Samba Perdido – Capítulo 22

 Capítulo 22

” … dizer que o pior aconteceu,

Pode guardar as panelas

Que hoje o dinheiro não deu.”

Paulinho da Viola – Pode Guardar as Panelas

 

Os ônibus que partiam de Ipanema rumo ao centro cruzavam primeiro por Copacabana para depois sair da Zona Sul pelo Túnel Novo. Do outro lado, passavam pelo Shopping Rio Sul, pelo teatro do Canecão e pelo campo do Botafogo antes de virarem à esquerda em direção à praia de mesmo nome. De lá, beiravam a Baía de Guanabara seguindo em direção a um mundo de escritórios e de repartições públicas. No meu primeiro dia como estudante universitário me senti bem pegando o ônibus 511 que seguia a mesma rota, mas que depois do Túnel Novo pegava a direita para entrar na pacífica Praia Vermelha, terra do Iate Clube e dos quartéis mais ilustres do exército.

Enquanto o ônibus enfrentava o eterno congestionamento da Avenida Nossa Senhora de Copacabana, comecei a pensar sobre o ciclo que estava prestes a começar. Nas minhas divagacões, me dei conta de que não sabia o que esperar de um curso de Economia nem dos meus colegas. Fiquei curioso. Foi estranho saltar do ônibus em frente à Universidade Federal do Rio de Janeiro, a UFRJ, e entrar no campus. Já tinha passado por ali milhares de vezes mas nunca imaginei que um dia fosse estudar naquele lugar bonito. 

Ao cruzar o portão descobri um lugar tranquilo, com árvores bem cuidadas margeando ruazinhas sem trânsito separando construções bem preservadas do século passado. Originalmente, o prédio da faculdade tinha servido como um hospício, agora transferido para um prédio mais moderno dentro do campus, o famoso Pinel. Em pouco tempo estaria me deparando com enfermeiros correndo atrás de pacientes em fuga entre os carros estacionados e nos corredores da faculdade.

As salas eram maravilhosas, amplas e bem preservadas. Elas tinham sido o ninho da resistência estudantil à ditadura militar nos anos 60. A União Nacional do Estudantes (UNE) havia organizado muitos dos seus encontros cruciais em um dos patios internos daquela faculdade, num anfiteatro semiaberto, o Teatro de Arena. A maioria dos estudantes que haviam optado pela resistência armada tinham tomado suas decisões ali nos mesmos corredores e salas que estavam prestes a nos receber.

O legado político do prédio ainda estava vivo. Mesmo em 1981, ainda circulavam rumores de que alguns colegas eram policiais disfarçados – a carapuça servia, mas não dava para saber. O diretório central dos estudantes, o DCE, era agitado. Suas assembleias eram frequentadas por trotskistas, leninistas, maoístas e anarquistas, bem como membros dos partidos recém-formados, como o PT e o PDT, herdeiro do histórico PTB de Getúlio Vargas. Havia também gente ligada a movimentos mais antigos e barra pesada como o MR-8 e o Partido Comunista bem como aqueles militando pela ecologia, pelas nações indígenas e pela diversidade sexual.

O pau quebrava no centro acadêmico. Havia arranca-rabos sérios por quase tudo; como, por exemplo, qual deveria ser a postura do diretório dos estudantes perante a invasão soviética no Afeganistão? qual partido comunista representava de verdade as massas, o PCB ou o PCdoB? quem melhor expressava as aspirações do povo, Lenin, Trotsky, Mao, Bakunin ou Marx? Essas divergências teóricas insuportáveis faziam com que a experiência de se envolver em política estudantil parecesse com a de se pertencer ao clero. 

*

Longe das questões teóricas da faculdade, a situação política do país era assim: A utopia revolucionária dos Cubanos estava morta. Ninguém mais acreditava nela, nem a queria e seu pai rico, a União Soviética, estava falido e há muito tinha parado de investir em levantes populares. Seu envelhecido arqui-inimigo, o regime militar, estava em seu leito de morte. Apesar de tudo isso, depois de quase duas décadas de regime militar e com uma situação econômica em declínio, havia um descontentamento generalizado nas ruas e a sensação de que uma reviravolta estava por vir.

O objetivo das militâncias ainda era o de transformar ou mesmo substituir o capitalismo. O problema era que o arcabouço teórico da esquerda, que havia inspirado múltiplas gerações antes e depois das duas guerras mundiais, já não fornecia respostas suficientes para a situação atual. O sistema econômico e tecnológico tinha se tornado muito mais complexo do que quando aquelas obras tinham sido escritas. As antigas teorias não explicavam o fracasso dos regimes ditos comunistas, tanto a nível de apoio popular quanto a nível de prover um nível de vida satisfatório. Em contraste, havia o inexplicado sucesso estrondoso das democracias liberais no pós-guerra que, além de fornecer liberdade de expressão, trouxe melhorias substanciais para todas as classes sociais. Ademais, havia várias questões que passavam ao largo do tema central da esquerda: a luta de classes, como o equilíbrio ambiental, as relações humanas, a saúde física e mental da população, entre outras. 

Essa paralisação teórica continuou afetando as forças progressistas até o dia em que estas palavras foram escritas.

*

Embora impopular e praticamente inexistente no Brasil na época – principalmente na faculdade de Economia da UFRJ – a ideologia de direita estava se apresentando como uma alternativa ideológica inovadora. Seus novos defensores queriam levar o mundo a um estágio de desenvolvimento radicalmente avançado, parecido com o que se via em ficções científicas. Para conseguir isso acreditavam que se deveria deixar o terreno livre para o mercado; uma máquina irretocável, impessoal, apolítica e por isso extremamente dinâmica.

A frase que melhor definia sua visão era a da Margaret Thatcher: “a sociedade não existe.” Para eles, o egoísmo era a mola mestre do mundo. Se esquecessemos que o ser humano é um animal social e nos concentrassemos no “necessário” – sobreviver e ficar rico – estariamos livres para levar nossos talentos até o limite, sem impedimentos. Uma lei da selva benévola cuidaria para que cada um recebesse a porção merecida dependendo da sua capacidade e do seu esforço. Apostando na concorrência e na vitória da competência, todos sairiam ganhando já que todos dariam o melhor de si e obteríamos os melhores resultados possíveis. De quebra, nos veríamos livres da ineficácia dos Estados.

É claro que nessa corrida a maioria correria descalça enquanto uma minoria correria de Ferrari. As grandes corporações sairiam na frente e, sem ninguém para confrontá-las nem se preocupar com o bem comum, teriam liberdade completa. Imporiam os salários que entendessem, poluiriam o que quisessem, desalojariam, demitiriam e abusariam quem bem entendessem. Não haveria escolas públicas, hospitais públicos, políticas de desenvolvimento, ou qualquer outro esforço para o interesse da população em geral, apenas o mercado e a geração irrefreável de lucro. 

Em 1973, essa escola tinha tomado o poder na ditadura do Pinochet, no Chile, e nos anos 80 estava se espalhando como fogueira no dito mundo civilizado. Seus principais expoentes estavam sendo homenageados por governos e ganhando prêmios Nobel. Choques neoliberais estavam sendo introduzidos no Reino Unido e nos Estados Unidos enquanto regimes comunistas na Europa do Leste, o bloco soviético e o regime chinês se estavam sendo asfixiados econômicamente. Uma reviravolta parecida estava acontecendo no mundo acadêmico onde em breve as palavras socialismo, e principalmente comunismo, se tornariam como sinônimos de lepra, completamente rejeitados em faculdades “respeitáveis”.

Alem das grandes corporações e do mercado financeiro, agraciados com grandes reducões de impostos para se tornarem mais competitivos, a desregulação econômica agradaria a muitos nas classes médias. Com privatizações pipocando a torto e a direita fazendo as bolsas dispararem, muitos enriqueceram com isso. No Reino Unido, por exemplo, o governo vendeu conjuntos habitacionais e muitos dos antigos inquilinos conseguiram se tornar proprietários pela primeira vez em gerações.

Mesmo assim, pelos quatro cantos do planeta, a maioria da população foi sugada para dentro da pobreza. Países periféricos interessados em manter suas “vantagens comparativas” passaram a oferecer mão de obra com salários de fome como seu principal atrativo econômico às grandes corporações. Essa política criaria bolsas gigantescas de gente que não conseguia manter o seu sustento apesar de trabalhar o mais duro que podiam. Todos na ilusão de um dia ficarem ricos. Grande parte da população nos paises ocidentais veria seus empregos irem para recantos com salários mais “competitivos” no outro lado do mundo. Por outro lado, a diferença entre o que os executivos ganhavam e o que os escalões mais baixos ganhavam saltaria de 12 para 700 vezes. Com balanços positivos nas grandes corporações e suas ações subindo nas bolsas mas com o poder de compra muito reduzido devido aos arrochos salariais as economias neoliberais se acabariam se tornando menos competitivas que as economias mais planejadas como a russa, a chinesa e mesmo a Alemã. 

Conforme a verdade foi demonstrando que o dinamismo prometido pelos profetas do liberalismo era inexistente, a manipulação e até a fabricaçāo da realidade se tornariam cruciais. O principal inimigo do sistema se tornaria o pensamento crítico, nossos sonhos, nossa vontade de sermos livres da opressão do mercado, o índio nu na floresta que não sabia o que era dinheiro, a solidariedade a quem não trazia vantagem nenhuma e tudo mais o que não endeusasse o lucro privado. 

Para eles quem tinha que mudar éramos nós, não o sistema. Para nós, não havia nada de errado com ninguém, o que tinha que mudar era justamente o sistema. O conceito mais pernicioso do agora discurso oficial era a mentira de que nada poderia ser feito diferente. Tal como os indígenas brasileiros ensinados pelas missões evangelizadoras que seu mundo era errado e que para salvar suas almas precisavam aceitar o seu fim em prol do cristianismo e do mercantilismo por trás dele, os defensores do novo pensamento diziam que população tinha que se adaptar a Moloch ou desaparecer.

*

A Faculdade de Economia e Administração da UFRJ – a FEA – não era de esquerda própriamente dita. Sua linha era desenvolvimentista com conexão direta à CEPAL, Centro de Estudos Para a América Latina, erguida pelos governos democráticos no pós-guerra para achar soluções para o continente. Nossos professores mais influentes eram Keynesianos e defendiam uma aliança entre governo e capital privado para desenvolver o país. Os Estados Unidos tinham escolhido esse caminho nos anos 1930 para sair da recessão econômica através do New Deal implantado pelo presidente Roosevelt e era a que os aliados também adotaram para reerguer a Europa no pós-guerra com o plano Marshall. Para nossos professores o empresariado brasileiro era descapitalizado e despreparado demais para levar adiante um projeto de desenvolvimento e só um empurrão forte do Estado poderia, no jargão dos economistas, alavancar a economia brasileira.

Apesar de nunca ter apoiado a Revolução Cubana, esta escola se tornou um dos principais alvos da sua contrapartida criada pelo Departamento de Estado Norte Americano, a Escola das Américas. Seguidora fiel da Escola de Chicago e financiada por grupos interessados em assegurar seu predominio no continente, ela formaria vários ditadores e diversos personagens estadounidenses que teriam peso no futuro do continente. 

*

Os militantes de esquerda viam nossa turma como burgueses alienados. Por outro lado, os estudantes sem interesse em política viam quem se interessava em militar por avanços progressistas como playboys perdidos tirando uma onda infantil de revolucionários. Esta turma, a grande maioria mesmo naquela época, focava em se tornar histórias de sucesso depois que se formassem. Sem dúvidas, era uma postura lógica no contexto de uma faculdade de primeira linha. Porém, eu não estava no momento certo, nem na faculdade certa, para adotá-la. A verdade é que assim que entrei para a aula introdutória e vi meus novos colegas e professores tive a sensação clara de que aquilo era uma contingência e não o início de uma carreira.

O curso de economia da UFRJ visava preparar quadros para agências de desenvolvimento do governo e para companhias estatais: BNDES, IPEA, Eletrobrás, Petrobrás entre outras. Depois que as aulas começaram, descobri que muitos professores eram fascinantes e inteligentíssimos, alguns sobreviventes dos anos de chumbo da ditadura. Os professores mais engajados nos viam como uma nova espécie de estudante: um dos primeiros contingentes livres das amarras dos militares. Os que haviam voltado recentemente do exílio, estavam entusiasmados por poder lecionar livremente em seu próprio país.

O lugar e o ambiente eram estimulantes e, por isso, resolvi ignorar os pensamentos negativos iniciais e dar uma chance ao curso. Não dava para comparar aquelas aulas com o que víamos nas fábricas de passar no vestibular. Quem sabe não tivesse tomado a decisão certa e viesse a gostar do curso?

*

Tudo ia bem até que contraí uma hepatite em Mauá que me forçou a passar um mês e meio de cama. Aquela pausa marcaria o começo de uma reviravolta pessoal e, estranhamente, o início de uma reviravolta muito maior no país. A liberdade política estava garantida, as eleições diretas para presidente eram uma questão de tempo, porém uma era de inferno econômico estava despertando.

Era um acontecimento global; ao redor do planeta fundamentalistas religiosos cristãos, judeus e muçulmanos estavam desbancando a esquerda em termos de atrair a opinião pública. A AIDS estava se espalhando e Ronald Reagan e Margaret Thatcher estavam consolidando suas políticas conservadoras. Um ciclo neoliberal e careta estava iniciando um reinado de pelo menos quatro décadas.

Confinado à cama, me sentindo fraco, comendo e bebendo em pratos e copos separados para que minha infecção não se espalhasse em casa, presenciei o Fundo Monetário Internacional começar seu ataque ao Brasil. Representando as economias centrais ele decretou que dívidas contraidas em empréstimos concedidos a ditadores e antigos aliados – empréstimos realisados com fins políticos e, por isso, com facilidades especiais – eram agora uma ameaça à estabilidade mundial. As taxas de juros, agora muito mais altas, fizeram com que a dívida externa brasileira chegasse a níveis inimagináveis. As exigências do FMI e as condições para seu refinanciamento sufocaram não só a economia brasileira, mas também a economia de todos os outros países em situações parecidas.

A gestão de dívidas sempre foi uma das principais formas de subjugar. No Brasil, como de costume, a corda arrebentou para o lado dos mais fracos. O governo aumentou impostos e subiu a taxa de juros que, por sua vez, dificultou empréstimos e fez com que empresas fechassem ou diminuíssem os seus quadros de funcionários. Por outro lado, obrigado pelo FMI a cortar gastos, o governo também passou a demitir gente e a fazer menos contratos com companhias privadas. Quando essas fechavam as portas, engrossavam o exército de desempregados sem nenhuma forma de assistência social.

Devido à incompetência ou talvez à inexperiência com condições tão adversas, o próximo passo das autoridades foi apelar para a emissão de moeda para honrar suas obrigações internas e externas, um caminho certo para a inflação. A inflação, que em pouco tempo se tornou galopante, diminuia ainda mais o poder de compra da população. A crise foi se alastrando como uma dor de dentes piorando a cada dia.

Com uma média mensal entre vinte a trinta por cento durante os 15 anos seguintes, a inflação no Brasil chegou ao acumulado de 20.759.903.275.651 por cento, um recorde mundial absoluto. Para se ter uma ideia do tanto que a situação ficou feia, caso meu pai não tivesse resguardado seu patrimônio, pelo mesmo preço que havia comprado nosso confortável apartamento em Ipanema no boom da bolsa nos anos 1970, alguns anos depois só poderia ter comprado um cafezinho num boteco de esquina.

No entanto, na FEA, professores e alunos viam essa turbulência de uma maneira diferente. Acontece que o seu departamento de Economia estava na linha de frente da oposição às políticas governamentais muito antes da crise começar. Vários de nossos professores haviam dado o alerta sobre os perigos à frente. Muitos brasileiros acreditavam que aqueles acadêmicos poderiam ser a salvação para o país naquela bagunça. Por isso, eles se tornaram figuras públicas, aparecendo direto em entrevistas e debates na televisão, publicando livros e escrevendo artigos de página inteira para os principais jornais do país.

 

Samba Perdido – Capítulo 20 – Parte 01

Capítulo 20

 

“E vou cantar entre os cristais azuis do tempo e perceber

A terra longe, longe a se perder.”

Som Imaginário

 

O vestibular, a prova que definiria nosso futuro e o nosso valor para a sociedade, estava esperando na esquina. Esse rito de passagem preocupava até os mais inveterados membros da “esquadrilha da fumaça” do Colégio Andrews. Apesar do nervosismo na escola e em casa e além da obrigação de justificar o dinheiro gasto na nossa educação, nos perguntávamos onde iríamos parar depois que passássemos por aquele portal se passássemos. A sensação era que Molloch, o deus monstruoso do aparato militar industrial capitalista, retratado por Allen Ginsberg no seu genial poema Howl, estaria nos esperando do outro lado, vampiresco e impessoal, escravizador e envenenador de tudo e a todos com seu piche de enquadramento e resignação. 

Era como estivéssemos enjaulados aguardando ser soltos para um futuro de animais de elite adestrados, sangue novo num ciclo de oferecer força vital em troca de mercadorias desnecessárias. Como engolir a máxima arbeit macht frei – o trabalho constrói a liberdade – escrita nos portões de Auschwitz e enraizada no pensamento ocidental, martelada em nossas cabeças por professores, mídia, filmes e, acima de tudo, por nossos pais? 

Embora não fossem, de forma alguma, nazistas, nossos educadores acreditavam que a única maneira de escapar à injustiça inerente ao mundo era trabalhar duro para se tornar uma peça bem remunerada de Molloch. Como nas histórias de vampiros, sabíamos que no momento em que nos tornássemos “um deles”, não haveria volta e reproduziríamos o servilismo de dezenas de gerações passadas. Por mais que nos esforçássemos, o dinheiro ganho jamais compraria nem liberdade nem felicidade. Os únicos que teriam direito a isso seriam os que nem precisariam se esforçar ou se preocupar já que fortunas familiares lhes garantiriam blindagem.

Sem dúvida, num país onde o acesso às universidades era um privilégio de poucos, essas opiniões eram resultado de uma mistura de educação sofisticada com tempo disponível para ler e refletir. Contudo, esta situação confortável propiciava uma distância necessária para discernir claramente a máquina que movia o mundo. Ela estava ali nos esperando, sólida e impassível e mostraria suas garras assim que ingressássemos no mercado de trabalho. Embora o vestibular não fosse a parada final, era o portal para um posto avançado. A vida depois dali viraria séria, em outras palavras estaríamos seriamente ferrados. Isso se passássemos, se não passássemos, a humilhação da ineptitude para servir Molloch seria insuportável.

A versão oficial sobre o que estava do outro lado do portal, era a de um mundo desfrutando a vitória do bem sobre o mal, onde as forças democráticas e socialistas haviam esmagado o nazismo. Nele, a humanidade estava a caminho de um lugar melhor, livre, repleto de avanços tecnológicos que garantiriam prosperidade a todos, a despeito da indevida oposição do comunismo totalitário.

O que tentavam ocultar desse mundo era a locomotiva que o guiava; as grandes corporações. Estas eram as provedoras dos bens e dos serviços que o caracterizavam. Para que a máquina funcionasse a seu jeito, demandavam governos que lhes passassem um cheque em banco. Governos voltados para o bem-estar de todos não interessavam.

A despeito do sucesso econômico durante a reconstrução dos países arrasados pela guerra, teóricos liberais, os sacerdotes de Molloch, se rebelaram. Estes diziam que o estado estava se metendo demais na economia e impedindo que a locomotiva funcionasse direito. Eles se esforçavam – e ainda se esforçam – para provar que os interesses das grandes fortunas e os das populações eram a mesma coisa. Sua lógica de mão única afirmava que sucesso do capital privado era fundamental para o bem-estar da população. O inverso não era verdade; o bem estar “em excesso” da enorme maioria seria nocivo ao bom funcionamento da economia. Baseado nessa premissa, quando havia descontentamento ou quando grandes interesses eram contrariados, a ordem estabelecida, detentora exclusiva do direito à violência, recorria à força. Vista dessa ótica, a democracia liberal era uma ilusão onde todos achavam que tinham escolhido viver em submissão.

Talvez por aprenderem de primeira mão sobre a brutalidade que seus pais e avôs sofreram em duas guerras mundiais na luta pela liberdade e pelos ideais democráticos, talvez por presenciarem diretamente as escolhas decepcionantes feitas pelas lideranças vencedoras na reconstrução de seus países, a geração que se seguiu, a dos babyboomers, viu além da versão oficial. Contando com mais gente cursando ou formada em universidades do que qualquer outra geração anterior, ela carregou o bastão da luta pela democracia verdadeira. 

A luta agora era para prevenir que o triunfo dos aliados levasse no longo prazo a um servilismo sem questionamento, quase voluntário. Apesar do crescimento econômico forte durante a reconstrução, ficou claro onde os frutos mais suculentos iriam parar quando aquele ciclo terminasse: no andar de cima. No fundo, nada tinha mudado. Era preciso desmascarar a farsa e sacudir as estruturas para que um mundo realmente melhor viesse depois da carnificina das guerras. Para essa geração ficou claro que planeta inteiro sofria dos mesmos problemas. O mal ia muito além de ideologias, países ou raças pintados como adversários. O mal estava na maneira como a estrutura tinha sido montada e era gerida e nas manipulações que faziam com que a humanidade aceitasse, sem nenhum questionamento ou resistência, que uma ínfima minoria se impusesse.

Este questionamento se espalhou como fogo pela juventude educada. As possibilidades que eles vislumbravam nas suas preferências para reconstruir o mundo poderiam ser a rota de saída de um legado de guerras, ditaduras, perseguições, fome, genocídio e outras coisas horríveis deixado por múltiplas gerações. 

Na América Latina e em outros países do Terceiro Mundo a situação no pós guerra era mais complicada ainda. O discurso de que o triunfo dos aliados significou uma vitória contra a injustiça e a tirania, encorajou a luta contra o imperialismo, e revoltas populares como a Revolução Cubana. No entanto, ao sul do Equador, a contradição entre o discurso e a prática dos aliados criou vários absurdos onde as elites apoiavam ditaduras em nome do chamado “mundo livre”. 

Naquela nossa mistura de consciência com inocência acreditávamos que ainda era possível pegar a saída para o mundo descrito por John Lennon em sua música Imagine, onde todos viveriam em função do presente, sem fronteiras e sem diferenças. A saída apontando para o vestibular e o que seguiria depois era o portal para um pesadelo.

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Solução felina

Invejo minhas duas gatas, Ruby e Getty. Elas não sabem, nem precisam saber, o que é aquecimento global ou hecatombe ecológica, quem são o Trump e o Bolsonaro, não fazem parte de redes sociais, sempre viveram em isolamento e vão continuar a ter a sua comidinha não importa o que aconteça.

Infelizmente pertenço à raça humana e faço parte de uma mega estrutura de produção e de consumo da qual não consigo escapar. Preciso pagar contas, preciso comprar comida, preciso trabalhar e não tenho o luxo que elas têm. 

Junto com todos os que carregam esse fardo, sei que estamos vivendo momentos extremamente inquietantes. Não dá para fugir. Não importa qual a corrente de pensamento, qual a religião, cor, nacionalidade ou mesmo classe social, estamos todos envolvidos. A desigualdade econômica explodiu e continua aumentando, os ecossistemas estão à beira do colapso, existe uma crise econômica seríssima, as novas tecnologias vão precisar cada vez menos da presença humana, uma pandemia nos pegou de surpresa e outras podem vir na sequência. 

O mais perigoso nisso tudo é que nossas lideranças, tanto regionais quanto mundiais, não estão à altura desses desafios cruciais. Muito pelo contrário, salvo raríssimas exceções, são negacionistas ou minimizadoras. Muitos tentam vender uma falsa promessa de conforto através de ficções baseadas em preconceitos, chavões e obscurantismos que visam manter um status quo insustentável. Mesmo lideranças nas oposições – novamente, salvo raras exceções – têm como prioridade vencer disputas eleitorais, algo natural em situações menos emergenciais mas que estão longe de resolver o gravíssimo quadro atual. Quando lideranças mais conscientes aparecem, os que se veem ameaçados, conseguem mantê-las longe da atenção do público para que o circo continue.

Tudo isso faz com que não haja nem estrutura, nem instituições, nem encorajamento, nem respostas, nem priorização para resolver os graves problemas postos na nossa frente. Para piorar as coisas, no geral, há pouquíssimo conhecimento da seriedade da situação. Há muita recusa em encarar a realidade. O que mais vemos são ansiedades em substituí-la por fantasias, sejam elas religiosas, ideológicas, étnicas ou nacionalistas. 

Os paralelos com o que aconteceu na época do nazi fascismo são inevitáveis. Quando sistemas econômicos e políticos aos quais somos umbilicalmente ligados colapsam, as grandes ideias e os líderes messiânicos entram em cena. Nosso reflexo de rebanho, aprendido em escolas, religiões, quartéis, culturas tradicionais e até em nossos lares nos impele a procurar alguém ou algo acima de nós que nos salve, seja como indivíduos ou seja como coletividade. 

Essa é uma hora muito perigosa, pois nos colocamos a mercê de indivíduos, de idéias, de projetos ou de organizações que se apresentam como resposta. A fachada visível e a realidade do seu funcionamento raramente coincidem. É nessa hora que nossa individualidade, nossa liberdade, nossa unicidade, nosso bom senso e o nosso futuro correm o maior perigo. É nessa hora que grandes erros são cometidos pois atribuímos poderes imaginários a seres humanos falíveis e muitas vezes predatórios. Esses erros, quando tomam vida própria, têm consequências imprevisíveis e frequentemente nefastas. 

O propósito dessas palavras não é apresentar soluções milagrosas nem se colocar a favor ou contra personalidades em destaque. O propósito é dizer que indivíduos supra humanos e soluções milagrosas simplesmente não existem. O propósito aqui é dizer que precisamos de instituições fortes, baseadas na racionalidade e voltadas para o bem comum. Precisamos muito mais de políticas do que de políticos. 

Políticos são, ou pelo menos deveriam ser, nossos representantes quando decisões importantes têm de ser tomadas. As instituições onde operam são, ou deveriam ser, as que nós os oferecemos para que trabalhem para a gente. Precisamos, por isso, de comunidades e indivíduos fortes que lutem para que seus interesses sejam atendidos e que escolham bem seus representantes.

Não é à toa que o maior alvo do neo-fascismo seja a democracia. 

Nesses tempos de crise precisamos apenas e sobre tudo que os problemas imensos que enfrentamos sejam resolvidos da melhor maneira possível e no interesse de todos. Não serão salvadores da pátria paternalistas que farão isto por nós. Ao contrário, temos que nos empoderar e nos engajar, onde e como pudermos, para reverter uma situação que está saindo fora de controle. Somos nós que temos que estar a altura dos desafios impostos. Não podemos deixar as coisas nas mãos de outros, sejam eles companhias, líderes religiosos ou políticos e esperar que eles tragam uma solução. 

Devemos escolher gente que nos represente em instituições que controlamos. Porém, dar carta branca a forças hierárquicas que nos veem como peões na esperança que elas resolvam por nós, jamais. Quem tem que ter poder sobre nossas vidas somos nós. 

Voltando às minhas gatas que não entendem nada de política ou de economia e que resolvem suas questões com miados; elas têm mais ciência e controle do mundo em que vivem do que eu do meu. Para elas sou um ser que navega alienado pelo mundo. Que inveja!