Ficamos sem entender nada e, meio envergonhados, os dois se levantaram para vir falar com a gente afastados da mesa.

“Pois é, meu irmão, os veados convidaram a gente para ir lá e falaram que vão pagar um jantar para nós quatro.”

Já eram dez da noite. Cansado da praia e da viagem, doido para dormir, falei: “Já comemos um hambúrguer, tamos na boa.” Cocei a cabeça e disse: “Aê, não dá para a gente dormir no quarto de empregada e deixar a chave com o porteiro amanhã de manhã?”

O Fernando respondeu: “Meu amigo, não me leve a mal, mas a gente mal conhece vocês, eu tô na responsabilidade do apartamento do meu tio e não dá para deixar vocês lá sozinhos.”

“Porra, mas a gente não está numa de comer veado.” O Pedro era menos diplomata que eu.

O Luiz já tinha entendido o problema. “Já falei com eles, vocês não precisam fazer nada, só precisam ir no restaurante e serem bem-educados. Depois a gente vai para o apartamento deles, vocês fazem uma salinha, vão dormir na sala de estar e a gente faz o resto. Já falei com eles. Pode ficar tranquilo, é só isso.”

O Fernando emendou: “Mesmo que vocês já tenham comido uns hambúrgueres, eles vão levar a gente para um restaurante de moqueca bonzão. Cês vão gostar.”

Me segurando para não fazer uma piada com comida, não acreditando que a gente estivesse naquela situação, me lembrei. “E amanhã? A gente vai ter que pegar as nossas coisas para pegar a estrada.”

O Fernando olhou para o Luiz também esperando uma resposta, dava para ver que ele estava menos entusiasmado com a coisa toda.

O Luiz respondeu: “Deixa comigo, vou convencer eles a passar em casa antes da gente ir para o reastaurante.” Ele deu um sorriso maroto e emendou. “Ainda por cima vou conseguir que te levem para a estrada amanhã, quer ver?”

Apesar de não gostar daquilo, naquela altura do campeonato não havia muita escolha. A barriga também estava interessada em experimentar a famosa moqueca capixaba. Saímos do passeio, nos apertamos dentro do carro das “amigas”. O Luiz explicou o problema e fomos todos ao apartamento para pegar nossas coisas. Quando viram o violão, “uma” virou para “outra” e disse.

“Nossa, que meninos talentosos, olha esse violão!”

“Ai, eu adoro cantar! Vocês vão fazer uma serenata pra gente?”

Respondi com um sorriso amarelo: “De repente… se rolar um clima.”

Esperando uma festa quentíssima mais tarde, a dupla gay levou todo mundo para o tal restaurante de moqueca. Bebemos vinho e a comida estava deliciosa, tudo por conta deles e em troca fomos educados e rimos das suas piadas. A “loura” era de fato muito engraçada.

“Tudo o que eu queria ser era o Papa. Aquela bicha é chiquérrima, não acham!? Eu ia me vestir toda de seda e ficar sentada naquele trono podre de chique mandando as bichas pobres limpar meus quadros.”

Após a sobremesa, o aperitivo e a conta, o próximo passo era ir para o ninho de amor. A “loura” morava num apartamento de dois quartos com varanda, mas sem vista. “Ela” era pintora e espírita e as paredes eram cheias de quadros da cara de um Jesus Cristo em cores gritantes e rodeado de pétalas.

“Essa é a entidade que me vem em sonhos para me proteger. Aposto que vocês não acreditam nessas coisas.”

A “morena”, que era mais recatada, mas que ria de tudo que a “loura” dizia, falou com orgulho. “Ela é muito talentosa, pintou todos estes quadros, não são lindos?”

O Luiz concordou: “Nossa, são lindos!”

A “loura” respondeu:“Obrigada, lindo, mas essa neguinha está sendo falsa, só gosta de quadros como aquele. ” Ele apontou para uma foto artística em preto e branco de um cara bem-dotado numa pose erótica. Daí ela se virou para mim.

“E você? Não vai tocar pra gente? Eu adoro bolero e música antiga. Aliás pode me chamar de Maysa.”

O Pedro e eu não aguentamos e caímos na gargalhada, me recompus e respondi: “Sabe o que é? A viola está desafinada.”

“Então afina ela, menino!”

Todo mundo, até o Pedro me pressionou.

“Beleza então.” Tirei a viola, que já estava afinada. “E então, Maysa, conhece essa? A noite do meu bem?”

A “Maysa” só faltou me agarrar. Ela até que cantava bem. Toquei essa e mais duas e depois guardei o violão.

“Muito bem carioca! A gente adorou!” O Luiz estava a ponto de soltar a franga também.

Dava para ver que ele ia ficar com a “Maysa” e o Fernando com a “morena”. O papo foi ficando tenso e depois de uma sessão de insinuações e evasivas, chegou a hora do vamos ver. Conforme combinado, cada um dos mergulhadores foi para um quarto com suas respectivas, enquanto a gente foi para a sala de estar para tentar dormir um pouco.

As luzes se apagaram, os casais fecharam suas portas e nós ficamos na sala, deitados em camas improvisadas e rindo feito dois idiotas.

“O Luiz deve estar perguntando para o barbudinho; você pinta como eu pinto?”

“Barbudinho! Hahahaha! ”

“Cara, ri mais baixo senão os caras não vão conseguir se concentrar.” Estava inspirado para falar besteira. “Tu reparou que o moreno é a cara do Little Richard. Brincadeira! O Fernando vai mandar ele abaixar para amarrar os sapatos e ficar só no wop bop a loo bop a lop ba!”

“Hahahahaha!”

Cerca de uma hora depois, uma das portas se abriu e fingimos estar dormindo. O Fernando estava para sair do apartamento e ouvimos ele dizer: “Desculpa, mas não estava inspirado essa noite.” Quase me levantei para perguntar se a gente podia ir junto, mas não deu tempo.

Depois que saiu, o apartamento ficou em silêncio, mas a porta do quarto permaneceu aberta e a luz acesa. Dava para sentir a energia inquieta do moreno.  Alguns minutos depois ouvimos passos vindo em nossa direção. Com meus olhos fechados, comecei a pensar comigo mesmo: “Xiii, vai dar merda!”

Aí ouvi o Pedro dizer: “Meu irmão, tira a mão daí porra!!!”

Após alguns segundos, o mesmo aconteceu comigo e dispensei o cara e a sua mão boba. Depois disso, o moreno baixinho saiu do apartamento batendo a porta e dizendo:

“Seus brochas mal-agradecidos, vocês deveriam estar dormindo na rua!”

No dia seguinte, o outro casal nos acordou num astral muito melhor. A “Maysa” estava felicíssima vestindo um robe de seda lilás já bastante maquiada. Agarrada no pescoço do Luiz, ela disse: “Bom dia, meninos”. Daí olhou com carinho para a cara do Luiz, ainda meio sem graça com a gente. “Esse bruto roubou minha virgindade ontem à noite, vocês acreditam?”

Sentamos para conversar em volta da mesa e acabamos descobrindo que a “morena” insatisfeita era o vizinho de cima. Ele era o dono do carro que a gente tinha andado e que possivelmente ia nos levar até a BR. Ficamos conversando, esperando que descesse para o café. Quando chegou, estava mal-humorada e, por vingança, disse:

“Olha, o carro está sem gasolina e tenho um monte de coisas para fazer hoje de manhã, não vai dar para ir até a estrada.”

A “Maysa” estava do nosso lado.

“Deixa de ser amarga, neguinha, hoje é um dia novo e você vai achar um lindinho tão gostoso como esse para você. E não seja mentirosa, enchi o tanque do teu carro ontem e o salão está fechado hoje.”

O outro tentou protestar, mas a nossa ”amiga” emendou:  “Somos duas moças de família e vamos fazer o que prometemos para esses cariocas, depois vamos dar uma volta com esse bofe.”

Tomamos café juntos e não demorou muito para o moreno melhorar seu humor. De barriga cheia, fomos os cinco até um posto de gasolina fora da cidade. Ainda meio atordoados por conta daquela primeira noite maluca, agradecemos e nos despedimos.

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