por Richard Klein | 23 jan, 2021 | Brasil, Comportamento, Crônica
Na manhã seguinte saimos rumo às praias de cartão-postal de Maceió, nas Alagoas. Águas cristalinas e uma vegetação abundante de coqueiros se estendendo ao longo da costa inteira eram uma promessa bem-vinda com depois da simplicidade cênica de Aracajú.
Seguindo uma recomendação recebida ainda no Rio, passamos direto por Maceió e fomos para a Praia do Francês, a uma meia hora e pouco da cidade. Chegamos num fim de tarde ensolarado e ficamos maravilhados de cara. O lugar era lindo e o pessoal era diferente de tudo o que tinhamos visto até entao; garotas e garotos bronzeados do “sul” saudáveis, abastados, com ares de surfistas, relaxados, todos num astral ótimo e muito diferente daquele que havia feito de Arraial d’Ajuda uma decepção.
A experiência já havia nos ensinado que a primeira coisa a se resolver era procurar um lugar para ficar. Perguntamos por ali e o dono da venda da aldeia nos falou de uma construção. “Tão construindo uma casa lá no final da praia. Os obreiros só vão voltar em março. Já tem uns cabeludos acampando lá. Acho que deve ter lugar para vocês.”
Fomos lá e gostamos. A base da obra já estava pronta, mas estava coberta só por um teto de palha mal-acabado. Conforme o dono da venda tinha dito, havia um grupo de sete ou oito caras já acampados lá e fomos falar com eles.
“Fala aê, beleza?”
“Beleza!” respondeu o mais velho deles, um cara de cabelo crespo, brinco na orelha e cavanhaque.
“Tamo chegando aqui e a gente queria saber se dava para acampar num canto.”
“Sem problemas, tchê, aqui tem lugar para muita gente. Se vocês não tiverem problemas com gaúchos podem ficar à vontade.” O sotaque e a maneira cantada de falar não podiam ser mais típicos.
Agradecemos e depois de montar a barraca fomos conversar com eles. Já era fim de tarde e, como não seria surpresa, estavam bebendo chimarrão sentados na sombra e apreciando o fim de dia vendo o mar.
“Conhecem chimarrão? Prova um pouco!” O Pedro recusou. Eu que já tinha experimentado e até gostav, aceitei.
“Isso não é para beber no frio?”
O cara deu uma risada. “A gente bebe chimarrão até debaixo d’água, tchê.”
Um outro, com uma cabeleira lisa que ia até debaixo do ombro, perguntou: “É a primeira vez de vocês aqui?”
“É, a gente está viajando a costa e tamo indo até o Ceará, pelo menos esse é o plano. E vocês?”
“Saímos de Porto Alegre há um mês e viemos de carona até aqui. Bá! É muito chão e em sete é tri-complicado.”
A maioria era loiro, todos educadíssimos apesar do visual inconformista. Naquele calor, aquele monte de cabeludo me trouxe à memória as bandas de rock do sul dos Estados Unidos. O cara que nos deu as boas-vindas foi direto ao assunto.
“Pois é, carioca, vocês fumam um, né?”
“É, somos do clube.”
“É o seguinte, a gente descobriu um plantador em Barra de São Miguel, uma cidadezinha perto daqui. A coisa é um veneno, tchê.”
Um outro emendou: “Fomos lá para experimentar, e bááá! Voltamos tri-loucos!”
Todos confirmaram que era “tri-bom”.
O primeiro continuou: “Então, tchê, nós estamos fazendo uma vaquinha para comprar um peso. Se a gente juntar trezentas pilas compramos seiscentas gramas, faltam cinquenta, cês podem entrar?”
“Sei lá. tem um pouco aí para a gente experimentar?”
O de cabelo até a cintura respondeu na hora: “Claro, tchê!”
Um deles tirou um baseado do bolso, acendeu e passou para a gente. Como qualquer do bom, depois de duas baforadas deu para sentir a qualidade. Os caras estavam certos. A parada era “tri-boa”.
Pelos calculos, íamos ficar com quase cem gramas daquele veneno por um quarto do preço que custaria no Rio, uma oportunidade imperdível num lugar perfeito. Não pensamos duas vezes; concordamos, raspamos o dinheiro escondido num compartimento secreto da mochila e entregamos a eles. Na manhã seguinte, dois deles foram buscar o bagulho. Quando voltaram por volta do meio dia, foi uma fumelhança desatinada.
Depois de um tempo, a larica bateu e caiu a ficha de que apesar do generoso estoque do bom, estávamos completamente sem grana. Os gaúchos ficaram igual. A única possibilidade da gente reabastecer os bolsos implicaria em uma ida de uma hora de ônibus até Maceió de manhã cedo para achar um caixa eletrônico – que ainda só existiam nas grandes cidades e que, por sinal, o Brasil estava inaugurando a nível mundial. Depois, a gente teria que esperar o ônibus de volta que só saía no final do dia. Praia boa e bagulho bom eram um convite à preguiça e ninguém estava disposto a perder um dia inteiro com aquilo. Do lado positivo, isso significaria um alívio para o nosso parco dinheirinho.
A salvação alimentar foi um coqueiral imenso logo atrás do acampamento. Não era preciso nem subir nas árvores, era só sair catando os côcos caídos no chão e com isso passamos uma semana inteira nos alimentando deles. No café e como sobremesa, comíamos a carne macia dos côcos mais verdes. Côcos mais maduros tinham a polpa mais grossa, mais nutritiva e eram nosso prato principal e durante o dia. A água deles saciava nossa sede e, também nutriente, ajudava a nos manter. Usavamos um facão na obra para abri-los e tínhamos que tomar cuidado para não acertarmos nosso dedo ou atingir os outros naquela chapação generalizada.
*
A Praia do Francês é famosa por seu coral e sua vida marinha espetaculares. Isto, e a água limpa e transparente, rara no Nordeste, fazia com que um monte de gente viajasse do país inteiro para mergulhar ali. Consegui uma máscara de mergulho e um tubo emprestados de um paulista que tinha virado entusiasta da nossa compra na Barra de São Miguel. Por conta da sua generosidade, passava os dias explorando o coral e os peixes coloridos sob a influência do veneno verde, uma combinação que se provou perfeita. Embaixo d’agua me sentia como se estivesse passando horas num planeta diferente. No fim do dia, quando chegava o pôr do sol, me sentindo bem e abençoado, pegava a viola e saía em caminhadas ao longo do coqueiral curtindo a brisa do mar fazendo as árvores se balançarem de um jeito mágico. Seguia até encontrar um lugar protegido e ficava ali tentando criar música.
Enquanto o Pedro não sabia por onde começar com o banquete de beldades passando o verão ali, não demorou muito para que eu conhecesse outros músicos. O pessoal se reunia para fazer um som em frente da barraca de uns argentinos gente boa. Se não estivesse mergulhando, estava ali. Fazer experimentos musicais no Nordeste era uma experiência especial. A vibração musical da região era menos africana e mais árabe e indígena. O calor e o ar seco pareciam influenciar a gente. As levadas que inventávamos abriam mais espaço para digressões inusitadas. A qualidade do THC e a desintoxicação forçada pela dieta à base de coco me trouxeram inspiração. Quando tocavamos no calor do dia e no vento frio e seco da noite, eu e meus camaradas de som pareciamos um bando de beduínos de sunga envoltos numa magia Sufi num deserto a beira mar.
Às vezes, íamos levar um som na praia quando ficava escuro. Ali nossas sessões acabavam virando apresentações em torno das fogueiras que o pessoal acendia e davam um toque hippie às férias de todos os presentes. Com tantos músicos antenados envolvidos, a gente se recusava a tocar músicas conhecidas. Fazíamos improvisações que, pelo menos para nós, eram de altíssimo nível. Para os que estavam ouvindo provavelmente também, porque apesar do silêncio, havia respeito e um astral mágico no ar. As musicas começavam com uma levada fácil até alguém se inspirar e levar o que estavamos fazendo para um lugar mais especial. Conforme o som ia evoluindo, voltávamos à frase inicial e ficávamos nela até que outro alçasse vôo para novas alturas. A coisa fluía com ritmos e texturas provindos da redondeza. O sentimento era para lá de fantástico.
Apesar do sucesso das sessões, começamos a sentir um clima estranho naquele lugar que de início tinha parecido um paraíso. Acabamos nos dando conta de que a Praia do Francês era, na verdade, um destino turístico mais de elite do que o sul da Bahia e que nós, os outros músicos e os gaúchos do acampamento, éramos minoria. Por conta disso, nos deparamos com muita cara virada por não estarmos viajando com um carro do ano e dormindo em pousadas boas. Não pensamos muito sobre o assunto, mas talvez de maneira inconsciente isso nos tenha levado a ficar ali menos tempo do que poderíamos.
Levantamos acampamento junto com os gaúchos. Na manhã que chegamos em Maceió, a primeira coisa que fizemos foi ir à cata de um caixa eletrônico. Achamos um alojado numa cabine de vidro futurista contrastante com a arquitetura colonial ao seu redor. Novamente com dinheiro no bolso, foi um alívio ir a um pé sujo à beira da praia para desfrutar de uma refeição decente. O que pedimos foi o prato básico da região – arroz com feijão, farinha de mandioca, peixe frito e uma cerveja gelada para completar. Por mais simples que fosse, a comida caiu como uma maravilha depois de uma semana e pouco vivendo de côco.
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por Richard Klein | 29 ago, 2020 | Brasil, Comportamento
O hotel Sol de Ipanema era o único de frente para o mar na Avenida Vieira Souto. Ele ficava quase na esquina com a Rua Montenegro – mais tarde renomeada de Rua Vinicius de Moraes. Era em frente dele que minha turma de amigos mais caretas; Mauricio, Jaime, Hélcio, Davi, Leo e companhia pegavam sua praia. Apesar de todas as minhas transformações, ainda era colado com eles. Aquele ponto era para lá cômodo; quase na saída da rua que caminhava de casa para ir a praia.
Numa manhã ensolarada de sábado, ali com a praia ainda vazia, Davi e eu estávamos sentados na beira d’água descansando do bodyboard. De repente um cara magro mas com um corpo bem definido, por volta dos 40 apareceu na nossa frente e começou a jogar frescobol numa tanga fio-dental de crochê escandalosamente minúscula. O cara até que jogava bem, mas depois de um tempo de ficar olhando para aquilo ligeiramente incomodado, virei para o Davi e perguntei.
“E aí, Davi? Quer de natal uma tanguinha como a do teu amigo?”
Davi nem se dignou a responder, mas passado alguns minutos a cara dele acendeu. Ele me cutucou e cochichou no meu ouvido, “Rique, aquele não é o Gabeira?”
Davi estava se referindo ao jornalista Fernando Gabeira, um dos exilados mais famosos que, em 1969, tinha se envolvido no sequestro do embaixador americano no Rio, Charles Elbrick. A sua autobiografia O que é Isto, Companheiro? era leitura obrigatória. Todos tinham lido, inclusive eu. Era um relato na primeira pessoa de como tinha sido o mundo das organizações de luta armada. Nele, descrevia como tinha se envolvido naquela situação, como tinha participado do sequestro do embaixador americano, como tinha sido o cativeiro do diplomata e como finalmente tinha sido preso. Depois, relatava sua estadia na prisão, sua troca junto com alguns companheiros por um outro figurão estrangeiro e na sequência, sua vida no exílio.
O livro virou polêmico na esquerda brasileira porque, além das críticas tanto à metodologia quanto aos objetivos da luta armada, o ex-militante confessou que durante aqueles tempos heroicos tinha sido ativamente bissexual. Lançando esse escândalo na veia jugular da militância, agora exposta como retrógrada ao invés de vanguardista, surfando na onda da fama, Gabeira abriu um caminho alternativo de resistência ao regime e à burguesia, que denominou “política do corpo”. O que ele realmente quiz dizer com aquilo é ainda hoje motivo de debate. Só sei que um receituário para revolução prescrevendo honestidade consigo mesmo, rejeição à imposições de qualquer lado e pregando o sexo livre caiu bem em Ipanema.
“Sei não, Davi, só vi a recepção dele no aeroporto na televisão. Não dá para dizer, mas pela tanguinha é capaz.”
“Tenho quase certeza que é. Vou dar uma olhada na contracapa do meu livro quando chegar em casa, tem uma foto dele lá.”
De noite, Davi me ligou confirmando a identidade do cara da tanguinha, era o Gabeira mesmo. O mais estranho é que devia ter um fotógrafo na área seguindo o ex-guerrilheiro, porque no dia seguinte, jornais de um lado a outro do país estamparam suas capas com uma foto do ex-guerrilheiro em seus trajes mínimos bebendo mate gelado, em frente ao Sol de Ipanema.
*
As praias do Rio tinham – e ainda têm – uma programação e uma demarcação territorial rígida. Isso permitia a qualquer um dizer: “Diga-me quando e onde você toma sol que eu te direi quem és.” Agora, de madrugada os pescadores de Copacabana – que também pescavam em Ipanema – dividiam o mar com surfistas. Na areia, praticantes de Yoga e Tai Chi solitários meditavam sob os primeiros raios de sol enquanto corredores e ciclistas se exercitavam no calçadão. Mais tarde, da mesma forma de quando era criança, a posse da praia passava às famílias, incluindo crianças, mães, avós, babás, cães e todos os outros componentes da vida doméstica brasileira. Depois das nove da manhã o surfe era interditado. Quando tinha onda, o mar era dos pegadores de jacaré e a tarde o domínio voltava aos surfistas. Nos fins de semana, por volta do meio-dia as famílias voltavam para casa e daí para frente, tanto as pessoas que chegavam como as que ficavam faziam as subdivisões da praia mais interessantes.
Havia o local para os fisiculturistas e para os lutadores de Jiu-jitsu. Claro que havia um local para os yuppies. Outro segmento era uma extensão da cena gay. Havia um point para os surfistas, uma área para os favelados, uma para a as “patricinhas” e os “mauricinhos” endinheirados, outra para as profissionais do sexo – não coincidentemente a mesma para os turistas – e uma área reservada para os jogadores de futebol e suas comitivas de fãs e puxa-sacos.
O local da praia onde tínhamos visto o Gabeira, inicialmente conhecido como o Sol de Ipanema, era o Posto Nove, ou simplesmente o Nove – o nome derivado da estação de salva-vidas número nove que ficava em frente ao Hotel Sol de Ipanema.
Fazia pouco tempo que traineiras e guindastes tinham cortado a onda da galera das Dunas do Barato demolindo a estrutura do Pier de Ipanema. Depois que a foto do Gabeira de tanga percorreu o Brasil inteiro, o Nove herdou o status de Woodstock carioca. Por décadas a área seria o reduto dos seguidores das ideologias e dos estilos de vida dos anos 1960 e 1970. Aquela era a praia dos artistas, dos músicos, dos atores e dos intelectuais – tanto os já estabelecidos quanto os que viriam a se firmar e os que nunca iam dar em nada. Alguns diziam que os Beatles haviam profetizando sobre aquele trecho das areias de Ipanema na sua música mais estranha: Revolution Number Nine.
Com a chegada da abertura política, bandeiras dos partidos de esquerda recém-legalizados passaram a balançar sobre as cabeças dos frequentadores em meio à bagunça sob o céu azul. Enquanto a festa-praia tomava corpo, os garotos da barraca do Batista corriam de um lado para o outro levando garrafas de cerveja em isopores e as caipirinhas mais saborosas das praias do Rio.
O cheiro constante de cannabis no ar era abençoado por um acordo tácito entre a polícia e a galera do Nove: uns não davam trabalho para os outros; os frequentadores se restringiam àquela área e em contrapartida os policiais não vinham encher o saco ali. Contudo, durante campanhas eleitorais, o acordo às vezes era quebrado sob a pressão de candidatos conservadores. Só que quando as batidas aconteciam, a galera afugentava os polícias com vaias e na confusão todos enterravam os flagrantes o que fazia com que prisões fossem raras.
Mas não era só a fumaça que caracterizava o local. Sempre havia rostos famosos curtindo sua praia de fim de semana, os gays que iam lá eram mais desinibidos e volta e meia haviam casais se beijando abertamente, um ultraje na época.
Foi lá também que aconteceram as primeiras tentativas de topless urbano no país. Contudo, não demorou muito para que o Nove se visse avançado demais para a caretice do país. Quando as meninas tiravam a parte de cima do biquíni, atraiam a curiosidade indesejada de um pessoal que não pertencia à área. Homens com uma atitude medieval; muitos deles jovens, alguns até aspirantes a surfista, favelados, marombeiros, pais de família branquelos e barrigudos, se aglomeravam empurrando uns aos outros para espiar aqueles peitos corajosos no céu aberto com uma mistura de fascínio e de repúdio. Muitas dessas confusões acabavam com uma chuva de areia em cima das beldades ou com intervenção policial. Uma vez, um sujeito que estava com elas resolveu tomar suas dores. Ele se levantou, baixou o calção e fez com que seu pinto encolhido pela água dissipasse a urubuzada na hora. Talvez essa fosse a política do corpo que nunca cheguei a entender.
*
Conforme os novos frequentadores foram tomando conta do pedaço, meus amigos passaram a se encontrar em outro ponto da praia, mas eu fiquei. Embora rejeitassem a “erva maldita”, o Davi e o Hélcio acabaram entrando na minha onda. Os dois também não tinham muito saco para seus papos caretas e, como eu, estavam cientes de que rolava mais possibilidades de sexo com as malucas do Nove do que com as meninas caretíssimas que tinham se juntado à nossa turma.
Eu conhecia outras pessoas que frequentavam a praia ali: os malucos do Colégio Andrews, gente que tinha conhecido na balada e nos shows e membros da esquadrilha da fumaça da Escola Americana. Não era preciso marcar de se encontrar com ninguém, só era necessário comparecer.
O Nove era um clube. Conhecidos ou não, passávamos o dia conversando sobre mulheres, música, cinema, futebol e política. Quando o sol ficava muito forte ou se o papo ficava chato, havia o oceano em frente nos convidando para dar uma renovada. Tomávamos longos banhos de mar, “pegávamos jacaré” quando as ondas estavam boas ou jogávamos frescobol quando não. As meninas que interessavam também iam lá. A paquera e os olhares fatais não cessavam entre as toalhas estendidas na areia.
Na hora que o sol começava a se pôr, a areia esvasiava e o clima se tornava intimista e sereno. O Nove se tornava mágico, não só por causa da beleza da praia com a luz do sol mais branda, mas também por causa da quantidade de gente bonita, jovem e situada. Havia uma paz derivada de um dia bem aproveitado ao ar livre, os corpos curtidos pelo sol, amaciados pela água salgada e agora envoltos pela brisa do fim de tarde.
Nos melhores dias, a praia terminava com todo mundo aplaudindo o sol de pé enquanto ele desaparecia no horizonte ao lado do morro Dois Irmãos. Depois disso, todos seguiam seus próprios caminhos, normalmente indo para casa para tirar um cochilo antes de sair para alguma festa ou um show sobre os quais todos tinham conversado mais cedo na praia. Neles, aquela tribo de almas livres e bronzeadas se re-congregava.
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por Richard Klein | 20 mar, 2020 | Brasil, Comportamento, Literatura, Trending
Assim como inúmeros imigrantes que através dos séculos partiram da Europa em busca de ares melhores, na hora de partir meus pais estavam mais interessados na promessa de felicidade do que na realidade que iriam encontrar. Foi como se tivessem acreditado num comercial enganoso: se encantaram com as cenas lindíssimas de praias mas não prestaram atenção no contrato mencionando o pântano traiçoeiro logo atrás. A verdade é que o Brasil, mesmo naqueles anos dourados, era muito mais complexo do que a Zona Sul carioca. Atolar a vida num terreno lamacento era uma possibilidade muito real.
Os filhos vieram num momento de trânsito em torno da criação de um personagem especial, de sucesso financeiro e de um processo de adaptação ainda não resolvido. Primeiro veio minha irmã, Sarah, e cinco anos mais tarde foi a minha vez. Nasci em 1962 no há muito demolido Hospital dos Estrangeiros, no morro da Babilônia, entre os bairros de Botafogo e de Copacabana. Como veremos, estes dois nomes não poderiam ter sido mais emblemáticos. Quanto ao futuro, havia um sinal de aviso na passagem mais bonita do Hino Nacional: “Dos filhos deste solo és mãe gentil, pátria amada Brasil”.
*
Rafael se reconectava com seu universo em caminhadas de madrugada pela praia deserta. Na paz e na simplicidade daquelas horas, ele se sentia bem dividindo o bairro com empregadas em busca do primeiro pão quentinho – seu cheiro maravilhoso saindo das padarias dos imigrantes portugueses e se dissipando na maresia fria das ruas desertas –, com raros porteiros zelosos limpando as entradas dos edifícios e com os bandos de cachorros vira-lata que corriam atrás de caminhões de leite e de jornais.
Adorava quando ele me levava junto. Depois de atravessar a avenida deserta, tiravamos os chinelos e cruzavamos a areia húmida até chegar na beira da água. Lá, com a praia só para a gente, começávamos nossas caminhadas. Na falta de outro assunto, e talvez precocemente, eu puxava conversas existenciais. Enquanto o sol dissipava a bruma e o mar desmanchava nossas pegadas na areia molhada, lhe perguntanava sobre o significado da vida, sobre a existência de Deus, do porquê das coincidências, de como era possível explicar a sorte e outras coisas que não conseguia entender. O que sabia, Rafael respondia da maneira mais fácil que conseguia e quando não tinha resposta, mudava de assunto.
As andadas eram sempre até a colônia de pescadores na ponta da praia de Copacabana, o Posto Seis. Sua sede era uma das primeiras construções do bairro: um velho barracão de madeira onde vendiam sua pesca a donos dos restaurantes, ao comércio e a moradores dos arredores. De dia, ao lado do depósito, dúzias de pequenos e coloridos barcos pesqueiros de madeira descansavam sobre a areia em meio a redes. Gaivotas disputavam os restos da pescaria com cachorros magros, observados por jumentos sonolentos e bodes amarrados. Ao seu redor, enxames de moscas zuniam no cheiro forte de sal e de peixe podre que permeava o ar.
Antes do amanhecer, os pescadores morenos de ar não urbano, partiam em grupos de cinco ou seis. Os mais experientes ficavam na praia coordenando a atividade através de gritos, assobios e sinais. Na hora que chegávamos à colônia, o sol já iluminava os barcos que voltavam. Para tirá-los da água, os homens deitavam troncos de árvores na areia à frente das embarcações e as empurravam com toda força até que chegassem na área seca próxima da avenida.
Os peixes vinham logo depois, presos em redes gigantescas. O momento de puxá-las para a areia era um mini festival. Os pescadores sempre precisavam de reforços e nunca faltavam voluntários. Um grande círculo humano se formava trazendo as centenas de criaturas, pulando em todas as direções ao tentar se libertar. Ja espalhados na areia, enquanto se contorciam em busca de ar, os patrões separavam os melhores pescados e deixavam o resto para quem havia ajudado.
Às vezes, meu pai me deixava participar. Como todo mundo, depois de suar e de maltratar as mãos nas cordas, fazia questão de aceitar os peixes que ofereciam. De volta em casa, invariavelmente meus troféus acabavam no lixo, ou por serem pequenos demais ou por não serem bons o suficiente para nossos jantares pretensiosos.
*
Poucas horas mais tarde, as famílias iam para a praia. Elas saiam dos prédios tal como cardumes surgindo das barras dos rios e nadando em direção ao mar. A manhã começava com babás ou mães girando o pé do guarda-sol para dentro da areia até que o cabo se firmasse. Quando não conseguiam, sempre havia por perto vendedores ambulantes ou salva-vidas para dar uma mão. Findo o processo, abriam os guarda-sóis que passavam a fazer parte do tapete de pontos coloridos que cobria os kilômetros areia dourada. Depois era hora de estender as toalhas, desdobrar as cadeiras e, por fim, liberar as pranchas, bolas e baldinhos para a gente brincar com os amigos.
Aquilo era um parque de diversões sob o sol escaldante. Corriamos atrás de cardumes de peixinhos na água transparente, nos enterrávamos na areia, levantávamos barragens para conter as ondas, caçávamos tatuís – bichinhos que viviam debaixo da areia molhada – cavávamos túneis, construíamos castelos e fazíamos guerras de areia.
Para descansar, a gente se sentava na beira da água e ficava espiando o fluxo constante de pessoas que iam e vinham. De tempos em tempos, os adultos acenavam para a gente voltar ao guarda-sol. De volta às bases, mandavam a gente se limpar e paravam um dos vendedores ambulantes que cruzavam a praia carregando caixas de isopor com picolés da Kibon ou mini tanques de lata com Matte Leão. O gelado doce dos seus refrescos era perfeito para amenizar o sol forte.
Apesar de imprescindível, o sol não era o rei da praia, quem comandava o espetáculo era o mar amplo e aberto na nossa frente. Ele era a liberdade completa que só a natureza pode oferecer. Depois da arrebentação, gaivotas mergulhavam para pescar criaturas que saiam do mar se debatendo nos seus bicos. Às vezes, golfinhos pulavam para fora d´água e, mais raramente, cações inofensivos mas com barbatanas parecidas com as de tubarões, passavam causando comoção na praia.
A água salgada do oceano era muito mais gostosa e refrescante do que qualquer chuveiro ou do que qualquer piscina. Conforme íamos adquirindo mais intimidade com a agua, íamos descobrindo as ondas e aprendendo a mergulhar por baixo ou pelo meio da sua espuma.
Em tardes com vento, meninos desciam das favelas. Não se aventuravam na água; a diversão deles era travar batalhas aéreas com suas pipas artesanais. Alguns passavam cola com vidro moído nas suas linhas para que ficassem mais eficazes na hora de cortar as dos outros. Uma pipa girando descontrolada no ar era o sinal de que um grupo havia tomado o escudo voador de outro. Quando finalmente caía na areia, a meninada saia correndo às dezenas para apanhar o troféu.
No fim do dia, quando o sol ia descendo, a praia parecia relaxar. O calor ficava menos intenso, uma brisa aparecia e a sombra dos prédios começava a cobrir a areia. As áreas ainda recebendo sol ficavam com um dourado que pintava a tudo e a todos na praia com um colorido especial. De vez em quando, grupos de amigos vindos do morro aproveitavam o frescor da hora para fazer uma roda de samba, oferecendo uma trilha sonora especial àquela hora do dia.
Enquanto me esbaldava na areia, dona Renée, já desinteressada da praia, preferia ir ao clube jogar tênis, Sarah já frequentava a escola e seu Rafael garantia o conforto da família no escritório no centro.
Minha companheira de praia era Pilar, uma babá portuguesa bonita de vinte e tantos anos. A única coisa de que me lembro bem dela é de ficar espiando o seu corpo nu com marcas de maiô enquanto tomávamos banho juntos depois da praia. Na banheira, podia examinar todas aquelas coisas sobre as quais tinha conversado com meus amigos e que não sabia como funcionavam. Pilar acabou se casando com meu barbeiro, o gentil Sr. Ribeiro, também português porém baixo, barrigudo, de bigode e com os cabelos louros e encaracolados. Certamente para atrair sua simpatia, sempre me guardava balas Soft, chicletes Ping-Pong e as mais recentes revistas Manchete, Cruzeiro e Placar, proibidas em casa mas que eu adorava.
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