por Richard Klein | 30 jan, 2021 | Brasil, Comportamento, Conto, Crônica, Livro
Capitulo 28
Todo dia o sol levanta
E a gente canta
Ao sol de todo dia.
Caetano Veloso - Canto Para o Povo de um Lugar
A próxima parada era João Pessoa, a capital da Paraíba. Dessa vez deixamos as caronas de lado e resolvemos ir de trem. Era quase de graça e a linha se afastava da costa e entrava pelo sertão à dentro. Dada a escassez de ferrovias no Brasil isso prometia uma viagem única e imperdível. Ela nos permitiria conhecer, mesmo que de relance, essa região tornada famosa em verso, prosa e música. Depois de saciar a fome, beber umas cervejas e dar uma volta pela belíssma Maceió, fomos para a estação. Na entrada, encontramos com os gaúchos da Praia do Francês que tinham gostado da ideia e tinham resolvido se juntar.
Assim que pusemos os pés dentro do terminal, causamos uma comoção. Para os passageiros locais, ver aquela galera estranha era como presenciar a entrada da versão moderna da gangue de Pat Garrett e Billy the Kid ou de uma banda de rock recém-saída do inferno. Só faltava a camera lenta e a musica de filmes de faroeste. Sob olhares constantes e mal disfarçados, compramos passagens para o próximo trem que partiria dentro de uma hora. Sem mais nada para fazer, ficamos vagando pela estação achando graça do pessoal boquiaberto.
Depois que o trem partiu, tomamos posse de um vagão vazio. Pela janela, ficamos curtindo ver o verde litorâneo ficando para trás e paisagem se tornando muito diferente da que tínhamos visto pelo nordeste afora até então. Primeiro, veio o cerrado com sua vegetação densa porém seca e espinhosa e uns vinte minutos depos entramos na aridez do sertão.
Essa região semi desértica era a mais pobre e atrasada do Brasil, a ponto de ser considerada por estudiosos como a região mais semelhante à Europa medieval no mundo. Nela, o povo profundamente católico e supersticioso tinha um relacionamento semifeudal com os donos da terra. A cultura era machista ao extremo e havia um altíssimo grau de analfabetismo. Mesmo sabendo que não interagiriamos com essa população, só o fato de estar ali mudou o clima no trem. Continuamos em silêncio cruzando a vegetação rala no ar quente e depois de um tempo começamos a atravessar e a parar em cidades.
As estações dilapidadas pareciam remanescentes de uma era quando havia uma promessa nunca cumprida de prosperidade. Quando o trem parava, uma pequena multidão chegava às nossas janelas para nos vender todo tipo de coisa, desde garrafas d’água de plástico até animais silvestres. Em todo vilarejo, o trem era o maior evento do dia e nós – os cabeludos estranhos – os destaques. O povo se amontoava em nossas janelas apontando para nós e rindo como se fossemos uma banda de rock de gays drogados.
Algumas vezes faziam piadas sobre nós.“O sulista! Isso aí é cabelo de homem?” A meninada ria.
“Por que, bonitão? Quer que o teu macho fique gato como eu?” A meninada ria mais ainda, mas alguns não gostavam e ameaçavam jogar coisas.
Atrás das estações, mercados mambembes alojavam lojas de roupas baratas, botequins, açougues mal cheirosos e lojas de discos que tocavam alto músicas que davam arrepios de tão brega que eram. Homens andavam a cavalo nas ruas de terra batida entre carros enferrujados, jumentos sonolentos e cães magrelos. Por todo lado crianças descalças corriam sob o sol escaldante.
Quando o trem saía das cidadezinhas, voltava àquela paisagem árida e desolada que lembrava as de faroestes italianos. A população, porém, não era de camponeses mexicanos, mas uma mistura de descendentes de índios, brancos e africanos vivendo em casebres de barro com cobertura de palha. Os pequenos lotes de terra nela, lutavam para parecer fazendas naquele calor insuportável. As plantações eram mínimas e o gado era tão magro que dava para contar as costelas.
Os vagões e sua locomotiva azuis e antigos estavam nas últimas e pareciam em harmonia com o que nos cercava. Por conta do horror dos outros passageiros em compartilhar seus assentos com gente “do demo”, acabamos ficando sozinhos em nosso vagão durante a viagem inteira. Vez por outra, funcionários do trem entravam para conferir o que estávamos fazendo e geravam um silêncio hostil. Apesar da extrema pobreza passando do lado de fora e do clima tenso do lado de dentro, todos concordamos que o passeio estava sendo uma “viagem”. Claro, apesar da vigilância apertada, conseguimos fumar nosso veneno com as cabeças para fora das janelas.
*
No Rio, “paraíba” era o termo pejorativo dado aos membros do seu enorme contingente de nordestinos, sem distinção de onde vinham. Eles preenchiam o papel que mexicanos exercem nos Estados Unidos, árabes na França e paquistaneses no Reino Unido. Igual aos preconceituosos dos países ricos, muitos cariocas tinham sentimentos contraditórios com relação ao Nordestinos. Junto com o fascínio pela sua cultura e da admiração pela suas belezas naturais vinha a rejeição de imigrantes pobres vindos de lá com legados diferentes.
Quando o trem chegou em João Pessoa, a capital da Paraíba, assim que comecamos a circular pela cidade, descobrimos que, pelo contrário, a cidade tinha – pelo menos a nível arquitetônico – uma sofisticação clássica que comparava bem com a do Rio. Suas construções bem conservadas do século 19 e suas avenidas elegantes delimitadas por árvores exuberantes com postes de luz de estilo antigo faziam a cidade muito charmosa.
Porém, o principal motivo de estar contente por estar ali era que uma amiga da faculdade, Francesca, estava passando as férias com sua família Paraibana. Como muitos outros membros da elite local, eram descendentes de italianos. Loura de olhos azuis, era deslumbrante a ponto de uma revista carioca a ter eleito como a musa daquele verão. Apesar disto, o seu atributo mais atraente era seu espírito de moleque e a gente se dava muito bem.
Dessa vez íamos ficar na casa do estudante universitário e assim que chegamos, ligamos para ela. “Richard! Pedro! Seus malucos!!! Como que vocês chegaram até aqui!!?? De que?! De carona de caminhão?? Pegaram o trem pelo sertão?! Hahahaha! Vocês são muito loucos!”
Depois das piadas e de contar alguns “causos”, fui à pergunta inevitável: “E aí, Francesca? Vamos se encontrar?”
“Claro!!” Daí ela cochichou baixinho: “Mas nada de pãpãpã porque o pessoal daqui é caretasso!!”
“Beleza, claro que não, só que você vai perder o veneno que trouxemos de Maceió.”
Ela deu uma risada. “Vocês tão aonde?”
“Na casa do estudante universitário, conhece?”
“Claro! Daqui a pouco tô passando aí!”
Receando que fossemos conhecer alguém da sua família endinheirada, nos vestimos da melhor maneira possível. Na falta de outra opção, colocamos umas roupas hipongas metidas a chique compradas em Salvador. Não demorou muito e ela chegou com dois primos, ambos educadíssimos e com um visual super conservador, com certeza membros eminentes da elite local. Após as apresentações, levaram Pedro e eu num carro elegantíssimo com ar-condicionado para conhecer João Pessoa. Depois, nos convidaram para jantar num restaurante elegante. Foi um convite desconfortável, mas aceitamos por causa da insistência da Francesca.
Eles acabaram fazendo questão de pagar a conta da peixada maravilhosa. Mas diferente do jantar bizarro com dupla de mergulhadores em Vitória e suas “amigas”, não havia nenhum interesse escuso. Porém, descobririamos mais tarde entre risadas que nos confundiram com um casal gay. Não era para menos: nossas roupas neo-hippies, batas e calças floridas e soltas jamais poderiam ser classificadas como roupas para macho em qualquer cidade do mundo em qualquer tempo da história.
Na realidade, mesmo com a má impressão que causamos, tinha esperanças de, quem sabe, engatar uma aventura de verão com a Francesca. Apesar de ter um namorado no Rio, nas matadas de aula nos jardins da faculdade rolava um clima forte. Entretanto, com a família dela por perto – e eu parecendo um extraterrestre para eles – as chances de que algo acontecesse eram zero.
Além da inacessibilidade da Francesca e da elegante arquitetura de João Pessoa, não havia muito o que nos atraísse ou nos prendesse lá. Decepcionados, depois de tres dias ali seguimos rumo ao norte, para Fortaleza, a capital do estado do Ceará, onde ficaríamos com um tio de Pedro.
*
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por Richard Klein | 23 jan, 2021 | Brasil, Comportamento, Crônica
Na manhã seguinte saimos rumo às praias de cartão-postal de Maceió, nas Alagoas. Águas cristalinas e uma vegetação abundante de coqueiros se estendendo ao longo da costa inteira eram uma promessa bem-vinda com depois da simplicidade cênica de Aracajú.
Seguindo uma recomendação recebida ainda no Rio, passamos direto por Maceió e fomos para a Praia do Francês, a uma meia hora e pouco da cidade. Chegamos num fim de tarde ensolarado e ficamos maravilhados de cara. O lugar era lindo e o pessoal era diferente de tudo o que tinhamos visto até entao; garotas e garotos bronzeados do “sul” saudáveis, abastados, com ares de surfistas, relaxados, todos num astral ótimo e muito diferente daquele que havia feito de Arraial d’Ajuda uma decepção.
A experiência já havia nos ensinado que a primeira coisa a se resolver era procurar um lugar para ficar. Perguntamos por ali e o dono da venda da aldeia nos falou de uma construção. “Tão construindo uma casa lá no final da praia. Os obreiros só vão voltar em março. Já tem uns cabeludos acampando lá. Acho que deve ter lugar para vocês.”
Fomos lá e gostamos. A base da obra já estava pronta, mas estava coberta só por um teto de palha mal-acabado. Conforme o dono da venda tinha dito, havia um grupo de sete ou oito caras já acampados lá e fomos falar com eles.
“Fala aê, beleza?”
“Beleza!” respondeu o mais velho deles, um cara de cabelo crespo, brinco na orelha e cavanhaque.
“Tamo chegando aqui e a gente queria saber se dava para acampar num canto.”
“Sem problemas, tchê, aqui tem lugar para muita gente. Se vocês não tiverem problemas com gaúchos podem ficar à vontade.” O sotaque e a maneira cantada de falar não podiam ser mais típicos.
Agradecemos e depois de montar a barraca fomos conversar com eles. Já era fim de tarde e, como não seria surpresa, estavam bebendo chimarrão sentados na sombra e apreciando o fim de dia vendo o mar.
“Conhecem chimarrão? Prova um pouco!” O Pedro recusou. Eu que já tinha experimentado e até gostav, aceitei.
“Isso não é para beber no frio?”
O cara deu uma risada. “A gente bebe chimarrão até debaixo d’água, tchê.”
Um outro, com uma cabeleira lisa que ia até debaixo do ombro, perguntou: “É a primeira vez de vocês aqui?”
“É, a gente está viajando a costa e tamo indo até o Ceará, pelo menos esse é o plano. E vocês?”
“Saímos de Porto Alegre há um mês e viemos de carona até aqui. Bá! É muito chão e em sete é tri-complicado.”
A maioria era loiro, todos educadíssimos apesar do visual inconformista. Naquele calor, aquele monte de cabeludo me trouxe à memória as bandas de rock do sul dos Estados Unidos. O cara que nos deu as boas-vindas foi direto ao assunto.
“Pois é, carioca, vocês fumam um, né?”
“É, somos do clube.”
“É o seguinte, a gente descobriu um plantador em Barra de São Miguel, uma cidadezinha perto daqui. A coisa é um veneno, tchê.”
Um outro emendou: “Fomos lá para experimentar, e bááá! Voltamos tri-loucos!”
Todos confirmaram que era “tri-bom”.
O primeiro continuou: “Então, tchê, nós estamos fazendo uma vaquinha para comprar um peso. Se a gente juntar trezentas pilas compramos seiscentas gramas, faltam cinquenta, cês podem entrar?”
“Sei lá. tem um pouco aí para a gente experimentar?”
O de cabelo até a cintura respondeu na hora: “Claro, tchê!”
Um deles tirou um baseado do bolso, acendeu e passou para a gente. Como qualquer do bom, depois de duas baforadas deu para sentir a qualidade. Os caras estavam certos. A parada era “tri-boa”.
Pelos calculos, íamos ficar com quase cem gramas daquele veneno por um quarto do preço que custaria no Rio, uma oportunidade imperdível num lugar perfeito. Não pensamos duas vezes; concordamos, raspamos o dinheiro escondido num compartimento secreto da mochila e entregamos a eles. Na manhã seguinte, dois deles foram buscar o bagulho. Quando voltaram por volta do meio dia, foi uma fumelhança desatinada.
Depois de um tempo, a larica bateu e caiu a ficha de que apesar do generoso estoque do bom, estávamos completamente sem grana. Os gaúchos ficaram igual. A única possibilidade da gente reabastecer os bolsos implicaria em uma ida de uma hora de ônibus até Maceió de manhã cedo para achar um caixa eletrônico – que ainda só existiam nas grandes cidades e que, por sinal, o Brasil estava inaugurando a nível mundial. Depois, a gente teria que esperar o ônibus de volta que só saía no final do dia. Praia boa e bagulho bom eram um convite à preguiça e ninguém estava disposto a perder um dia inteiro com aquilo. Do lado positivo, isso significaria um alívio para o nosso parco dinheirinho.
A salvação alimentar foi um coqueiral imenso logo atrás do acampamento. Não era preciso nem subir nas árvores, era só sair catando os côcos caídos no chão e com isso passamos uma semana inteira nos alimentando deles. No café e como sobremesa, comíamos a carne macia dos côcos mais verdes. Côcos mais maduros tinham a polpa mais grossa, mais nutritiva e eram nosso prato principal e durante o dia. A água deles saciava nossa sede e, também nutriente, ajudava a nos manter. Usavamos um facão na obra para abri-los e tínhamos que tomar cuidado para não acertarmos nosso dedo ou atingir os outros naquela chapação generalizada.
*
A Praia do Francês é famosa por seu coral e sua vida marinha espetaculares. Isto, e a água limpa e transparente, rara no Nordeste, fazia com que um monte de gente viajasse do país inteiro para mergulhar ali. Consegui uma máscara de mergulho e um tubo emprestados de um paulista que tinha virado entusiasta da nossa compra na Barra de São Miguel. Por conta da sua generosidade, passava os dias explorando o coral e os peixes coloridos sob a influência do veneno verde, uma combinação que se provou perfeita. Embaixo d’agua me sentia como se estivesse passando horas num planeta diferente. No fim do dia, quando chegava o pôr do sol, me sentindo bem e abençoado, pegava a viola e saía em caminhadas ao longo do coqueiral curtindo a brisa do mar fazendo as árvores se balançarem de um jeito mágico. Seguia até encontrar um lugar protegido e ficava ali tentando criar música.
Enquanto o Pedro não sabia por onde começar com o banquete de beldades passando o verão ali, não demorou muito para que eu conhecesse outros músicos. O pessoal se reunia para fazer um som em frente da barraca de uns argentinos gente boa. Se não estivesse mergulhando, estava ali. Fazer experimentos musicais no Nordeste era uma experiência especial. A vibração musical da região era menos africana e mais árabe e indígena. O calor e o ar seco pareciam influenciar a gente. As levadas que inventávamos abriam mais espaço para digressões inusitadas. A qualidade do THC e a desintoxicação forçada pela dieta à base de coco me trouxeram inspiração. Quando tocavamos no calor do dia e no vento frio e seco da noite, eu e meus camaradas de som pareciamos um bando de beduínos de sunga envoltos numa magia Sufi num deserto a beira mar.
Às vezes, íamos levar um som na praia quando ficava escuro. Ali nossas sessões acabavam virando apresentações em torno das fogueiras que o pessoal acendia e davam um toque hippie às férias de todos os presentes. Com tantos músicos antenados envolvidos, a gente se recusava a tocar músicas conhecidas. Fazíamos improvisações que, pelo menos para nós, eram de altíssimo nível. Para os que estavam ouvindo provavelmente também, porque apesar do silêncio, havia respeito e um astral mágico no ar. As musicas começavam com uma levada fácil até alguém se inspirar e levar o que estavamos fazendo para um lugar mais especial. Conforme o som ia evoluindo, voltávamos à frase inicial e ficávamos nela até que outro alçasse vôo para novas alturas. A coisa fluía com ritmos e texturas provindos da redondeza. O sentimento era para lá de fantástico.
Apesar do sucesso das sessões, começamos a sentir um clima estranho naquele lugar que de início tinha parecido um paraíso. Acabamos nos dando conta de que a Praia do Francês era, na verdade, um destino turístico mais de elite do que o sul da Bahia e que nós, os outros músicos e os gaúchos do acampamento, éramos minoria. Por conta disso, nos deparamos com muita cara virada por não estarmos viajando com um carro do ano e dormindo em pousadas boas. Não pensamos muito sobre o assunto, mas talvez de maneira inconsciente isso nos tenha levado a ficar ali menos tempo do que poderíamos.
Levantamos acampamento junto com os gaúchos. Na manhã que chegamos em Maceió, a primeira coisa que fizemos foi ir à cata de um caixa eletrônico. Achamos um alojado numa cabine de vidro futurista contrastante com a arquitetura colonial ao seu redor. Novamente com dinheiro no bolso, foi um alívio ir a um pé sujo à beira da praia para desfrutar de uma refeição decente. O que pedimos foi o prato básico da região – arroz com feijão, farinha de mandioca, peixe frito e uma cerveja gelada para completar. Por mais simples que fosse, a comida caiu como uma maravilha depois de uma semana e pouco vivendo de côco.
…
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