entendi. O que quer que tenha sido, a Rainha mostrou sua aprovação e depois se virou para a nossa turma.
Mrs. Feitosa ergueu a mão e nós começamos a cantar. Estávamos bem ensaiados e para o alívio geral, cantamos bem. Depois dos aplausos, foi a vez das apresentações e dos discursos. A Rainha falou pouco mas todos prestaram a máxima atenção e aplaudiram com entusiasmo no final. A cerimônia acabou com ela se despedindo graciosamente. As festividades continuaram até bem depois da saída da comitiva real. Todos os presentes voltaram para casa com a sensação de que se houve alguma vez um dia dourado para a comunidade britânica do Rio de Janeiro, foi aquele.
*
Meus pais ainda não tinham decidido se ficariam para sempre no Brasil e a escolha da Escola Britânica tinha sido a mais lógica. Apesar do preço astronômico, o estabelecimento tinha uma longa e orgulhosa história de serviços prestados a famílias britânicas e anglo-brasileiras lutando – embora perdendo mais vezes do que vencendo- a dura batalha para blindar suas crianças do flagelo da brasilidade.
Todos, direção, professores e pais, faziam de tudo para preservar o ambiente britânico. Até a comida dos almoços era britanicamente insossa. O inglês era a única língua usada não só nas aulas mas também nas conversas com os amigos e até nas brigas. Seguindo a tradição, Mr Gordon era famoso pelas surras de vara que dava nos meninos mais velhos em frente da escola inteira. O uniforme era típico – camisa de abotoar azul e calças de tergal cinza. A escola também recomendava para que quando voltássemos para casa o português só fosse usado com as empregadas.
A maioria dos pais dos meus colegas ou eram diplomatas ou trabalhavam para empresas britânicas. Diferentemente dos meus, nenhum deles tinha se mudado para o Brasil numa aventura existencial, também não compartilhavam sua religião nem sua idade. Meus colegas ou sabiam dessa diferença ou pelo menos sentiam que havia algo de estranho ali e me tratavam como se fosse, de alguma forma, distinto.
Isso nunca chegou a ser uma desvantagem. Sem ter que seguir padrões convencionais, minha diferença conferia carisma. Talvez por isso acabaria me tornando o líder da bagunça tanto dentro quanto fora da sala de aula. Isso aconteceu espontâneamente, sem que precisasse me impor fisicamente. Como consequência, acabei fazendo dois inimigos. Seja por inveja ou por se verem no direito – ou mesmo no dever – de me colocar no meu lugar, a dupla fazia de tudo para cortar a minha onda e me diminuir.
Um deles, o Nicholas, tinha sido calejado por dois irmãos mais velhos. Apesar do sobrenome irlandês, parecia e de alguma forma era, italiano. O outro, Garreth, era um inglês “puro sangue”, um típico garoto bonitinho que se via em comerciais: sardento, de cabelos loiros e de olhos azuis. Apesar disso, nunca sorria e era o mais escroto dos dois. Juntos, eles infernizavam minha vida. Do nada, faziam a chamada cama de gato, onde um deles ficava agachado atrás, enquanto o outro vinha me empurrar com força pela frente. Sem provocação, apareciam toda hora para ridicularizar minhas piadas e brincadeiras. Na sala, faziam questão de competir comigo no que quer que fizesse. Eu saía vencedor nos duelos de inteligência e de criatividade, mas perdia nos embates físicos, os mais importantes para garotos. Ninguém gostava da dupla, mas quando a única opção para se manter a dignidade era brigar, meus amigos amarelavam e eu tinha que enfrentá-los sozinho sem ter o equipamento nem físico nem psicológico para tanto. Contudo, não via razão para aquilo e estava resolvido a não me curvar.
A chance de dar o troco veio em uma de minhas festinhas de aniversário quando convidei a sala inteira exceto Nicholas e Garreth. Revoltada com aquilo, uma das professoras tentou me dar uma lição. No dia da festa, ela me tirou do ônibus escolar e levou nós três de carona para casa. Para me constranger, no caminho ficou me perguntando sobre a festa. O plano não funcionou e não houve arrependimento nem convite. Nada faria com que os dois tivessem a chance de estragar meu dia.
O troco veio quando convidei um colega de sala ao Clube Paissandu. Assim que nos viram na piscina, vieram interromper o que estávamos fazendo e afastaram meu amigo. Depois tentaram me afogar. Dar caldos uns nos outros era uma brincadeira comum, mas daquela vez a coisa foi para valer. Me deixaram em baixo d’água até não conseguir mais respirar. Entre as pernas dos dois, as mãos deles segurando minha cabeça e meus ombros e sem ar, tudo ficou vermelho. Desesperado, saí distribuindo socos, cotoveladas e pontapés até conseguir sair e respirar de novo. De volta na superfície, com os pulmões cheios continuei e, para meu espanto, dei uma surra nos dois. Só que logo depois chorei, não por causa da humilhação, mas por não entender o porquê deles serem assim comigo. Talvez por causa dessa reação, não aceitaram a derrota e a situação continuou.
*