Samba Perdido – Capítulo 30 – parte 02

Aquela rotina foi demais para o sistema. No último dia de Carnaval estava totalmente acabado. Numa rajada de sanidade, resolvi dar uma volta pela cidade para desintoxicar. Eram umas onze da manhã, e fui curtir o sossego das vias coloniais mais afastadas, longe do carnaval. De short e sem camisa, saí explorando a cidade até chegar a uma rua que terminava na subida do viaduto que ligava Olinda a Recife. Não dava para continuar dali, não havia passagem para pedestres. Vendo aquilo como um desafio, alguma força maluca me levou a arriscar uma travessia pela amurada desprotegida.

Sem ter nada em que pudesse segurar, segui pelo concreto estreito que chegava a ficar a uns vinte metros de altura sobre uma avenida movimentada. Qualquer tropeço seria fatal. Nunca tive um bom senso de equilíbrio mas na hora isso não pareceu importar. Olhei em frente e, como um equilibrista numa corda bamba, cheguei ao outro lado. Não estava sob o efeito de nada e nunca consegui entender o que me levou a correr aquele risco. Seriam tendências suicidas? Estava tentando provar alguma coisa a mim mesmo? Excesso de autoconfiança? Ou simplesmente não estava nem aí? Devia havet moleques que faziam isso todo dia.

Cruzei o viaduto sem problemas e desci numa rua calma, também colonial. Na primeira janela aberta, deparei com uma mãe ajudando seu filho com o dever de casa, os dois alheios à minha confusão mental e ao barulho ensurdecedor do trânsito. Meio atonito, parei para olhar, os dois me viram, demos uma encarada intensa, eles talvez com medo do maluco parado na janela e eu tentando entender como aquela cena pacata e racional era possível. Segui em frente me perguntando se havia uma mensagem do universo naquela cena.

Voltei para Olinda de ônibus e assim que desci de volta aos braços do Carnaval que já estava pegando fogo. Fiz uma parada na casa VIP onde as pessoas estavam se preparando para sair num bloco famoso. Como era a saidera, a Australiana ruiva caprichou na tatuagem de verão e meu rosto ficou fantasiado do que estava sentindo. Todos prontos e calibrados, saímos para rua parecendo personagens surrealistas. A maioria foi para o bloco mas prefiri me aventurar sozinho. Não demorou muito para agarrar uma gostosa local e a levar para o parque onde os casais iam. Tinha tido varias, nenhuma tinha a magia quase inocente da Gê, mas deu para matar a saudade.

Quando caiu a noite, fui com ela a um bar encontrar seus amigos que acabei achando caretas demais. Depois que se foram, comecei a conversar com uns caras meio barra pesada da mesa do lado. O papo se tornou bizarro e os dois acabaram me convidando para viajar de graça de navio para Europa levando cocaína. Sentindo aquilo pesado demais, saí fora e voltei para a confusão das ruas onde cruzei com um colega de sala da faculdade. Felizes com a coincidência, saímos abraçados atrás de um bloco. Ficamos na farra até às quatro da manhã. Com as ruas esvaziando, fomos para um bar deserto onde ficamos batendo papo até ele ir embora.

Naquela altura, o céu já estava ameaçando clarear. Era a hora de dar por encerrado o carnaval. No caminho, cruzei com o Betinho, o filho do prefeito, acompanhado de amigos, subindo a ladeira que estava descendo.

Fiquei surpreso quando ele me chamou do outro lado da rua: “Fala carioca! Tu não é o amigo da Dinah?”

“Sou, e aí? Beleza?”

“Tu tinha um nome gringo, não é mesmo? Richard?”

Me aproximei. “Isso mesmo. E aí? Resolveu sair?”

“Pois é, meu irmão, ser anfitrião é um saco!” Deu para sentir que os amigos estavam a fim de me dispensar, mas para contrariar, ele me convidou “E aí? Bora fumar a saideira do Carnaval ali em cima no parque?”

Não ia perder a oportunidade. “Opa! Vambora!”

Pata irritar seus amigos, ele continuou conversando comigo. “E então, carioca, curtiste a festa? Gostaste do Carnaval de Olinda?”

O cansaço não tinha roubado o bom humor. “A parte que me lembro foi demais, a parte que não me lembro deve ter sido melhor ainda.”

Ele deu um sorriso. “Pois é rapaz, todo ano fazemos uma dessas. A gente abre a casa para os outros se divertirem e se diverte com eles.”

Um dos amigos emendou: “Essa festa é uma tradição do Carnaval de Olinda. Merecia entrar no calendário oficial!”

O Betinho, visivelmente cansado da bajulação, voltou a falar comigo. “Carioca, te garanto que tu vai fechar o Carnaval com chave de ouro.” Ele tirou do bolso uma muda ressacada. “Isto aqui é o famoso Manga-rosa. Tirado do pé faz nem uma semana. Meu primo ali me trouxe direto de Cabrobró. Já ouviste falar?”

“Caralho! Manga-rosa! Nunca pensei que fosse experimentar isso na vida!”

Ele passou para eu dar uma olhada. Um outro amigo falou: “Chega até a ser bonito. Dá uma cheirada para sentir. Não existe melhor!”

O cheiro era fortíssimo. “Isso cheira a bagulho bom!”

“E é! Made in Pernambuco!”

Chegamos no topo do parque e nos sentamos numa escadaria de pedra para esperar o sol nascer.

O primo quebrou o silêncio. “Passa aqui pra eu apertar.”

O cara era um artista, saiu perfeito. “Isso também é uma tradição. O Betinho sempre guarda um para agora.”

“É verdade, a gente faz isso desde moleque. Sempre fechamos o Carnaval com um desses para depois sair no Galo da Madrugada.” Tinha ouvido falar no bloco, era o último do Carnaval.

O primo do Betinho passou o baseado para ele acender. Quando chegou em mim, deu uma onda quase tão forte quanto os cogumelos alucinógenos de Mauá e – como toda boa maconha – dois pegas bastavam.

Ficamos ali, sozinhos com a cidade só para nós. Em pouco tempo o horizonte foi alaranjando até o sol aparecer como um círculo brilhante. Ele foi subindo iluminando de leve a natureza à nossa volta. As cores magníficas, o silêncio e a temperatura amena fizeram aquele momento ser perfeito. Relaxando depois de sorver tanta vida, não só no Carnaval mas no verão inteiro, fiquei em estado de graça.

Estávamos em transe quando, do nada, dois estranhos chegaram e se juntaram a nós. Eram mais velhos, nos seus trinta e poucos, um era louro, grande, de cabelos compridos e com ar de surfista e o outro era musculoso, de camiseta de malhador apertada e com um corte de cabelo estilo escovinha.

O cabeludo puxou conversa: “Barbaridade, que visual incrível!”

Estava na cara que ele era gaúcho só que ninguém estava a fim de papo. Ignoramos, mas eles insistiram.

O outro falou em um inglês com sotaque americano, meio agressivo “Diz para eles que a gente sabe que eles estão chapados, mas que estamos muito mais chapados que eles.”

O gaúcho traduziu e depois explicou: “Esse maluco é americano, não fala uma palavra de português.”

Depois de uma pausa, um dos amigos do Betinho respondeu.

“Não existe esta de estar mais ou menos chapado, estamos aqui curtindo a paz do visual.” E completou em inglês. “Aqui todo mundo aqui fala inglês, relaxa.”

O gaúcho continuou em português “Este americano é tri-louco, grudou em mim e agora que tomamos um ácido ele está mais louco ainda.”

Quando o gaúcho mencionou ácido olhamos em sincronia para os dois, mas a vontade de ficar em silêncio continuou. Talvez por se sentir na obrigação de fazer turistas se sentirem bem-vindos na sua cidade, Betinho se tornou nosso porta-voz.

O cara era um político nato. “Curtiram o Carnaval? Did you enjoy the Carnival of Olinda?”

Quem respondeu foi o Gaúcho “Eu venho todo ano passar o Carnaval com a minha irmã que mora em Recife. O Mark aqui está estacionado em uma base militar no Caribe e veio passar as férias.”

O americano ainda nao tinha entendido que todo mundo ali – talvez com a excessão do gaúcho – falava inglês. A palavra Caribe tinha pescado sua atenção ainda que continuasse a achar que não entendíamos o que estava dizendo.

“Caribbean yeah, Guantánamo! ” Bateu nos braços fortes “Sou um Marine, entende?! Adoro armas, combate e mulheres brasileiras. Fala para eles que eu estive no Vietnã! ”

A palavra Guantánamo tinha deixado todo mundo de orelha em pé. Mesmo assim, a presença deles e o papo eram tão fora de contexto que ficou difícil distinguir se aquilo era verdade ou alucinação. De qualquer forma ninguém estava a fim de rebater o cara em inglês naquela altura. Eu é que não ia me meter.

O gaúcho, sem perceber as nuances da situação continuou no papel de intérprete lisérgico: “Não estou dizendo que este americano é doido?! Agora ele inventou que lutou no Vietnã. ”

Pela idade era impossível, como também era muito pouco provável que estivesse estacionado em Guantánamo. Por outro lado, o físico, a atitude e o corte de cabelo pareciam confirmar que se tratasse de um Marine. Novamente, ninguém falou nada torcendo que eles descessem da nossa nuvem o mais rápido possível.

O americano continuou a nos desafiar, acenou com a cabeça, colocou dois dedos para cima e falou num português fraquíssimo: “Sim, dois anos, eu in Vietnam. ”

O gaúcho estava hiperativo. “Liga não, ele é maluco assim mesmo, faz cara feia, inventa histórias e volta e meia se mete em confusão. No fundo é gente boa, mas o melhor é ignorar a figura.”

Aquilo de absurdo virou chato. Deu vontade de ter um controle de televisão para trocar de canal ou uma tecla para baixar o volume ou fazer os dois desaparecerem. O americano finalmente se deu conta de que a gente não estava na mesma onda e disse ao gaúcho: “Hey buddy! Let’s go! ”

O gaúcho traduziu: “Moçada, a gente vai nessa.”

Os dois partiram da mesma maneira que chegaram e aliviaram o ambiente. Ficamos uns quinze minutos sem falar nada. Alguem acendeu o baseado de novo e quando chegou na vez do Betinho, ele interrompeu o silêncio. “Galera, daqui a pouco o Galo da Madrugada vai sair, vamos lá?”

Todo mundo foi, mas resolvi ficar, minha quota de Carnaval já estava pra lá de preenchida. Agradeci e a gente se despediu. Fiquei ali sozinho, apreciando a beleza de Olinda até a lombra passar. Aquelas loucas primeiras horas da manhã em uma cidade histórica no Nordeste brasileiro marcou a minha despedida de uma época especial; um período de minha vida do qual sempre sentirei saudades.

O Pedro, com quem cruzei apenas uma vez durante o Carnaval, tinha conseguido carona na caravana dos amigos da Carla e ia voltar com eles para o Rio. Voltei sozinho e tive sorte de pegar caronas longas. Quando cheguei em Campos, no Estado do Rio, me dei conta de que tinha gasto todo a grana. Como precisava chegar em casa a tempo do início das aulas, pela única vez na vida, pedi dinheiro a estranhos para completar o dinheiro da passagem de ônibus e para comer alguma coisa; uma situação bem distinta da que tinha rolado na casa do Betinho e uma lição importante de humildade.

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Samba Perdido – Capítulo 30 – parte 01

Capítulo 30

 

"Na Madalena revi teu nome
Na Boa Vista quis te encontrar
Rua do Sol, da Boa Hora
Rua da Aurora, vou caminhar."

Pelas ruas que andei. - Alceu Valença.

 

Não havia celulares na época, o único contato com nossas famílias era uma ligada semanal que faziamos na telefônica da cidade onde estivéssemos – se houvesse uma -, para assegurar que tudo estava bem. Como de praxe, na quinta feira antes do Carnaval, fomos na de Olinda. Quando sua vez chegou, Pedro fez duas ligações, uma para sua mãe e outra para Carla, sua namorada. Hospedada em um hotel em Fortaleza ela veio com a surpresa de que tinha alugado um apartamento em Boa Viagem, no Recife, e que estava vindo de avião no dia seguinte para passar o Carnaval com ele. O Pedro ficou nas nuvens, mas para mim a notícia de que passaria o Carnaval sozinho me deixou puto. Só que no final o resultado foi muito melhor do que podia imaginar.

Para compensar o furo, Pedro me deu o contato da Dinah, uma jornalista que havia conhecido em Porto Seguro. Sua amiga estava hospedada na casa do – nada mais nada menos – filho do prefeito de Olinda. Depois que  saiu sem graça com suas tralhas do quarto, fiquei olhando para a porcaria do papelzinho com o número, pensando se ligava ou não. Só a conhecia de vista, com certeza ia me mandar pastar assim que atendesse. De qualquer forma arrisquei e fui para o orelhão da esquina, Quando atendeu, para minha surpesa, a Dinah me tratou como se fossemos amigos de longa data.

Ela ja estava sabendo “Richard! Claro que me lembro! Quer dizer que o Pedro, aquele galinha, vai passar o Carnaval no bem-bom e te deixou na mão.”

Simpaticíssima, me convidou para passar o Carnaval com ela. “Olha, o pessoal está se encontrando todo dia aqui na casa do Betinho Magalhães. O Pedro te falou quem ele é? Pois é! Por que você não aparece hoje à noite para eu te apresentar ao pessoal? Você vai adorar!”

Fiquei sem jeito de aceitar, mas na sexta feira a noite, inicio do carnaval, não dava para recusar. Anotei o endereço e mais tarde fui encontrá-la do lado de fora da propriedade VIP.

Quando cheguei, a Dinah já estava me esperando do lado de fora. Depois dos beijinhos na bochecha, foi falar com os seguranças que liberaram minha entrada. Lá dentro, pendurada no meu braço ela disse: “Já te arrumei um crachá, querido, este vai ser um Carnaval que você não vai esquecer nunca, o Pedro se deu mal!”

Dinah era uma mulata baixinha e troncuda. Não era das mais bonitas, mas pegaria tranquilo. Contudo, senti que não havia qualquer tipo de atração da parte dela e que estava fazando aquilo por ser genuinamente gente boa. Minha gratidão era imensa.

Animada, ela me deu um tour da casa antiga, imponente e bem conservada. Nos salões, nos jardins e nos corredores haviam convidados numa sofisticação incompatível com os festejos bombando nas ruas. Garçons andavam de um lado para o outro servindo bebidas e canapés. Para quem quisesse algo mais substancial, havia um buffet generoso de comidas frias e quentes com pratos e talheres de primeira linha para consumi-las. A mesa era enorme de madeira talhada e ficava numa sala colonial que parecia uma sala de museu.

Teminamos num saguão cheio de gente graúda, pessoas de fora e de estrangeiros, todos bem mais velhos, vestidos com estilo e conversando com compostura. Ninguém estava de terno por ser o Carnaval, mas estavam todos muito bem vestidos. Preocupado em não fazer a Dinah se arrepender do convite, tinha colocado uma roupa convencional, não era chique mas também não era a de hippie afrescalhado. Circulamos entre os convidados e enturmada, ela saiu me apresentando a todos. “Oi, este é um amigo do Rio, Richard. É filho de ingleses, músico, estudante de Economia e muito legal!”

As socializacões com os recém-apresentados não duravam muito, mas eram educadamente simpáticas. Ela chegou até a me apresentar ao Betinho, o dono da festa que pareceu ter ido com a minha cara.

Depois das apresentações, Dinah foi conversar com um cara por quem achei que estivesse interessada. Sem querer dar uma da mala e ficar na aba dela, pedi licença e fui dar uma volta na festa. Não pude deixar de pensar que aquele lugar e aquela gente seriam o paraíso para o Pedro. Apesar da estranha espécie de justiça divina, estava mais preocupado em curtir a folia nas ruas do que me enturmar naquela festa que prometia ser chata. Na pior das hipóteses, ia comer e beber bem e de graça antes de colocar o pé na jaca. Depois de uns dez minutos, já a ponto de ir embora, fui percebendo que além da fartura de bebidas – whisky, caipirinha, gin com tônica e cerveja – quase indiscretamente, estava rolando de tudo em termos de drogas: tinha gente nos cantos oferecendo lenços com lança-perfume, rodas de cocaína em alguns quartos e o quintal estava fedendo a maconha excelente. Escutei, inclusive, alguem dizer que tinha alguém distribuindo LSD.

Curtindo mais as possibilidades, fui percebendo que motivo da aparencia formal é que depois de se chaparem, a galera mais doida saía para o Carnaval na rua. Quem ficava na casa eram os caretas e os coroas.

Continuei na minha exploração e apos descolar uns pegas numa roda, achei num dos cantos do jardim um grupo de espanhóis que pareciam ter um estilo parecido com o meu. Como eu, estavam um tanto desconfortáveis em meio àquela bizarrice sofisticada. Cheguei junto e puxei papo em um portunhol terrível com um deles que repondeu com simpatia. Conforme os garçons foram enchendo nossos copos com doses generosas de whisky, fomos ficando mais desinibidos.

“Mira, conoces el dueño de esta fiesta?”

“Mais ou menos, soy convidado de uma convidada, compreendes? e ustedes?”

“Hombre, somos nadie, dissimos que trabajamos en el consulado y nos deran permisso. Que tontos!”

Cai na gargalhada.

“Sabes quien es el dueño?” Me perguntou um outro.

“Es el filho do prefeito de Olinda, entiende? Hijo del prefecto!?”

“Ah si, hijo del alcaide! Hoder! Que loco!” O Espanhol virou para os amigos para contar o que tinha acabado de ouvir.

Ficaram espantados e acharam engraçado ao mesmo tempo. Uma garota, bonita, falou: “Puta madre! La casa ni es del alcalde, es de su hijo! Como tienen plata estos cabrones!”

Já amigos, quando nos sentimos calibrados para a folia saimos da festa e fomos nos juntar à massa nas ruas já tomadas pelos blocos. Como a maioria dos outros convidados, a gente só voltava de vez em quando para um “pit stop”.

*

A festa durava o carnaval inteiro. Tinha perdido a Dinah de vista, mas com carta branca para entrar e sair na hora que quisesse, minha rotina não poderia ser mais estranha. Acordava no quarto alugado, que apesar da localização privilegiada mais parecia o de um barraco, e ía para uma das melhores casas da cidade para tomar café e “fazer a cabeça”. Podia chegar na hora que quizesse já que buffet do café de manha ficava à disposição até as duas da tarde. Depois dele, ficava conversando com aquela turma interessante e amiga de verdade. Por volta das quatro da tarde saíamos todos para pular um dos melhores carnavais do mundo. Havia duas meninas Australianas que curtiam pintar as caras dos outros e por isso saíamos para a rua parecendo a turma do Batman.

Lá fora, nos dipersávamos, nos encontrando ocasionalmente na confusão ou quando retornávamos para fazer os reabastecimentos necessários. No carnaval, a qualquer hora do dia, as ruas ficavam abarrotadas de gente de todas as classes sociais, cores e provêniencias consumidas pela loucura coletiva do frevo. O tempo todo me esbarrava com conhecidos; gente das várias paradas no litoral, amigos do Rio, os espanhóis do casarão, enfim com todo mundo menos o Pedro, que sumiu e não estava fazendo falta nenhuma, e a Dinah que devia estar curtindo um romance cm o cara da festa.  Longe dos blues existenciais de Canoa Quebrada, me perdia naquela doideira e ficava até o amanhecer para depois voltar, tal como Cinderela, ao covil miserável onde tirava algumas horas de sono.

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Samba Perdido Capítulo 14 – parte 02

Apesar das frustrações no departamento amoroso, se é que  podia ser chamado disso, a gente adorou o pré-Carnaval do Recife. No Rio, a classe média fugia da folia para descansar, mas ali todos faziam questão de ficar e participar. A cidade inteira entrava na onda e ficava de cabeça para baixo. À noite, havia a tradição do “Mela-Mela”. Blocos improvisados cruzavam pelas ruas abarrotadas de foliões que passavam melando uns aos outros, conhecidos ou não, com uma mistura de água, açúcar e farinha que preparavam em casa. Nossos anfitriões fizeram questão de fazer alguns sacos da coisa para a gente. É claro que era previsível que dois caras de fora seriam mais alvos do que atiradores. Nós revidamos, mas quando nossa munição acabava, tinhamos que voltar para casa parecendo dois pães franceses crus mas felizes e exaustos da diversão.

Nos fins de semana, durante o dia as pessoas passeavam em carros sem portas e em caminhões alugados jogando baldes de água nos passantes. Nas calçadas, as vítimas os aguardavam com jatos d´água de madeira de um metro e pouco de comprimento preparadas para revidar. Quando os carros passavam, era uma guerra e os embates aconteciam em meio a gritos e gargalhadas. A tia do Davi nos avisou para tomar cuidado com as coisas que as pessoas podiam colocar na água, mas nunca saímos cheirando a algo estranho.

O primeiro baile de pré-Carnaval daquele verão foi na parte velha da cidade, junto ao porto. A praça, o Marco Zero, ficava numa área que, por causa do arranjo estreito das ruas e das lojas mal cuidadas, parecia com o pano de fundo de um velho filme preto e branco passado no Oriente Médio, mas com prédios coloniais europeus e povoada por caribenhos.

O ritmo do Recife é o frevo, que para nós parecia uma batida militar acelerada com um quê de africano. Nos bailes, ele era executado por uma sessão rítmica considerável, acompanhando uma orquestra de metais tocando arranjos rápidos e complexos. O jeito tradicional de se dançar aquele ritmo envolvia agachar-se e pular no ritmo da música agitando um guarda-chuvas. Porém a multidão na Praça da Sé estava bêbada demais para acrobacias. Quando a música pegava fogo, a sensação era parecida com a de se estar em um show de punk-rock, onde ninguém sabia ao certo se estava brigando ou se divertindo. Tínhamos que ficar dando cotoveladas acima de nossas cabeças para não sermos atingidos naquela enxurrada de loucura musical.

Chegou uma hora que os organizadores pararam a música e ergueram uma garrafa de whisky nacional, anunciando “Boa noite, povo do Recife! Esta aqui uma garrafa de uísque Drury’s, o melhor do Brasil. Ela vai para o folião mais animado desta gente maravilhosa. Quem está animado aí?”

A praça foi ao delírio.

“Então vamos ver quem é o mais animado de vocês, valendo essa garrafa!”

A banda voltou a tocar e a turba caiu no frevo ainda mais enlouquecida.

*

Algumas semanas mais tarde, o Carnaval começou oficialmente e nós tínhamos duas opções. A primeira delas era ir para Olinda, a cidade histórica ao lado do Recife, onde as autoridades fechavam a cidade para carros pelos quatro dias inteiros. Fora os inúmeros blocos nas ruas da cidade, havia sempre no mínimo quatro ou cinco orquestras de frevo tocando em diferentes lugares ao mesmo tempo. Podíamos pular de Carnaval em Carnaval e nos juntar às multidões que nunca tinham menos de mil pessoas.

A outra escolha era ir aos bailes de Carnaval em Recife. Nos primeiros três dias escolhemos a primeira opção: o Carnaval de rua de Olinda, mas, apesar da animação não obtivemos sucesso com as garotas. No último dia, para tentar mudar nossa sorte, partimos para a segunda alternativa, onde talvez a receptividade feminina fosse ser maior. Foi assim que acabamos no Carnaval do Sport Clube do Recife, sede do famoso clube de futebol.

A entrada estava apinhada. O ingresso era barato e havia uma mistura de gente do povão e de gente rica, sócia do clube. No salão havia uma grande orquestra de frevo no palco. A música estava pegando fogo, o Carnaval lotado e o clima incrível. Havia pessoas dançando onde quer que podiam – na pista, nas mesas e nas cadeiras. Volta e meia tocavam o hino do clube e o refrão levantava todo mundo.

“Este ano o Sport vai ser mesmo campeão,

Todo mundo vai cantar e dizer, ninguém segura o Sport não!”

Depois de semanas de frustração, mas agora inspirados pela animação e por muita cerveja, obtivemos sucesso. A maneira de se “pegar” as garotas, quase todas de saias curtas e vestindo a camiseta do clube, era sair as agarrando pela cintura. Não precisava falar nada, o próximo passo era dançar um pouco ao redor da pista e depois arrastá-las para um canto do lado de fora e lá tentar chegar o mais longe possível.

Depois de fazer isso com várias, “peguei” uma morena maravilhosa. Como as outras, a levei para o escuro ao lado da barraca de cerveja. Ela era bem nova, com certeza menor de idade, cabelo macio, carnuda, deliciosa de se pegar. Quase não deu para ouvir o nome dela por causa da música alta, mas entendi que se chamava Gê. Com ela o amasso foi mais intenso do que com as anteriores. O jeito que ela me deixava pegar nela e a maneira com que se esfregava na minha “barra de balas drops” me diziam que, pela primeira vez na vida, havia a possibilidade de levar a coisa para o próximo nível.

A certeza bateu quando ela falou no meu ouvido: “Ah, seu carioca gostoso, estou ficando louca.”

Embriagado pela cerveja e pela a sexualidade dela, sem motivo para ter vergonha na cara respondi: “Você já me deixou louco faz tempo, está sentindo isso? Ele está doido para te conhecer todinha.”

“Aff, seu maluco, deixa eu sentir. Hmmmm…, ela apertou, deu uma olhada safada e disse: “Assim eu não aguento. Vem comigo!”

Ela pegou na minha mão e foi me guiando. A gente se afastou do Carnaval. Depois de passar por umas casinhas dentro do clube chegamos num portão semiaberto e entramos na área da piscina do clube. Depois de mais amassos, descemos uma escadinha e fomos parar na sauna que estava vazia e com a luz desligada.

“Num se preocupe, carioca, eu sou sócia do clube e ninguém vem aqui à noite.” Estava tudo escuro, mas dava para ver ela se sentar em um dos degraus. “Venha cá, meu lindo.”

Apesar de mais nova, ela parecia ter mais experiência na coisa. No meio dos beijos, ela me agarrou e perguntou. “Não tiraste a camisa ainda?! Tire agora!”

Enquanto colocava a camisa no chão, ela foi se esfregando e entendi que era para eu também tirar a camisa dela. Em silêncio, acabamos nus. Depois da delícia da pele contra pele, ela se recostou de joelhos num dos degraus. “Eu gosto assim. Vem.”

Foi a melhor coisa que já tinha experimentado na vida.

*

O ônibus saía às dez da manhã do dia seguinte, quarta-feira de cinzas. Cheguei na rodoviária virado e exaurido pela Gê. A gente tinha amanhecido na beira da piscina, ido tomar café numa padaria e depois passamos para pegar minhas coisas. Ela ficou me esperando embaixo enquanto me despedia de meus anfitriões. Querendo que ficasse, acabou vindo até a porta do ônibus para os últimos amassos na frente de todo mundo.

Embarquei sozinho, o Davi ia ficar com uns amigos que tinham vindo para o Recife.

Por coincidência, alguns dos membros da banda que tinha tocado no Carnaval do Sport Club Recife pegaram o mesmo ônibus. Não eram frevistas mas tocavam as marchinhas de carnaval enquanto a orquestra de frevo descansava. Eram todos ligados à escola de samba Unidos de Vila Isabel e ainda estavam em clima de folia. A festa continuou pela viagem inteira: 43 horas com muita bebida e batucada no ônibus até voltarmos ao Rio. Quando cheguei em casa, tomei café e depois de um banho mergulhei na cama de onde não saí pelas próximas 24 horas. Tudo seria diferente depois daquela injeção na veia de frevo, suor, Recife e Gê. Meu tempo de aprendizado teórico sobre o Brasil tinha acabado. Agora só queria saber das aulas práticas. Volta e meia pensava na minha recifense, mas apesar de a gente ter trocado telefones, nunca mais tivemos contato.

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