Samba Perdido – Capítulo 30 – parte 02

Aquela rotina foi demais para o sistema. No último dia de Carnaval estava totalmente acabado. Numa rajada de sanidade, resolvi dar uma volta pela cidade para desintoxicar. Eram umas onze da manhã, e fui curtir o sossego das vias coloniais mais afastadas, longe do carnaval. De short e sem camisa, saí explorando a cidade até chegar a uma rua que terminava na subida do viaduto que ligava Olinda a Recife. Não dava para continuar dali, não havia passagem para pedestres. Vendo aquilo como um desafio, alguma força maluca me levou a arriscar uma travessia pela amurada desprotegida.

Sem ter nada em que pudesse segurar, segui pelo concreto estreito que chegava a ficar a uns vinte metros de altura sobre uma avenida movimentada. Qualquer tropeço seria fatal. Nunca tive um bom senso de equilíbrio mas na hora isso não pareceu importar. Olhei em frente e, como um equilibrista numa corda bamba, cheguei ao outro lado. Não estava sob o efeito de nada e nunca consegui entender o que me levou a correr aquele risco. Seriam tendências suicidas? Estava tentando provar alguma coisa a mim mesmo? Excesso de autoconfiança? Ou simplesmente não estava nem aí? Devia havet moleques que faziam isso todo dia.

Cruzei o viaduto sem problemas e desci numa rua calma, também colonial. Na primeira janela aberta, deparei com uma mãe ajudando seu filho com o dever de casa, os dois alheios à minha confusão mental e ao barulho ensurdecedor do trânsito. Meio atonito, parei para olhar, os dois me viram, demos uma encarada intensa, eles talvez com medo do maluco parado na janela e eu tentando entender como aquela cena pacata e racional era possível. Segui em frente me perguntando se havia uma mensagem do universo naquela cena.

Voltei para Olinda de ônibus e assim que desci de volta aos braços do Carnaval que já estava pegando fogo. Fiz uma parada na casa VIP onde as pessoas estavam se preparando para sair num bloco famoso. Como era a saidera, a Australiana ruiva caprichou na tatuagem de verão e meu rosto ficou fantasiado do que estava sentindo. Todos prontos e calibrados, saímos para rua parecendo personagens surrealistas. A maioria foi para o bloco mas prefiri me aventurar sozinho. Não demorou muito para agarrar uma gostosa local e a levar para o parque onde os casais iam. Tinha tido varias, nenhuma tinha a magia quase inocente da Gê, mas deu para matar a saudade.

Quando caiu a noite, fui com ela a um bar encontrar seus amigos que acabei achando caretas demais. Depois que se foram, comecei a conversar com uns caras meio barra pesada da mesa do lado. O papo se tornou bizarro e os dois acabaram me convidando para viajar de graça de navio para Europa levando cocaína. Sentindo aquilo pesado demais, saí fora e voltei para a confusão das ruas onde cruzei com um colega de sala da faculdade. Felizes com a coincidência, saímos abraçados atrás de um bloco. Ficamos na farra até às quatro da manhã. Com as ruas esvaziando, fomos para um bar deserto onde ficamos batendo papo até ele ir embora.

Naquela altura, o céu já estava ameaçando clarear. Era a hora de dar por encerrado o carnaval. No caminho, cruzei com o Betinho, o filho do prefeito, acompanhado de amigos, subindo a ladeira que estava descendo.

Fiquei surpreso quando ele me chamou do outro lado da rua: “Fala carioca! Tu não é o amigo da Dinah?”

“Sou, e aí? Beleza?”

“Tu tinha um nome gringo, não é mesmo? Richard?”

Me aproximei. “Isso mesmo. E aí? Resolveu sair?”

“Pois é, meu irmão, ser anfitrião é um saco!” Deu para sentir que os amigos estavam a fim de me dispensar, mas para contrariar, ele me convidou “E aí? Bora fumar a saideira do Carnaval ali em cima no parque?”

Não ia perder a oportunidade. “Opa! Vambora!”

Pata irritar seus amigos, ele continuou conversando comigo. “E então, carioca, curtiste a festa? Gostaste do Carnaval de Olinda?”

O cansaço não tinha roubado o bom humor. “A parte que me lembro foi demais, a parte que não me lembro deve ter sido melhor ainda.”

Ele deu um sorriso. “Pois é rapaz, todo ano fazemos uma dessas. A gente abre a casa para os outros se divertirem e se diverte com eles.”

Um dos amigos emendou: “Essa festa é uma tradição do Carnaval de Olinda. Merecia entrar no calendário oficial!”

O Betinho, visivelmente cansado da bajulação, voltou a falar comigo. “Carioca, te garanto que tu vai fechar o Carnaval com chave de ouro.” Ele tirou do bolso uma muda ressacada. “Isto aqui é o famoso Manga-rosa. Tirado do pé faz nem uma semana. Meu primo ali me trouxe direto de Cabrobró. Já ouviste falar?”

“Caralho! Manga-rosa! Nunca pensei que fosse experimentar isso na vida!”

Ele passou para eu dar uma olhada. Um outro amigo falou: “Chega até a ser bonito. Dá uma cheirada para sentir. Não existe melhor!”

O cheiro era fortíssimo. “Isso cheira a bagulho bom!”

“E é! Made in Pernambuco!”

Chegamos no topo do parque e nos sentamos numa escadaria de pedra para esperar o sol nascer.

O primo quebrou o silêncio. “Passa aqui pra eu apertar.”

O cara era um artista, saiu perfeito. “Isso também é uma tradição. O Betinho sempre guarda um para agora.”

“É verdade, a gente faz isso desde moleque. Sempre fechamos o Carnaval com um desses para depois sair no Galo da Madrugada.” Tinha ouvido falar no bloco, era o último do Carnaval.

O primo do Betinho passou o baseado para ele acender. Quando chegou em mim, deu uma onda quase tão forte quanto os cogumelos alucinógenos de Mauá e – como toda boa maconha – dois pegas bastavam.

Ficamos ali, sozinhos com a cidade só para nós. Em pouco tempo o horizonte foi alaranjando até o sol aparecer como um círculo brilhante. Ele foi subindo iluminando de leve a natureza à nossa volta. As cores magníficas, o silêncio e a temperatura amena fizeram aquele momento ser perfeito. Relaxando depois de sorver tanta vida, não só no Carnaval mas no verão inteiro, fiquei em estado de graça.

Estávamos em transe quando, do nada, dois estranhos chegaram e se juntaram a nós. Eram mais velhos, nos seus trinta e poucos, um era louro, grande, de cabelos compridos e com ar de surfista e o outro era musculoso, de camiseta de malhador apertada e com um corte de cabelo estilo escovinha.

O cabeludo puxou conversa: “Barbaridade, que visual incrível!”

Estava na cara que ele era gaúcho só que ninguém estava a fim de papo. Ignoramos, mas eles insistiram.

O outro falou em um inglês com sotaque americano, meio agressivo “Diz para eles que a gente sabe que eles estão chapados, mas que estamos muito mais chapados que eles.”

O gaúcho traduziu e depois explicou: “Esse maluco é americano, não fala uma palavra de português.”

Depois de uma pausa, um dos amigos do Betinho respondeu.

“Não existe esta de estar mais ou menos chapado, estamos aqui curtindo a paz do visual.” E completou em inglês. “Aqui todo mundo aqui fala inglês, relaxa.”

O gaúcho continuou em português “Este americano é tri-louco, grudou em mim e agora que tomamos um ácido ele está mais louco ainda.”

Quando o gaúcho mencionou ácido olhamos em sincronia para os dois, mas a vontade de ficar em silêncio continuou. Talvez por se sentir na obrigação de fazer turistas se sentirem bem-vindos na sua cidade, Betinho se tornou nosso porta-voz.

O cara era um político nato. “Curtiram o Carnaval? Did you enjoy the Carnival of Olinda?”

Quem respondeu foi o Gaúcho “Eu venho todo ano passar o Carnaval com a minha irmã que mora em Recife. O Mark aqui está estacionado em uma base militar no Caribe e veio passar as férias.”

O americano ainda nao tinha entendido que todo mundo ali – talvez com a excessão do gaúcho – falava inglês. A palavra Caribe tinha pescado sua atenção ainda que continuasse a achar que não entendíamos o que estava dizendo.

“Caribbean yeah, Guantánamo! ” Bateu nos braços fortes “Sou um Marine, entende?! Adoro armas, combate e mulheres brasileiras. Fala para eles que eu estive no Vietnã! ”

A palavra Guantánamo tinha deixado todo mundo de orelha em pé. Mesmo assim, a presença deles e o papo eram tão fora de contexto que ficou difícil distinguir se aquilo era verdade ou alucinação. De qualquer forma ninguém estava a fim de rebater o cara em inglês naquela altura. Eu é que não ia me meter.

O gaúcho, sem perceber as nuances da situação continuou no papel de intérprete lisérgico: “Não estou dizendo que este americano é doido?! Agora ele inventou que lutou no Vietnã. ”

Pela idade era impossível, como também era muito pouco provável que estivesse estacionado em Guantánamo. Por outro lado, o físico, a atitude e o corte de cabelo pareciam confirmar que se tratasse de um Marine. Novamente, ninguém falou nada torcendo que eles descessem da nossa nuvem o mais rápido possível.

O americano continuou a nos desafiar, acenou com a cabeça, colocou dois dedos para cima e falou num português fraquíssimo: “Sim, dois anos, eu in Vietnam. ”

O gaúcho estava hiperativo. “Liga não, ele é maluco assim mesmo, faz cara feia, inventa histórias e volta e meia se mete em confusão. No fundo é gente boa, mas o melhor é ignorar a figura.”

Aquilo de absurdo virou chato. Deu vontade de ter um controle de televisão para trocar de canal ou uma tecla para baixar o volume ou fazer os dois desaparecerem. O americano finalmente se deu conta de que a gente não estava na mesma onda e disse ao gaúcho: “Hey buddy! Let’s go! ”

O gaúcho traduziu: “Moçada, a gente vai nessa.”

Os dois partiram da mesma maneira que chegaram e aliviaram o ambiente. Ficamos uns quinze minutos sem falar nada. Alguem acendeu o baseado de novo e quando chegou na vez do Betinho, ele interrompeu o silêncio. “Galera, daqui a pouco o Galo da Madrugada vai sair, vamos lá?”

Todo mundo foi, mas resolvi ficar, minha quota de Carnaval já estava pra lá de preenchida. Agradeci e a gente se despediu. Fiquei ali sozinho, apreciando a beleza de Olinda até a lombra passar. Aquelas loucas primeiras horas da manhã em uma cidade histórica no Nordeste brasileiro marcou a minha despedida de uma época especial; um período de minha vida do qual sempre sentirei saudades.

O Pedro, com quem cruzei apenas uma vez durante o Carnaval, tinha conseguido carona na caravana dos amigos da Carla e ia voltar com eles para o Rio. Voltei sozinho e tive sorte de pegar caronas longas. Quando cheguei em Campos, no Estado do Rio, me dei conta de que tinha gasto todo a grana. Como precisava chegar em casa a tempo do início das aulas, pela única vez na vida, pedi dinheiro a estranhos para completar o dinheiro da passagem de ônibus e para comer alguma coisa; uma situação bem distinta da que tinha rolado na casa do Betinho e uma lição importante de humildade.

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Samba Perdido Capítulo 14 – parte 02

Apesar das frustrações no departamento amoroso, se é que  podia ser chamado disso, a gente adorou o pré-Carnaval do Recife. No Rio, a classe média fugia da folia para descansar, mas ali todos faziam questão de ficar e participar. A cidade inteira entrava na onda e ficava de cabeça para baixo. À noite, havia a tradição do “Mela-Mela”. Blocos improvisados cruzavam pelas ruas abarrotadas de foliões que passavam melando uns aos outros, conhecidos ou não, com uma mistura de água, açúcar e farinha que preparavam em casa. Nossos anfitriões fizeram questão de fazer alguns sacos da coisa para a gente. É claro que era previsível que dois caras de fora seriam mais alvos do que atiradores. Nós revidamos, mas quando nossa munição acabava, tinhamos que voltar para casa parecendo dois pães franceses crus mas felizes e exaustos da diversão.

Nos fins de semana, durante o dia as pessoas passeavam em carros sem portas e em caminhões alugados jogando baldes de água nos passantes. Nas calçadas, as vítimas os aguardavam com jatos d´água de madeira de um metro e pouco de comprimento preparadas para revidar. Quando os carros passavam, era uma guerra e os embates aconteciam em meio a gritos e gargalhadas. A tia do Davi nos avisou para tomar cuidado com as coisas que as pessoas podiam colocar na água, mas nunca saímos cheirando a algo estranho.

O primeiro baile de pré-Carnaval daquele verão foi na parte velha da cidade, junto ao porto. A praça, o Marco Zero, ficava numa área que, por causa do arranjo estreito das ruas e das lojas mal cuidadas, parecia com o pano de fundo de um velho filme preto e branco passado no Oriente Médio, mas com prédios coloniais europeus e povoada por caribenhos.

O ritmo do Recife é o frevo, que para nós parecia uma batida militar acelerada com um quê de africano. Nos bailes, ele era executado por uma sessão rítmica considerável, acompanhando uma orquestra de metais tocando arranjos rápidos e complexos. O jeito tradicional de se dançar aquele ritmo envolvia agachar-se e pular no ritmo da música agitando um guarda-chuvas. Porém a multidão na Praça da Sé estava bêbada demais para acrobacias. Quando a música pegava fogo, a sensação era parecida com a de se estar em um show de punk-rock, onde ninguém sabia ao certo se estava brigando ou se divertindo. Tínhamos que ficar dando cotoveladas acima de nossas cabeças para não sermos atingidos naquela enxurrada de loucura musical.

Chegou uma hora que os organizadores pararam a música e ergueram uma garrafa de whisky nacional, anunciando “Boa noite, povo do Recife! Esta aqui uma garrafa de uísque Drury’s, o melhor do Brasil. Ela vai para o folião mais animado desta gente maravilhosa. Quem está animado aí?”

A praça foi ao delírio.

“Então vamos ver quem é o mais animado de vocês, valendo essa garrafa!”

A banda voltou a tocar e a turba caiu no frevo ainda mais enlouquecida.

*

Algumas semanas mais tarde, o Carnaval começou oficialmente e nós tínhamos duas opções. A primeira delas era ir para Olinda, a cidade histórica ao lado do Recife, onde as autoridades fechavam a cidade para carros pelos quatro dias inteiros. Fora os inúmeros blocos nas ruas da cidade, havia sempre no mínimo quatro ou cinco orquestras de frevo tocando em diferentes lugares ao mesmo tempo. Podíamos pular de Carnaval em Carnaval e nos juntar às multidões que nunca tinham menos de mil pessoas.

A outra escolha era ir aos bailes de Carnaval em Recife. Nos primeiros três dias escolhemos a primeira opção: o Carnaval de rua de Olinda, mas, apesar da animação não obtivemos sucesso com as garotas. No último dia, para tentar mudar nossa sorte, partimos para a segunda alternativa, onde talvez a receptividade feminina fosse ser maior. Foi assim que acabamos no Carnaval do Sport Clube do Recife, sede do famoso clube de futebol.

A entrada estava apinhada. O ingresso era barato e havia uma mistura de gente do povão e de gente rica, sócia do clube. No salão havia uma grande orquestra de frevo no palco. A música estava pegando fogo, o Carnaval lotado e o clima incrível. Havia pessoas dançando onde quer que podiam – na pista, nas mesas e nas cadeiras. Volta e meia tocavam o hino do clube e o refrão levantava todo mundo.

“Este ano o Sport vai ser mesmo campeão,

Todo mundo vai cantar e dizer, ninguém segura o Sport não!”

Depois de semanas de frustração, mas agora inspirados pela animação e por muita cerveja, obtivemos sucesso. A maneira de se “pegar” as garotas, quase todas de saias curtas e vestindo a camiseta do clube, era sair as agarrando pela cintura. Não precisava falar nada, o próximo passo era dançar um pouco ao redor da pista e depois arrastá-las para um canto do lado de fora e lá tentar chegar o mais longe possível.

Depois de fazer isso com várias, “peguei” uma morena maravilhosa. Como as outras, a levei para o escuro ao lado da barraca de cerveja. Ela era bem nova, com certeza menor de idade, cabelo macio, carnuda, deliciosa de se pegar. Quase não deu para ouvir o nome dela por causa da música alta, mas entendi que se chamava Gê. Com ela o amasso foi mais intenso do que com as anteriores. O jeito que ela me deixava pegar nela e a maneira com que se esfregava na minha “barra de balas drops” me diziam que, pela primeira vez na vida, havia a possibilidade de levar a coisa para o próximo nível.

A certeza bateu quando ela falou no meu ouvido: “Ah, seu carioca gostoso, estou ficando louca.”

Embriagado pela cerveja e pela a sexualidade dela, sem motivo para ter vergonha na cara respondi: “Você já me deixou louco faz tempo, está sentindo isso? Ele está doido para te conhecer todinha.”

“Aff, seu maluco, deixa eu sentir. Hmmmm…, ela apertou, deu uma olhada safada e disse: “Assim eu não aguento. Vem comigo!”

Ela pegou na minha mão e foi me guiando. A gente se afastou do Carnaval. Depois de passar por umas casinhas dentro do clube chegamos num portão semiaberto e entramos na área da piscina do clube. Depois de mais amassos, descemos uma escadinha e fomos parar na sauna que estava vazia e com a luz desligada.

“Num se preocupe, carioca, eu sou sócia do clube e ninguém vem aqui à noite.” Estava tudo escuro, mas dava para ver ela se sentar em um dos degraus. “Venha cá, meu lindo.”

Apesar de mais nova, ela parecia ter mais experiência na coisa. No meio dos beijos, ela me agarrou e perguntou. “Não tiraste a camisa ainda?! Tire agora!”

Enquanto colocava a camisa no chão, ela foi se esfregando e entendi que era para eu também tirar a camisa dela. Em silêncio, acabamos nus. Depois da delícia da pele contra pele, ela se recostou de joelhos num dos degraus. “Eu gosto assim. Vem.”

Foi a melhor coisa que já tinha experimentado na vida.

*

O ônibus saía às dez da manhã do dia seguinte, quarta-feira de cinzas. Cheguei na rodoviária virado e exaurido pela Gê. A gente tinha amanhecido na beira da piscina, ido tomar café numa padaria e depois passamos para pegar minhas coisas. Ela ficou me esperando embaixo enquanto me despedia de meus anfitriões. Querendo que ficasse, acabou vindo até a porta do ônibus para os últimos amassos na frente de todo mundo.

Embarquei sozinho, o Davi ia ficar com uns amigos que tinham vindo para o Recife.

Por coincidência, alguns dos membros da banda que tinha tocado no Carnaval do Sport Club Recife pegaram o mesmo ônibus. Não eram frevistas mas tocavam as marchinhas de carnaval enquanto a orquestra de frevo descansava. Eram todos ligados à escola de samba Unidos de Vila Isabel e ainda estavam em clima de folia. A festa continuou pela viagem inteira: 43 horas com muita bebida e batucada no ônibus até voltarmos ao Rio. Quando cheguei em casa, tomei café e depois de um banho mergulhei na cama de onde não saí pelas próximas 24 horas. Tudo seria diferente depois daquela injeção na veia de frevo, suor, Recife e Gê. Meu tempo de aprendizado teórico sobre o Brasil tinha acabado. Agora só queria saber das aulas práticas. Volta e meia pensava na minha recifense, mas apesar de a gente ter trocado telefones, nunca mais tivemos contato.

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Samba Perdido – Capítulo 14 – parte 01

Capítulo 14

 

“... quero sentir
A embriaguez do frevo
Que entra na cabeça
Toma o corpo
E acaba no pé."

Capiba – Voltei Recife

 

Fui parar no Colégio Andrews, uma escola para a classe média carioca situada de frente às inúmeras pistas de trânsito que cercam a belíssima praia de Botafogo. Estava contente, finalmente meus colegas seriam como quaisquer outros adolescentes da minha idade e as férias que ofereciam eram maravilhosas. Além de serem no verão – nas das escolas britânica e americana eram em julho e agosto – eram enormes. Se as notas fossem boas começavam no início de dezembro e só terminavam no meio de março. Contudo, o início foi puxado. As aulas eram em português e disciplinas como química, matemática e física eram muito mais avançadas. Por isso não fui bem no meu primeiro ano e terminei ficando de recuperação em dezembro e janeiro. De qualquer forma, passar a manhã inteira “pegando jacaré” para depois ir à escola por uma hora ou duas não era nenhuma tortura.

Depois de passar nas provas finais, ainda sobravam dois meses sem aulas pela frente. Do nada, Davi, um amigo novo da turma do Maurício, me convidou para passar um mês em Recife na casa de uns parentes, carnaval incluso. Por ser dois anos mais velho, ter acabado de passar no vestibular e pertencer a uma respeitável família judaica, e talvez por sentirem culpa pela bagunça que fizeram com minha educação, meus pais deram sua permissão sem maiores problemas.

No nosso preconceito viamos o Nordeste como um país exótico dentro do próprio Brasil que vivia cinco ou dez anos atrás do Rio e de São Paulo. Por outro lado, a região havia se tornado um destino turístico da moda graças a uma onda de artistas vindos de lá – Alceu Valença, Fagner, Belchior, Elba e Zé Ramalho, Geraldo Azevedo e Robertinho do Recife, todos no auge do sucesso. Independentemente disso, a reputação do Carnaval do Recife era a melhor possível.

A única coisa diminuindo a empolgação era a viagem em si. A distância entre o Rio de Janeiro e o Recife é de 2.300 km. Aviões na época eram coisa de milionário e o único jeito seria encarar uma viagem de ônibus de 43 horas.

*

Pronto para a aventura, com a mesma mochila dos tempos das machanés nas costas, cheguei com meus pais na rodoviária numa noite quente de Janeiro. O terminal estava apinhado de gente de todo jeito, cores e classes sociais; passageiros e acompanhantes fazendo fila nos balcões das viações e passeando pelas bancas de revistas, pelas barraquinhas de comida e pelas lojas de lembranças. Para mim, o buchicho era uma vibração fascinante mas para o seu Rafael e a dona Renée o excesso de gente humilde era incomodo.

Fomos sentar num pé sujo, o melhor da rodoviária, onde tinha marcado de encontrar o Davi. Pedimos um café e ficamos esperando.

“Tem certeza que é isso que você quer nessas férias, Richard? Você ainda pode mudar de ideia.” Rafael não podia acreditar que seu filho quisesse se misturar àquela gente e partir numa viagem estúpida e de mau gosto. “Viajar nessas condições tendo uma casa confortável para passar o verão em Teresópolis? Não entendo.”

“Sim pai, férias foram inventadas para curtir, não para ficar escondido.”

“Mas o Sérgio Birman e o Mario Halpern têm casa lá. Por que você não faz como eles e passa o verão com a família?”

“De novo!? Eles gostam de ir para lá porque ficam em condomínios jogando bola, saindo e curtindo com um monte de amigos. Entende? Curtir?”

O tom da conversa piorou. “Depois das notas que tirou, você deveria estar pensando em estudar para alcançar os colegas.”

Odiando o lugar, já sabendo o que eu ia responder e com uma ponta de inveja por estar fazendo algo que ela gostaria de fazer, Renée se meteu. “Você é egoísta demais, não quer saber de estudar, nem de ficar com seus pais nas férias. Cadê a apreciação pelo esforço que fizemos para construir uma casa de campo para vocês?!”

“Pra gente? Ah! Dá um tempo!” Já não estava vendo a hora de entrar naquele ônibus. “Vocês construíram a casa para tirar onda com os teus amigos! A gente nunca pediu aquela casa e você sabe disso!”

Meu pai me reprovou com um olhar, mas o sangue já tinha subido à cabeça e continuei. “Egoísta? Eu, né? Quem é que me internava todos os anos numa colônia de férias para ir curtir na Europa? Agora é a minha vez, tá legal?”

O Davi chegou com os pais na hora certa. Paramos de falar em inglês e nos levantamos para cumprimentá-los. A apresentação foi formal e um tanto constrangedora. Seus pais não eram tão velhos, falavam português sem sotaque mas era visível que estavam igualmente desconfortáveis com a “diversidade” na rodoviária. De qualquer maneira, tinhamos pouco tempo para ficar ali; faltava meia hora para o ônibus partir.

Depois de pagar a conta, fomos todos para a área de embarque. O sistema de informação era confuso e demorou para acharmos a plataforma. Quando descemos a escadaria de metal, lá embaixo havia filas de famílias nordestinas falando alto e colocando malas velhas e bolsas gigantescas nos compartimentos de bagagem. Nossos pais não conseguiam disfarçar o choque. Constrangidos pela sua presença e sem ver a hora de embarcar, Davi e eu já estávamos de olho em umas “gatinhas” que também pareciam da zona sul, igualmente perdidas naquela confusão. Estavam de vestidos floridos, cheias de pulseiras artesanais e colares de contas. Nos decepcionamos quando subiram no ônibus para Maceió com suas mochilas.

Depois das recomendações finais de nossos pais, demos as passagens ao motorista, entramos, encontramos nossos assentos e nos despedimos na janela enquanto o ônibus saía da baía de ré.

*

Davi era um cara introvertido, porém superinteligente e craque no futebol. Ele tinha acabado de passar para as faculdades de psicologia e de economia e ia cursar as duas. Não o conhecia a muito tempo mas a gente se dava bem. Assim que o ônibus começou a acelerar para fora da cidade, ele soltou um desconfortável “Agora que os pais ficaram para trás, é com a gente.” Mudei de assunto e ficamos batendo papo e fazendo planos até conseguirmos dormir.

Quando o dia raiou, já estávamos em território desconhecido. Os primeiros vilarejos começaram a passar pela janela com homens de chapéu de palha montados em jegues descendo estradas de terra ao lado de carros velhos, gente escovando os dentes nos tanques fora das casas, coqueiros e casebres de barro com cobertura de palha.

Conforme fomos avançando pela BR-101 o que mais chamou a nossa atenção foi a extensão do desmatamento. Na escola, tínhamos aprendido que a Mata Atlântica cobria toda aquela área. Estávamos esperando o ônibus passar por baixo de árvores com macacos pulando de um lado da estrada para o outro. Em vez disso, em ambos os lados, via-se uma paisagem desoladora formada por campos devastados que pareciam não ter fim. As únicas árvores ainda de pé eram aquelas feitas de madeira dura demais para as motosserras e resistentes ao fogo.

Enquanto isso, no ônibus, as coisas começaram a mudar. Quanto mais ao norte chegávamos, mais parecia que um peso havia sido retirado das costas dos nossos companheiros de viagem. Todos tinham começado a ser mais amigos, a falarem mais alto e a perder a vergonha de seu sotaque.

“Oxente, esse ônibus num vai chegar nunca, não? Tamo aqui faz mais de um dia!”

“É verdade, já tô aperreado! Mas pelo menos esse ônibus da Cometa é mió que os de lá!”

“Você é di ondi?”

“Sou de Teresina, mas tô indo mais os filho visitar a família no Recife e você?”

“Sou do interior, de Itapetim. Tou trabalhano no Rio faz dez anos e tô voltano só agora pra visitar a família.”

“Cunheço Itapetim, uma das minhas irmãs se casou e foi pra lá pra morar.”

Os restaurantes de beira de estrada foram mudando também: a comida ficou mais barata, porém bem menos saudável e a quantidade de moscas sobrevoando os pratos, os talheres e os copos baratos começou a incomodar. Os DJs das rádios passaram a soar nordestino e entre anúncios de pamonha, rapadura e do comércio local, tocavam os ritmos da terra que nossos artistas favoritos tinham estilizado.

Nossos companheiros de viagem começaram a se abrir com a gente.

“Já experimentaste rapadura? Não? Pega um pouquinho aqui. Isso com queijo coalho é mió do que caviar importado.”

“Ocês tão indo para o Recife? Para o Carnaval, né? O sinhô sabia que lá a gente não fala aipim, a gente fala macaxeira.”

Um outro acreditou na nossa curiosidade forçada e emendou: “É, e abóbora a gente chama de jerimum. É tudo diferenti!”

Outro começou a falar sobre as maravilhas da cachaça pernambucana. “O Geovina! Ainda tem daquela cachaça de alambique para o rapaz experimentar? Traz aqui pra esses minino. Vê, tome um pouquinho, num tem gosto de cana memo?”

Eles sabiam quem éramos: bons garotos da elite educada, para eles o orgulho da nação. Em vez de raiva ou inveja, mostravam por nós um respeito genuíno. Não tinha certeza se podiam enxergar a diferença entre a gente e a maioria das pessoas de nossa idade com o mesmo status social. Nós os respeitávamos e tínhamos algum interesse pelas coisas que tinham a dizer, algo bastante incomum.

Apesar do encantamento com a acolhida calorosa, para nós aquela viagem não era um exercício político-social. Nossas intenções não eram, de forma alguma, nobres. Como todos adolescentes do sexo masculino no planeta, só tínhamos um objetivo em mente: pegar garotas. Estávamos a caminho do Carnaval do Recife atrás de sexo gratuito, consentido e sem o envolvimento das mãos. Nossas expectativas eram grandes. Estávamos prontos para se dar bem usando a vantagem de vir do Rio, terra da TV Globo e de seus atores atrizes famosos, e a reputação sexy dos cariocas.

*

Quando finalmente chegamos, fomos recebidos calorosamente pela família do Davi. Sua tia morava com o marido num sobrado charmoso no bairro da Boa Vista. A casa era antiga, o chão era de azulejos e o frescor do vento fresco entrando pela janela imensa compensava a falta de ar condicionado no quarto a noite.

Quase não parávamos em casa. De dia partiamos para praia de Boa Viagem e a noite, ou ficávamos por lá ou nos aventuravamos nos pré carnavais do bairro. Neles, nossas esperanças de aspirantes a faunos foram confirmadas apenas parcialmente: as únicas garotas que nos davam qualquer tipo de bola eram as certinhas vindas de boas famílias. Só que sexo para elas era só depois do casamento. Apesar dos olhares assassinos e de até conseguirmos dar uns amassos, os avanços sempre acabavam bem antes do motivo pelo qual tínhamos viajado tão longe.

“Se acalme minino, não pode botar a mão aí não.”

“Mas você não está gostando?”

A cara dizia tudo. “Pare! Se meu irmão ali vê, ele conta pra minha mãe e ela me mata. Num era nem para eu estar aqui com você!”

“Então me dá teu telefone que a gente marca para outro dia!”

“Aff, se meu pai atender ele me deserda! Num dá!”

E elas não davam de jeito nenhum. Beijar um estranho vindo do Sul já era muita audácia. Se para conseguir ao menos isso a gente tinha que suar a camisa e ter paciência, o resto era inimaginável.

Houve uma exceção: uma loira falsa, um pouco mais velha e sem sutiã, que a gente deu uma azarada casual enquanto um bloco pré-Carnavalesco passava numa tarde na praia. Agimos como sempre: a elogiamos enquanto passava e ficamos esperando por uma reação. Ao contrário das outras que olhavam para trás ou sorrindo ou fechando a cara, mas que continuavam em seu caminho, ela parou para conversar.

Apesar de estar sozinha, aceitou vir com a gente para os fundos de uma construção e sentou entre nós dois. Sua calça jeans justa revelava um corpo magro e torneado. O seu perfume e suas unhas pintadas de vermelho, meio “aputalhadas”, nos encheram de tesão adolescente. Ela parecia estar gostando da situação. Havia muita excitação no ar, mas nem o Davi nem eu queria deixar o prêmio para o outro. Conforme a bagunça começou a esquentar ela não demonstrou qualquer preferência, só que acabou não conseguindo lidar com o ataque de quatro mãos adolescentes, se levantou e foi embora.

*

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