Pacheco, Aziz e a alma brasileira
Nem fogo, nem gelo: o genocídio “morno”
O grande erro da CPI da pandemia
Um julgamento histórico ocorrido no STF na última quinta-feira passou desapercebido para muita gente e acabou não gerando a devida comoção. Explico. Julgou-se a inconstitucionalidade da lei 13.454/2017 que veio à época em resposta à resolução da ANVISA anterior que bania 4 medicamentos anorexígenos do Brasil, a saber, Anfepramona, Mazindol, Fenproporex e Fentermina, e ainda estabelecia normas rígidas para a prescrição da Sibutramina. A referida lei questionada e julgada inconstitucional restabelecia a licença para a prescrição médica e comercialização daqueles produtos.
À época, a resolução da ANVISA veio na contramão da opinião técnica de todas as sociedades brasileiras de endocrinologia, incluindo a academia, e foi assim vítima de duras críticas, inclusive a minha, que embora não sendo um grande entusiasta desses medicamentos, sempre reconheci que a personalização de cada caso pesando riscos e benefícios poderia ser vantajosa em muitos casos. A consequência prática do banimento da ANVISA foi a substituição dos 4 produtos pela Lisdexanfetamina, licenciada no Brasil para o tratamento do Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade, que em doses superiores à esta indicação produz importante supressão de apetite. Mesmo os ambulatórios de serviços especializados do SUS como o Hospital das Clínicas da USP adotaram este caríssimo medicamento como último recurso.
Mas a síntese da ópera é o seguinte: o STF bateu o martelo no poder delegado à ANVISA de decidir e regulamentar tudo o que se refere ao uso de medicamentos no Brasil. Fim. Acaba a discussão, o Congresso Nacional não pode legislar a respeito.
Sem grande alarde, mas com peso legal definitivo, o STF jogou no colo da ANVISA o Kit-Covid, essa excrescência médico-farmacológica que foi uma das grandes tragédias da atual pandemia. Mas o fato é que muito antes disso eu vinha denunciando a criminosa omissão da ANVISA, que silenciou sobre o assunto, tendo emitido apenas um parvo e insignificante comunicado que ninguém viu sobre o assunto, fechando com toda a força os olhos diante da tragédia técnica e ética que se desenhava. Quem acompanha meus vídeos e transmissões e minhas manifestações veementes nas minhas mídias sociais é testemunha da minha denúncia.
A CPI da pandemia deixou a ANVISA de lado nesta questão, que agora, sob a decisão de repercussão geral do STF recebe no seu colo todo o peso da responsabilidade dessa criminosa omissão, resultante da covardia de seu presidente, que certamente por questões pessoais e personalíssimas deixou de cumprir o seu dever, ocupando o seu tempo com as infindáveis filigranas para licenciar vacinas com critérios de “tempos de paz” que não contribuíram para a aceleração do processo de vacinação.
Espero sinceramente que em algum tempo esse imenso erro da CPI seja revertido por algum outro procedimento e que os responsáveis paguem pela suas omissões injustificáveis.
Eu acusei. Eu acuso. Eu acusarei.
O ciclo da danação eterna
Uma das características marcantes do fascismo e suas recorrências é a uniformidade da estrutura de pensamento de seus líderes e praticantes, marcadamente infiltrada pelo pensamento religioso que se sedimenta no formato de crenças, dogmas e pressupostos sofismáticos e inquestionáveis à luz da razão. Razão, aliás, nascida sim de uma ideologia refletida pelo iluminismo clássico, que no século XVIII ganha o ocidente com a meta de transformar governos absolutistas em democracias, e que, para tanto, tem a necessidade de propor uma nova visão de mundo baseada na liberdade de pensamento, de busca da verdade, do compartilhamento de conhecimento, e de métodos de estabelecimento de verdades desprovidas de personalismos e desejos primitivos, do reconhecimento da igualdade entre os seres e por metas de progresso visando a proteção de todos os cidadãos dos estados-nação.
É muito claro que a compreensão de um mundo de complexidades com vistas ao sacrifício dos desejos e visões pessoais e a formulação de objetivos e métodos que nem sempre (ou quase nunca) serão direcionados aos caprichos do indivíduo depende de um sistema de educação e formação de indivíduos que possa resumir em uma existência – ou melhor, em um período de uma existência – todo o complexo conjunto de acontecimentos transcontinentais que precederam e fomentaram o movimento iluminista.
No cume do processo de transformação iluminista está a ciência, que através de dois ou mais séculos veio conquistando lentamente a confiança de partes da sociedade como fonte de verdades “democráticas”, ou seja, verdades “testáveis” e verificáveis por qualquer um que possa reproduzir um dado experimento nas mesmas condições e assim obter os mesmos resultados.
Como nada é perfeito, as sociedades pós-iluministas cresceram e multiplicaram-se muitas vezes com heranças culturais e físicas dos regimes anteriores. Muitas delas, mormente no oriente médio e oriente sequer fizeram uma transição entre o tribalismo e algo parecido com o medievalismo, e assim, jamais enfrentaram estas questões em um processo de formação de sociedades complexas e eventualmente transnacionais, onde a noção e existência de um estado gestor da nação seria o eixo desse desenvolvimento e diversificação dessas sociedades. Não surpreende, portanto, que essas sociedades hoje em choque cultural com os estados pós-iluministas sejam tomadas por práticas e líderes religiosas vistas pelo ocidente como radicais e fanáticas, mas que curiosamente têm, nos estados-nação ocidentais, visto o renascimento dessa estrutura de pensamento e poder ressurgindo no âmago da sociedade. No caso particular do Brasil, a tomada do poder pelo pensamento religioso é um grave sintoma da desorganização da sociedade obtida pela contínua quebra dos laços de confiança que deveriam nos unir. Esta quebra, por sua vez, alimentada pela contínua frustração gerada pelas desigualdades crescentes em ritmo alucinado e que têm como trágica consequência o progressivo desgaste e desorganização dos sistemas de educação, refletidos em números vergonhosos.
Fechando macabramente esse ciclo, o número de pessoas incapazes de compreender e de se engajar em uma sociedade complexa, verdadeiramente livre, e psicologicamente capaz de converter um certo número de frustrações em modos de ação articulada capaz de induzir transformações sociais progressivamente diminui, e em contrapartida, aumenta o número das que, pelas vulnerabilidades psicossociais e culturais, formam a massa crítica necessária para que as tentações simplificadoras e salvacionistas do fascismo ganhem força, o que tragicamente, e frequentemente, é alimentado pelas grandes mídias e hoje ainda alavancadas pelas redes sociais.
Por este olhar, fica muito claro que a desigualdade é um pathos em si mesmo, no sentido de que a se julgar pelos acontecimentos mundiais das últimas décadas, verifica-se que é uma condição que cria um círculo vicioso que só piora a condição em si mesma, gerando mais concentração de poder político, econômico, e poder de fato.
Felizmente, e espero que não temporariamente, no caso do Brasil a opinião pública revelada nas pesquisas recentemente publicadas vem apresentando forte reação no sentido de rejeitar o sistema político ora no poder, e valoriza um sistema que previamente trabalhou no sentido contrário do atual, mas ainda assim, mostra fragilidades na habilidade de “ligar os pontos” dessa complexa teia de acontecimentos, poderes, mídia e pessoas, e assim elaborar um projeto político que nos vacine de uma vez por todas contra o fascismo e suas mil caras, e que reabilite o ciclo virtuoso de fortalecimento de laços sociais e de confiança.
Do contrário, teremos o ciclo da eterna danação.
O bolsonarismo é um tóxico
A mente humana (e talvez não só a humana) pode funcionar como uma verdadeira caixa de ressonância, onde qualquer “onda” pode provocar um colapso. Talvez o exemplo mais claro e simples é a convulsão, onde uma sequência de disparos anormais de pequenos agrupamentos neuronais se propagam, sob o ponto de vista de uma abordagem da mecânica ondulatória, como um processo que reverbera em vizinhanças cada vez mais largas a ponto de que as ondas de impulsos neuronais (referidos grosseiramente como “ondas elétricas”) ganham sucessiva e rapidamente os territórios cerebrais a ponto de suprimir a consciência e provocar uma certa ressonância no corpo inteiro da vítma, levando-a à perda de consciência e aos movimentos tônico-clônicos conhecidos. Como tudo em função neuronal se traduz em “ondas” de despolarização/repolarização que se propagam por circuitos que tem regulagens químicas ponto a ponto (nas sinapses, que são pontos de comunicação entre os neurônios), a função de determinados circuitos pode ser modulada por agentes químicos. Assim, conseguimos com medicamentos modular certas funções neuronais, para por exemplo, “quebrar” as vias de ressonância ou reverberação, impedindo assim, que algo se propague para todo o cérebro, e eventualmente, também estabilizando a função de grupos neuronais “rebeldes”, que geralmente assim o são por pequenas mutações genéticas que afetam a função de bombas e canais de íons (de sódio, potássio, cálcio) nas respectivas membranas celulares.
Substâncias químicas outras podem também induzir alterações de função neuronal/cerebral produzindo sensações de prazer e recompensa e também alterações de consciência (muitas vezes descritas como “expansões”) e que produzem na pessoa compreensões da realidade que normalmente não são atingidas no estado “natural” ou na ausência dessas substâncias. Ocorre que o uso repetitivo de certas substâncias pode (como o álcool, opiáceos, e mesmo certos medicamentos) induzir fenômenos de tolerância e dependência, de modo que as doses necessárias para a obtenção do efeito aumentam progressivamente e estabelece-se um círculo vicioso que causa intenso mal-estar no estado de abstinência da substância, que pode ter consequências fatais.
O conhecimento atual das funções da mente (entendendo “mente” como o “produto” da função cerebral) permite-nos afirmar com segurança que o caminho reverso existe. Ou seja, se usarmos como “entrada” no cérebro apenas certos conjuntos de idéias ou vivências repetitivas e de forma consistente, o sistema progressivamente incorpora modos de função que se refletem fisicamente em modulações químicas e formação de circuitos funcionais que passam a ser uma representação física de uma experiência meramente abstrata. Assim podemos compreender a razão de certos comportamentos que as pessoas tem, e com grande frequência os que vivem sofrimentos mentais ou psíquicos, de se desfazerem de idéias e comportamentos “ressonantes” ou repetitivos em suas vidas, nos mais variados graus de complexidade e peculiaridades individuais. Se por um lado a teoria psicanalítica nos fornece bons substratos para o entendimento da gênese de certas emoções e comportamentos, a ação química sobre o cérebro, modulando a função de certos circuitos pode aliviar muitos sofrimentos e abrir o caminho para o estabelecimento de novos padrões e diminuição da dor psíquica.
Saindo do mundo do indivíduo podemos teorizar e verificar, com as devidas metodologias ao alcance da psicologia das massas e da sociologia, que as ideias circulam na sociedade de forma semelhante à função neuronal em um cérebro. Talvez o exemplo mais clássico seja a presença das “modas”, que são hábitos e práticas que muitas vezes ganham a sociedade de forma verdadeiramente epidêmica e se propagam como uma onda convulsiva, seja por uma simples expressão de linguagem até uma forma de vestimenta ou hábito alimentar, formando um conjunto de mudanças de comportamento coletivo movidas basicamente por desejos individuais que se manifestam coletivamente em um determinado espaço físico e de tempo.
Todos os coletivos humanos (e talvez a maior parte dos não humanos) subsistem por graça das relações de confiança, que fortalecem permanentemente o sentido de que a grande maioria dos membros do grupo têm objetivos comuns e comunicam-se por símbolos (linguagem) aceita e compreendida por uma expressiva maioria. Mas, vez por outra, a história nos ensina, as sociedades chegam a um certo nível de evolução onde um dado conjunto de sofrimentos psíquicos representados por sensações de insegurança, desconfiança, incompletude, podendo evoluir para ideações paranóides, passam a afetar um número progressivo de indivíduos até a formação de uma massa crítica, que funciona como caixa de ressonância e reverberação, a ponto de causar uma verdadeira convulsão social, que dependendo de sua extensão, pode inflingir danos consideráveis a um dado agrupamento.
O Bolsonarismo emerge na sociedade brasileira como uma verdadeira droga capaz de produzir alívio temporário de diversos sofrimentos psíquicos para seus autores, que pelas mais variadas razões não desfrutam de uma conexão confortável com a sociedade. Sua fórmula segue princípios gerais sempre presentes no fenômeno político descrito como fascismo, através de simplificações, personalizações (que exploram os mitos mais regressivos), negações, exclusões, e principalmente, a destruição dos círculos de confiança coletivos para que possa se impor o autoritarismo e uma dada visão de mundo.
Não seria exagero dizer que o bolsonarismo funciona como remédio para seus praticantes assim como certas drogas “ilícitas” o fazem. Já é bem conhecido pela prática psiquiátrica que os dependentes químicos são em sua maioria pessoas que encontraram substâncias químicas antes do psicólogo, do psicanalista ou do médico. Como já vimos acima, ideias em ressonância podem expandir e suprimir consciências, sejam agradáveis ou não. As práticas místicas e religiosas, ainda quando desprovidas de estímulos químicos tradicionais de certas culturas, produzem algum alívio e bem-estar.
Também não seria exagero afirmar pelo que conhecemos sobre os bolsonaristas praticantes, que o bolsonarismo vai além da figura patética de um ignorante e brutal frustrado crônico. Nos últimos anos pudemos observar sem dificuldades a impermeabilidade e a estanquicidade do pensamento desses grupos e de uma extraordinária uniformidade de seus formatos de pensamento, que se fossem traduzidos para um programa executável em computadores não requeresse talvez mais que meia página de código.
Mas, como também já pudemos observar, o bolsonarismo tem um potencial destrutivo para a nossa sociedade talvez inferior apenas ao álcool, funcionalmente e epidemiologicamente enquanto efeito tóxico, indutor de dependência, de violência, destruição e morte, e daí, a sua devida classificação como tóxico, se enxergarmos a sociedade como um organismo vivo em suas relações intrínsecas e extrínsecas.
É claro que sociedades doentes, da mesma forma que indivíduos doentes, são propensos a procurar e eventualmente encontrar soluções rápidas e simples para os seus sofrimentos. O bolsonarismo representa assim, na minha visão, a propagação de uma grande onda de ideias capazes de aliviar sofrimentos de indivíduos dispersos na sociedade e que com grande auxílio da tecnologia e sua rapidez de comunicação despertou com grande velocidade os desejos mais regressivos e primários dessas pessoas, que ora nos ameaçam e aprofundam nossas doenças crônicas enquanto sociedade. E até a chegada de algum “remédio” ou “tratamento”, funcionará como um verdadeiro “crack”. Quem já tratou um dependente de crack sabe do que falo.