A mente humana (e talvez não só a humana) pode funcionar como uma verdadeira caixa de ressonância, onde qualquer “onda” pode provocar um colapso. Talvez o exemplo mais claro e simples é a convulsão, onde uma sequência de disparos anormais de pequenos agrupamentos neuronais se propagam, sob o ponto de vista de uma abordagem da mecânica ondulatória, como um processo que reverbera em vizinhanças cada vez mais largas a ponto de que as ondas de impulsos neuronais (referidos grosseiramente como “ondas elétricas”) ganham sucessiva e rapidamente os territórios cerebrais a ponto de suprimir a consciência e provocar uma certa ressonância no corpo inteiro da vítma, levando-a à perda de consciência e aos movimentos tônico-clônicos conhecidos. Como tudo em função neuronal se traduz em “ondas” de despolarização/repolarização que se propagam por circuitos que tem regulagens químicas ponto a ponto (nas sinapses, que são pontos de comunicação entre os neurônios), a função de determinados circuitos pode ser modulada por agentes químicos. Assim, conseguimos com medicamentos modular certas funções neuronais, para por exemplo, “quebrar” as vias de ressonância ou reverberação, impedindo assim, que algo se propague para todo o cérebro, e eventualmente, também estabilizando a função de grupos neuronais “rebeldes”, que geralmente assim o são por pequenas mutações genéticas que afetam a função de bombas e canais de íons (de sódio, potássio, cálcio) nas respectivas membranas celulares.
Substâncias químicas outras podem também induzir alterações de função neuronal/cerebral produzindo sensações de prazer e recompensa e também alterações de consciência (muitas vezes descritas como “expansões”) e que produzem na pessoa compreensões da realidade que normalmente não são atingidas no estado “natural” ou na ausência dessas substâncias. Ocorre que o uso repetitivo de certas substâncias pode (como o álcool, opiáceos, e mesmo certos medicamentos) induzir fenômenos de tolerância e dependência, de modo que as doses necessárias para a obtenção do efeito aumentam progressivamente e estabelece-se um círculo vicioso que causa intenso mal-estar no estado de abstinência da substância, que pode ter consequências fatais.
O conhecimento atual das funções da mente (entendendo “mente” como o “produto” da função cerebral) permite-nos afirmar com segurança que o caminho reverso existe. Ou seja, se usarmos como “entrada” no cérebro apenas certos conjuntos de idéias ou vivências repetitivas e de forma consistente, o sistema progressivamente incorpora modos de função que se refletem fisicamente em modulações químicas e formação de circuitos funcionais que passam a ser uma representação física de uma experiência meramente abstrata. Assim podemos compreender a razão de certos comportamentos que as pessoas tem, e com grande frequência os que vivem sofrimentos mentais ou psíquicos, de se desfazerem de idéias e comportamentos “ressonantes” ou repetitivos em suas vidas, nos mais variados graus de complexidade e peculiaridades individuais. Se por um lado a teoria psicanalítica nos fornece bons substratos para o entendimento da gênese de certas emoções e comportamentos, a ação química sobre o cérebro, modulando a função de certos circuitos pode aliviar muitos sofrimentos e abrir o caminho para o estabelecimento de novos padrões e diminuição da dor psíquica.
Saindo do mundo do indivíduo podemos teorizar e verificar, com as devidas metodologias ao alcance da psicologia das massas e da sociologia, que as ideias circulam na sociedade de forma semelhante à função neuronal em um cérebro. Talvez o exemplo mais clássico seja a presença das “modas”, que são hábitos e práticas que muitas vezes ganham a sociedade de forma verdadeiramente epidêmica e se propagam como uma onda convulsiva, seja por uma simples expressão de linguagem até uma forma de vestimenta ou hábito alimentar, formando um conjunto de mudanças de comportamento coletivo movidas basicamente por desejos individuais que se manifestam coletivamente em um determinado espaço físico e de tempo.
Todos os coletivos humanos (e talvez a maior parte dos não humanos) subsistem por graça das relações de confiança, que fortalecem permanentemente o sentido de que a grande maioria dos membros do grupo têm objetivos comuns e comunicam-se por símbolos (linguagem) aceita e compreendida por uma expressiva maioria. Mas, vez por outra, a história nos ensina, as sociedades chegam a um certo nível de evolução onde um dado conjunto de sofrimentos psíquicos representados por sensações de insegurança, desconfiança, incompletude, podendo evoluir para ideações paranóides, passam a afetar um número progressivo de indivíduos até a formação de uma massa crítica, que funciona como caixa de ressonância e reverberação, a ponto de causar uma verdadeira convulsão social, que dependendo de sua extensão, pode inflingir danos consideráveis a um dado agrupamento.
O Bolsonarismo emerge na sociedade brasileira como uma verdadeira droga capaz de produzir alívio temporário de diversos sofrimentos psíquicos para seus autores, que pelas mais variadas razões não desfrutam de uma conexão confortável com a sociedade. Sua fórmula segue princípios gerais sempre presentes no fenômeno político descrito como fascismo, através de simplificações, personalizações (que exploram os mitos mais regressivos), negações, exclusões, e principalmente, a destruição dos círculos de confiança coletivos para que possa se impor o autoritarismo e uma dada visão de mundo.
Não seria exagero dizer que o bolsonarismo funciona como remédio para seus praticantes assim como certas drogas “ilícitas” o fazem. Já é bem conhecido pela prática psiquiátrica que os dependentes químicos são em sua maioria pessoas que encontraram substâncias químicas antes do psicólogo, do psicanalista ou do médico. Como já vimos acima, ideias em ressonância podem expandir e suprimir consciências, sejam agradáveis ou não. As práticas místicas e religiosas, ainda quando desprovidas de estímulos químicos tradicionais de certas culturas, produzem algum alívio e bem-estar.
Também não seria exagero afirmar pelo que conhecemos sobre os bolsonaristas praticantes, que o bolsonarismo vai além da figura patética de um ignorante e brutal frustrado crônico. Nos últimos anos pudemos observar sem dificuldades a impermeabilidade e a estanquicidade do pensamento desses grupos e de uma extraordinária uniformidade de seus formatos de pensamento, que se fossem traduzidos para um programa executável em computadores não requeresse talvez mais que meia página de código.
Mas, como também já pudemos observar, o bolsonarismo tem um potencial destrutivo para a nossa sociedade talvez inferior apenas ao álcool, funcionalmente e epidemiologicamente enquanto efeito tóxico, indutor de dependência, de violência, destruição e morte, e daí, a sua devida classificação como tóxico, se enxergarmos a sociedade como um organismo vivo em suas relações intrínsecas e extrínsecas.
É claro que sociedades doentes, da mesma forma que indivíduos doentes, são propensos a procurar e eventualmente encontrar soluções rápidas e simples para os seus sofrimentos. O bolsonarismo representa assim, na minha visão, a propagação de uma grande onda de ideias capazes de aliviar sofrimentos de indivíduos dispersos na sociedade e que com grande auxílio da tecnologia e sua rapidez de comunicação despertou com grande velocidade os desejos mais regressivos e primários dessas pessoas, que ora nos ameaçam e aprofundam nossas doenças crônicas enquanto sociedade. E até a chegada de algum “remédio” ou “tratamento”, funcionará como um verdadeiro “crack”. Quem já tratou um dependente de crack sabe do que falo.