Uma das características marcantes do fascismo e suas recorrências é a uniformidade da estrutura de pensamento de seus líderes e praticantes, marcadamente infiltrada pelo pensamento religioso que se sedimenta no formato de crenças, dogmas e pressupostos sofismáticos e inquestionáveis à luz da razão. Razão, aliás, nascida sim de uma ideologia refletida pelo iluminismo clássico, que no século XVIII ganha o ocidente com a meta de transformar governos absolutistas em democracias, e que, para tanto, tem a necessidade de propor uma nova visão de mundo baseada na liberdade de pensamento, de busca da verdade, do compartilhamento de conhecimento, e de métodos de estabelecimento de verdades desprovidas de personalismos e desejos primitivos, do reconhecimento da igualdade entre os seres e por metas de progresso visando a proteção de todos os cidadãos dos estados-nação.
É muito claro que a compreensão de um mundo de complexidades com vistas ao sacrifício dos desejos e visões pessoais e a formulação de objetivos e métodos que nem sempre (ou quase nunca) serão direcionados aos caprichos do indivíduo depende de um sistema de educação e formação de indivíduos que possa resumir em uma existência – ou melhor, em um período de uma existência – todo o complexo conjunto de acontecimentos transcontinentais que precederam e fomentaram o movimento iluminista.
No cume do processo de transformação iluminista está a ciência, que através de dois ou mais séculos veio conquistando lentamente a confiança de partes da sociedade como fonte de verdades “democráticas”, ou seja, verdades “testáveis” e verificáveis por qualquer um que possa reproduzir um dado experimento nas mesmas condições e assim obter os mesmos resultados.
Como nada é perfeito, as sociedades pós-iluministas cresceram e multiplicaram-se muitas vezes com heranças culturais e físicas dos regimes anteriores. Muitas delas, mormente no oriente médio e oriente sequer fizeram uma transição entre o tribalismo e algo parecido com o medievalismo, e assim, jamais enfrentaram estas questões em um processo de formação de sociedades complexas e eventualmente transnacionais, onde a noção e existência de um estado gestor da nação seria o eixo desse desenvolvimento e diversificação dessas sociedades. Não surpreende, portanto, que essas sociedades hoje em choque cultural com os estados pós-iluministas sejam tomadas por práticas e líderes religiosas vistas pelo ocidente como radicais e fanáticas, mas que curiosamente têm, nos estados-nação ocidentais, visto o renascimento dessa estrutura de pensamento e poder ressurgindo no âmago da sociedade. No caso particular do Brasil, a tomada do poder pelo pensamento religioso é um grave sintoma da desorganização da sociedade obtida pela contínua quebra dos laços de confiança que deveriam nos unir. Esta quebra, por sua vez, alimentada pela contínua frustração gerada pelas desigualdades crescentes em ritmo alucinado e que têm como trágica consequência o progressivo desgaste e desorganização dos sistemas de educação, refletidos em números vergonhosos.
Fechando macabramente esse ciclo, o número de pessoas incapazes de compreender e de se engajar em uma sociedade complexa, verdadeiramente livre, e psicologicamente capaz de converter um certo número de frustrações em modos de ação articulada capaz de induzir transformações sociais progressivamente diminui, e em contrapartida, aumenta o número das que, pelas vulnerabilidades psicossociais e culturais, formam a massa crítica necessária para que as tentações simplificadoras e salvacionistas do fascismo ganhem força, o que tragicamente, e frequentemente, é alimentado pelas grandes mídias e hoje ainda alavancadas pelas redes sociais.
Por este olhar, fica muito claro que a desigualdade é um pathos em si mesmo, no sentido de que a se julgar pelos acontecimentos mundiais das últimas décadas, verifica-se que é uma condição que cria um círculo vicioso que só piora a condição em si mesma, gerando mais concentração de poder político, econômico, e poder de fato.
Felizmente, e espero que não temporariamente, no caso do Brasil a opinião pública revelada nas pesquisas recentemente publicadas vem apresentando forte reação no sentido de rejeitar o sistema político ora no poder, e valoriza um sistema que previamente trabalhou no sentido contrário do atual, mas ainda assim, mostra fragilidades na habilidade de “ligar os pontos” dessa complexa teia de acontecimentos, poderes, mídia e pessoas, e assim elaborar um projeto político que nos vacine de uma vez por todas contra o fascismo e suas mil caras, e que reabilite o ciclo virtuoso de fortalecimento de laços sociais e de confiança.
Do contrário, teremos o ciclo da eterna danação.