por Richard Klein | 23 jan, 2021 | Brasil, Comportamento, Crônica
Na manhã seguinte saimos rumo às praias de cartão-postal de Maceió, nas Alagoas. Águas cristalinas e uma vegetação abundante de coqueiros se estendendo ao longo da costa inteira eram uma promessa bem-vinda com depois da simplicidade cênica de Aracajú.
Seguindo uma recomendação recebida ainda no Rio, passamos direto por Maceió e fomos para a Praia do Francês, a uma meia hora e pouco da cidade. Chegamos num fim de tarde ensolarado e ficamos maravilhados de cara. O lugar era lindo e o pessoal era diferente de tudo o que tinhamos visto até entao; garotas e garotos bronzeados do “sul” saudáveis, abastados, com ares de surfistas, relaxados, todos num astral ótimo e muito diferente daquele que havia feito de Arraial d’Ajuda uma decepção.
A experiência já havia nos ensinado que a primeira coisa a se resolver era procurar um lugar para ficar. Perguntamos por ali e o dono da venda da aldeia nos falou de uma construção. “Tão construindo uma casa lá no final da praia. Os obreiros só vão voltar em março. Já tem uns cabeludos acampando lá. Acho que deve ter lugar para vocês.”
Fomos lá e gostamos. A base da obra já estava pronta, mas estava coberta só por um teto de palha mal-acabado. Conforme o dono da venda tinha dito, havia um grupo de sete ou oito caras já acampados lá e fomos falar com eles.
“Fala aê, beleza?”
“Beleza!” respondeu o mais velho deles, um cara de cabelo crespo, brinco na orelha e cavanhaque.
“Tamo chegando aqui e a gente queria saber se dava para acampar num canto.”
“Sem problemas, tchê, aqui tem lugar para muita gente. Se vocês não tiverem problemas com gaúchos podem ficar à vontade.” O sotaque e a maneira cantada de falar não podiam ser mais típicos.
Agradecemos e depois de montar a barraca fomos conversar com eles. Já era fim de tarde e, como não seria surpresa, estavam bebendo chimarrão sentados na sombra e apreciando o fim de dia vendo o mar.
“Conhecem chimarrão? Prova um pouco!” O Pedro recusou. Eu que já tinha experimentado e até gostav, aceitei.
“Isso não é para beber no frio?”
O cara deu uma risada. “A gente bebe chimarrão até debaixo d’água, tchê.”
Um outro, com uma cabeleira lisa que ia até debaixo do ombro, perguntou: “É a primeira vez de vocês aqui?”
“É, a gente está viajando a costa e tamo indo até o Ceará, pelo menos esse é o plano. E vocês?”
“Saímos de Porto Alegre há um mês e viemos de carona até aqui. Bá! É muito chão e em sete é tri-complicado.”
A maioria era loiro, todos educadíssimos apesar do visual inconformista. Naquele calor, aquele monte de cabeludo me trouxe à memória as bandas de rock do sul dos Estados Unidos. O cara que nos deu as boas-vindas foi direto ao assunto.
“Pois é, carioca, vocês fumam um, né?”
“É, somos do clube.”
“É o seguinte, a gente descobriu um plantador em Barra de São Miguel, uma cidadezinha perto daqui. A coisa é um veneno, tchê.”
Um outro emendou: “Fomos lá para experimentar, e bááá! Voltamos tri-loucos!”
Todos confirmaram que era “tri-bom”.
O primeiro continuou: “Então, tchê, nós estamos fazendo uma vaquinha para comprar um peso. Se a gente juntar trezentas pilas compramos seiscentas gramas, faltam cinquenta, cês podem entrar?”
“Sei lá. tem um pouco aí para a gente experimentar?”
O de cabelo até a cintura respondeu na hora: “Claro, tchê!”
Um deles tirou um baseado do bolso, acendeu e passou para a gente. Como qualquer do bom, depois de duas baforadas deu para sentir a qualidade. Os caras estavam certos. A parada era “tri-boa”.
Pelos calculos, íamos ficar com quase cem gramas daquele veneno por um quarto do preço que custaria no Rio, uma oportunidade imperdível num lugar perfeito. Não pensamos duas vezes; concordamos, raspamos o dinheiro escondido num compartimento secreto da mochila e entregamos a eles. Na manhã seguinte, dois deles foram buscar o bagulho. Quando voltaram por volta do meio dia, foi uma fumelhança desatinada.
Depois de um tempo, a larica bateu e caiu a ficha de que apesar do generoso estoque do bom, estávamos completamente sem grana. Os gaúchos ficaram igual. A única possibilidade da gente reabastecer os bolsos implicaria em uma ida de uma hora de ônibus até Maceió de manhã cedo para achar um caixa eletrônico – que ainda só existiam nas grandes cidades e que, por sinal, o Brasil estava inaugurando a nível mundial. Depois, a gente teria que esperar o ônibus de volta que só saía no final do dia. Praia boa e bagulho bom eram um convite à preguiça e ninguém estava disposto a perder um dia inteiro com aquilo. Do lado positivo, isso significaria um alívio para o nosso parco dinheirinho.
A salvação alimentar foi um coqueiral imenso logo atrás do acampamento. Não era preciso nem subir nas árvores, era só sair catando os côcos caídos no chão e com isso passamos uma semana inteira nos alimentando deles. No café e como sobremesa, comíamos a carne macia dos côcos mais verdes. Côcos mais maduros tinham a polpa mais grossa, mais nutritiva e eram nosso prato principal e durante o dia. A água deles saciava nossa sede e, também nutriente, ajudava a nos manter. Usavamos um facão na obra para abri-los e tínhamos que tomar cuidado para não acertarmos nosso dedo ou atingir os outros naquela chapação generalizada.
*
A Praia do Francês é famosa por seu coral e sua vida marinha espetaculares. Isto, e a água limpa e transparente, rara no Nordeste, fazia com que um monte de gente viajasse do país inteiro para mergulhar ali. Consegui uma máscara de mergulho e um tubo emprestados de um paulista que tinha virado entusiasta da nossa compra na Barra de São Miguel. Por conta da sua generosidade, passava os dias explorando o coral e os peixes coloridos sob a influência do veneno verde, uma combinação que se provou perfeita. Embaixo d’agua me sentia como se estivesse passando horas num planeta diferente. No fim do dia, quando chegava o pôr do sol, me sentindo bem e abençoado, pegava a viola e saía em caminhadas ao longo do coqueiral curtindo a brisa do mar fazendo as árvores se balançarem de um jeito mágico. Seguia até encontrar um lugar protegido e ficava ali tentando criar música.
Enquanto o Pedro não sabia por onde começar com o banquete de beldades passando o verão ali, não demorou muito para que eu conhecesse outros músicos. O pessoal se reunia para fazer um som em frente da barraca de uns argentinos gente boa. Se não estivesse mergulhando, estava ali. Fazer experimentos musicais no Nordeste era uma experiência especial. A vibração musical da região era menos africana e mais árabe e indígena. O calor e o ar seco pareciam influenciar a gente. As levadas que inventávamos abriam mais espaço para digressões inusitadas. A qualidade do THC e a desintoxicação forçada pela dieta à base de coco me trouxeram inspiração. Quando tocavamos no calor do dia e no vento frio e seco da noite, eu e meus camaradas de som pareciamos um bando de beduínos de sunga envoltos numa magia Sufi num deserto a beira mar.
Às vezes, íamos levar um som na praia quando ficava escuro. Ali nossas sessões acabavam virando apresentações em torno das fogueiras que o pessoal acendia e davam um toque hippie às férias de todos os presentes. Com tantos músicos antenados envolvidos, a gente se recusava a tocar músicas conhecidas. Fazíamos improvisações que, pelo menos para nós, eram de altíssimo nível. Para os que estavam ouvindo provavelmente também, porque apesar do silêncio, havia respeito e um astral mágico no ar. As musicas começavam com uma levada fácil até alguém se inspirar e levar o que estavamos fazendo para um lugar mais especial. Conforme o som ia evoluindo, voltávamos à frase inicial e ficávamos nela até que outro alçasse vôo para novas alturas. A coisa fluía com ritmos e texturas provindos da redondeza. O sentimento era para lá de fantástico.
Apesar do sucesso das sessões, começamos a sentir um clima estranho naquele lugar que de início tinha parecido um paraíso. Acabamos nos dando conta de que a Praia do Francês era, na verdade, um destino turístico mais de elite do que o sul da Bahia e que nós, os outros músicos e os gaúchos do acampamento, éramos minoria. Por conta disso, nos deparamos com muita cara virada por não estarmos viajando com um carro do ano e dormindo em pousadas boas. Não pensamos muito sobre o assunto, mas talvez de maneira inconsciente isso nos tenha levado a ficar ali menos tempo do que poderíamos.
Levantamos acampamento junto com os gaúchos. Na manhã que chegamos em Maceió, a primeira coisa que fizemos foi ir à cata de um caixa eletrônico. Achamos um alojado numa cabine de vidro futurista contrastante com a arquitetura colonial ao seu redor. Novamente com dinheiro no bolso, foi um alívio ir a um pé sujo à beira da praia para desfrutar de uma refeição decente. O que pedimos foi o prato básico da região – arroz com feijão, farinha de mandioca, peixe frito e uma cerveja gelada para completar. Por mais simples que fosse, a comida caiu como uma maravilha depois de uma semana e pouco vivendo de côco.
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por Richard Klein | 28 nov, 2020 | Brasil, Comportamento, Crônica
Capítulo 23
“Meus heróis morreram de overdose
Meus inimigos estão no poder
Ideologia,
Eu quero uma pra viver.”
Cazuza – Ideologia
Pedro também caiu de paraquedas no curso de Economia da UFRJ. No vestibular, tinha dado a sorte de se sentar ao lado de um amigo de infância “Caxias”. Sem ter que insistir muito, o amigo deixou a sua folha de respostas a mostra e foi assim que ele entrou para o curso. Ele não era o cara típico de círculos acadêmicos. Morava fora da Zona Sul, tinha pele mais escura, cabelo enrolado e por ser da equipe de polo aquático do Fluminense, era sarado. Não demorou muito para que engatássemos numa firme amizade, comigo sendo seu passaporte para festas na Zona Sul e com ele me ajudando na cultura de rua.
Economia e Administração de Empresas, Comunicação (Jornalismo e Publicidade) e Psicologia eram as três faculdades no campus da Praia Vermelha. Nosso curso era o mais prestigioso e ficava no prédio mais suntuoso, o que abrigava o famoso Teatro de Arena. O diretório central dos estudantes era lá e usava aquele anfiteatro como palco para bandas alternativas, muitas delas excelentes, como Premeditando o Breque, Diana Pequeno, Luli e Lucinha, entre outros.
Por essas e outras, os alunos de Economia se achavam um degrau acima, acreditando lidar com questões mais difíceis e importantes. Para nós, os estudantes dos outros cursos estudavam matérias fáceis e superficiais. Em contrapartida, ainda que impuséssemos um certo respeito, eles nos viam como riquinhos nerds metidos a besta.
Pedro e eu não estávamos interessados nesses estereótipos. Em vez disso, saímos explorando o campus, fazendo amizade com os estudantes de Comunicação – eles sabiam das melhores festas – e com os de Psicologia – a grande maioria era de mulheres, muitas delas bonitas e pareciam dispostas a experimentar coisas novas.
De qualquer forma, passamos a fazer parte de uma turma universitária mais madura que possuía vida social própria. As festas que começamos a frequentar refletiam esse novo status universitário. Nelas, além da nossa turma de calouros, havia estudantes de anos mais avançados, jovens professores, suas namoradas, esposas e seus amigos, todos inteligentes e muito mais sofisticados do que a maioria das pessoas com as quais estávamos acostumados a nos relacionar.
Minha habilidade no violão operava milagres e éramos convidados para as melhores festas, organizadas pelos membros mais conceituados do corpo acadêmico, muitas nos melhores endereços da cidade. A elite era de esquerda e vários chegariam a posições importantes em agências governamentais, nos negócios e mesmo na política. A maior parte vinha de famílias tradicionais e conceituadas, e alguns dos pais eram envolvidos nas cúpulas dos recém-legalizados partidos de oposição.
Num tempo de renascimento político esses círculos apreciavam a aura descontraída de um violonista, versado no estilo de vida alternativo encontrado em Visconde de Mauá e Trancoso. Durante um breve tempo, tanto Pedro como eu fomos cortejados pela elite estudantil, mas a novidade desbotou logo e nos deixaram de lado devido às notas baixas, o contexto familiar inadequado e a falta de base e de interesse nos assuntos sérios que todos deveriam estar focando.
A acolhida nos outros cursos foi mais durável. Choviam convites para festas e levadas de som. Conhecemos garotas sensacionais e fizemos boas amizades. Imersos na farra e com um status elevado em casa, foi fácil esquecer a realidade econômica sombria pairando sobre nossas cabeças, bem como os esforços requeridos por uma das melhores faculdades do país.
*
Com a contrarrevolução neoliberal veio a caça às bruxas. Pessoas que não haviam colhido os frutos do milagre econômico dos anos 1970 ou que não tinham participado da festa, quer por proibição dos pais, quer por dedicação aos estudos ou repúdio àquela postura, pareciam estar ajustando as contas e festejavam a desgraça do inimigo.
O que antes era curtição, passou a ser visto com maus olhos, o que havia sido revolucionário agora era considerado idiotice e o que antes era aproveitar a vida se tornou a causa de doenças sexuais e mentais. A jornada de uma geração que havia lutado contra uma ditadura e que mais tarde presenciou a volta da democracia foi relevada. O sentimento de irmandade que tinha surgido naqueles dias se dissipou. Tudo parecia de cabeça para baixo: o que o senso comum havia considerado até então como egoísta e detestável, agora era aplaudido como a coisa certa a fazer.
O choque econômico também trouxe novidades na maneira de se “fazer a cabeça”. A cocaína passou a substituir a maconha. Não nos encontros dos radicais chiques de esquerda do curso de Economia onde muitos nem fumavam, mas nas outras rodas que frequentávamos. O comando do tráfico carioca percebeu que o pó branco era mais fácil de transportar, mais difícil de rastrear, mais viciante, mais caro e, enfim, muito mais lucrativo do que a herva, uma tradição de séculos. O submundo se profissionalizou em torno da novidade. Passaram a criar longos períodos de escassez de cannabis, enquanto o fornecimento de pó era abundante e barato. Logo, logo, os antigos maconheiros estavam caindo de napa nos espelhos do Rio de Janeiro. Muitos passaram a ver a maconha como uma lembrança ruim, um entretenimento para hippies fracassados e outros perdedores.
A Brizola – o nome do ex-exilado e futuro governador do Rio de Janeiro e por alguma razão o apelido da cocaína – era mais agressiva e mais nociva. Essa mudança de preferência era ilustrava bem o que estava acontecendo por causa do choque neoliberal. Ao invés de trazer a tona o lado contemplativo e artístico das pessoas, a cocaína deixava o raciocínio rápido e o ego inflado. Depois de se tornar popular, é claro que o tráfico aumentou o preço e fez com que seu consumo se tornasse um peso no orçamento. Por ser necessário consumir muito para manter a onda, em tempos de crise econômica muita gente acabou tomando caminhos à margem da lei para manter o hábito.
No começo, não gostava do clima superficial nem do egocentrismo que as linhas brancas traziam, mas a onda era tão forte que acabei entrando na onda junto com a galera mais chegada. A ilusão de autoconfiança conferida compensava as pancadas da recessão econômica. Àquela altura, a realidade lembrava um caminhão desgovernado vindo a toda em nossa direção mas com a Brizola tinhamos a impressão de correr mais rápido que ela.
No entanto, a implacável verdade era que o Brasil tinha se tornado um país assolado pela hiperinflação e pela recessão. Com uma crise à solta, havia muito desespero e mesmo suicídios, alguns próximos de nós. A saída era “cada um por si e Deus contra todos”, nas palavras de Mário de Andrade em seu livro Macunaíma. A válvula de escape para os abastados era a autodestruição através do excesso, para os mais pobres, era o crime e a violência. Histórias trágicas começaram a pipocar nos jornais; um aumento assustador no número de sequestros e assassinatos de um lado e justiceiros matando suspeitos do outro.
Dentro do meu círculo social o desânimo era generalizado. Na inocência de achar que resistíamos ao sistema, quando os dias ruins chegaram – algo que nunca imaginamos que pudesse acontecer – percebemos o quanto estávamos presos a tudo que achávamos que havia de errado no mundo. Moloch era muito maior que pensávamos. Ao contrário do que ditava a lógica, a crise o fortaleceu.
Todos sentiam que isso era apenas o começo de um longo caminho no escuro. Ao final de meu primeiro ano na universidade, os efeitos do caos eram profundos. A crise tinha pego todos de surpresa e ninguém sabia como reagir. Éramos como prisioneiros inocentes em estado de choque. Tentei me convencer de que podia lidar com o que viesse e de que era impossível que as coisas pudessem piorar. Estava errado.
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por Richard Klein | 31 out, 2020 | Comportamento, Conto
Haviam mais contradições. Em alguns finais de semana, deixava de lado a pretensão hippie, arrumava o cabelo, colocava uma camisa com colarinho, sapatos de couro brilhantes, cinto e calça social para ir às gafieiras. Resquícios dos dias de glória do samba nos anos 1930 e 1940, a maioria ficava em torno da Praça Tirandentes, na Lapa. Não era apenas a arquitetura que permanecia intacta, as orquestras de samba que tocavam ali também. Elas eram autênticas, lideradas por sambistas da antiga encantados por estar virando moda de novo tanto na Zona Norte quanto na Zona Sul.
Ainda mantinha a amizade com o Davi e com a galera “brima” e ia com eles. Mas quem dizia que ia lá pela dança ou pela experiência autêntica estava mentindo. Para nós, a atração maior era o monte de mulheres bonitas provenientes do lado “errado” da Floresta da Tijuca, algumas novas na cidade, interessadas em jovens do lado “certo” da cadeia de montanhas. Depois das danças de rosto colado sob luzes imitando as de discotecas havia as cervejas, os beijos introdutórios e as trocas de números de telefones. Vindos de mundos diferentes, o anonimato protegia ambos os lados e permitia casos rápidos sem a pressão dos círculos sociais mais chegados. Era raro sair de lá sem resultados. Seguindo a mentalidade da época, estávamos fazendo o que se esperava de machos latino-americanos e por mais frio que possa parecer, era isso que as atraía.
Apesar dasses sucessos, ser tímido com as garotas que interessavam e corajoso com as que não, nunca levaria a uma vida afetiva saudável. O esforço para criar uma aura bacana na esperança de atrair uma garota à altura dos meus sonhos não estava dando certo. Talvez por não ser sincero o bastante, não ter a familia suficientemente rica ou por ser esquisito demais, ou talvez por pura impaciência, o que eu queria não se materializava. Ainda por cima, havia um demônio subversivo me dizendo que a felicidade num relacionamento resultando em casamento e familia era uma fantasia que só existia na cabeça de burgueses.
*
A pressão em torno do vestibular estava aumentando exponencialmente. A um mês da prova, a música e as festas teriam que ficar em segundo plano. Se não colocasse trabalho duro na equação, nada de universidade boa nem de tolerância em casa. Isso pedia medidas radicais e por isso fui para Teresópolis para passar duas semanas me preparando isolado.
No dia da primeira prova, acordei de madrugada. Sem conseguir pegar de novo no sono, fui para a praia para me acalmar. O nascer do sol estava espetacular e o mar estava calmo e convidativo. Mergulhei, nadei, peguei umas ondas e relaxei. Quando saí, percebi um homem na passarela olhando para mim. Parecia um Zé Pilintra vestindo um terno de linho branco, chapéu. Ele era alto, usava um bigode curto, e na hora me veio em mente Alec, meu avô por parte de mãe. Aquele encontro bizarro me deu calafrios na espinha, mas o encarei como um bom presságio.
Fui para casa, tomei banho e café da manhã e saí para pegar o ônibus rumo a uma velha escola primária no final do Leblon. Quando saltei me juntei às centenas de outros estudantes esperando no portão. depois de uns dez minutos, funcionários vestidos em jalecos vieram para nos deixar entrar. O primeiro passo era ver a sala onde deveríamos ir em um quadro de avisos. Achei a minha, entrei e fui me sentar no fundo numa cadeira escolar com braço dobrável, a parte de baixo cravejada de velhos pedaços de chiclete.
Quando deu nove horas, os portões fecharam e os inspetores, todos na faixa dos vinte anos, passaram pelas carteiras nos entregando lápis e borracha. Um pouco depois, alguém mais graduado entrou, fez a chamada e nos colocou a par das regras: nada de cola, nada de conversa e quando dissessem que o tempo acabou todos teriam que entregar as provas imediatamente. Depois disso, nos deram grossos envelopes de tamanho A4 contendo as provas e um cartão onde deveríamos marcar as respostas de múltipla escolha.
Os exames eram divididos em quatro dias. Confesso que nas provas de física e química, fui com algumas fórmulas importantes anotadas na parte de baixo das minhas calças, mas nas outras, português, matemática, línguas, história, biologia e geografia, joguei limpo.
*
Com medo do pior, no fim de semana quando os resultados seriam anunciados nos jornais, Kristoff e eu fugimos para Mauá. Acampamos perto da Maromba onde a única ligação com o mundo exterior era o telefone pago de uma pousada. No domingo que saíram os resultados, seria mais seguro ficar sabendo da notícia à distância. O plano era ligar para a Sarah que tinha passado pelo mesmo processo e não me julgaria tanto caso tivesse me dado mal.
Quando atendeu o telefone, ela já tinha procurado por meu nome. Para a absoluta surpresa de todos, eu havia passado para a UFRJ, a Universidade Federal do Rio de Janeiro, no primeiro semestre do seu conceituado curso de Economia, considerado o melhor do Rio e um dos melhores do país. A teoria de ser contra tudo que o vestibular representava evaporou na hora.
“Caralho, mana! Tu tá falando sério!? UFRJ, primeiro semestre??!!!”
“É, seu cagão, e ainda vai ter a moleza de estudar na Urca. ” Ela tinha cursado a mesma universidade mas no Fundão do lado do aeroporto. Mas na hora aquilo não importava, ela tinha deixado de lado sua distancia e estava contente.
“E os velhos?”
“Estão nas nuvens. Não acreditaram também. Tu é muito sortudo, mano! Um dia você ainda vai me explicar como você conseguiu essa façanha depois de tanta vagabundagem.”
“Ah, quem tem os genes da Dona Renée consegue qualquer coisa, ela nunca te contou?”
A gente riu um pouquinho. “Eles saíram para Teresópolis faz uma meia hora, ficaram esperando você ligar, mas acabaram desistindo.”
“Foi o que eu calculei.” Demos mais risadas. “Obrigadão mana, um beijo.”
“Um beijo e parabéns mano. Pode curtir à vontade aí e aguarde uma recepção de gala na volta.”
Antes de desligar, o Kristoff me deu uma cutucada e me lembrei: “Você também procurou pelo nome do Kristoff?”
“Procurei, passa o telefone para ele que eu quero dar a notícia eu mesma.”
Ele tirou o telefone da minha mão apressadamente, “Fala Sarah, tudo bem?”
A reação dele foi uma risada alta. “Ha, ha, ha, nem dá para acreditar!” Ele tinha passado para biologia para a mesma UFRJ, um dos cursos mais difíceis de se entrar, com 20 estudantes por vaga.
*
Depois daquele telefonema estávamos os dois nas nuvens. Para comemorar a ocasião especial, a gente resolveu experimentar a mais recente coqueluche alucinógena da galera: chá de cogumelos. Mauá era conhecida por tê-los e o clima estava perfeito para que brotassem, ensolarado após alguns dias de chuva pesada.
Corremos para as pastagens próximas, mas não encontramos nada. Nossas esperanças se reascenderam quando alguém nos disse que certamente encontraríamos alguns nas pastagens de Campo Alegre, um vilarejo a 40km. O problema era que o nosso único meio de transporte era nossos pés, mas tínhamos bastante obstinação para sair numa caminhada de quase um dia inteiro para colher nossos fungos dourados.
Fomos na hora. A caminhada exaustiva valeu a pena: encontramos um campo cheio deles e colhemos o que conseguimos sob o olhar ameaçador do touro dono do pedaço. Tínhamos que ser cuidadosos: havia duas espécies parecidas de cogumelos nas pastagens. Os dois eram do mesmo tamanho e com o mesmo formato. O que queríamos tinha listas pretas na parte de baixo, o outro tinha listas brancas e era venenoso. Quando terminamos, depois de um momento de euforia, caímos na real e lembramos de que ainda tínhamos a longa caminhada de volta pela frente.
De volta ao acampamento, cansados, aproveitamos os últimos minutos de sol para um mergulho merecido no rio. Quando estávamos prontos para a noitada, resolvemos não fazer um chá já que daria trabalho demais, simplesmente abrimos a bolsa, dividimos a colheita, três para cada um, e os comemos. Eram parecidos com cogumelos comuns só que tinham um sabor mais marcante. Contudo, naquela altura o aspecto culinário era irrelevante.
Já estava escuro quando voltamos para a estrada, dessa vez com os instrumentos debaixo do braço. Tivemos sorte de pegar uma carona. O dono do carro era um casal mais velho de paulistas procurando uma pousada depois da Maromba. Eles estavam ansiosos para saber se tinhamos dicas de bons restaurantes bons e lugares para conhecer na área. No banco de trás, olhando pela janela, tentando responder suas perguntas, comecei a sentir a cabeça ficar leve. Quando saímos e vimos as luzes do carro se distanciar no escuro da estrada de terra, já nos encontrávamos em território psicodélico.
Estávamos na praça da Maromba – um quadrado de terra delineado por poucas casas, um armazém, um bar e uma igreja. Para não sair numa tangente incontrolável, tivemos o bom senso de ir ao bar. Sendo o único nas redondezas, era o lugar onde a malucada se encontrava à noite para levar um som. As únicas outras luzes ao redor vinham do armazém no outro lado do terreno baldio. O pessoal da terra se reunia lá para beber bebida barata em torno de uma mesa de sinuca. Os dois grupos respeitavam o espaço do outro. Uns completamente chapados de um lado e os outros igualmente passados por uma mistura fatal de cachaça com o famoso mel da região do outro.
Já havia dois caras sentados na mesa principal do nosso bar dedilhando alguma coisa no violão. Perguntamos se podíamos afinar com eles e saímos tocando. Com quatro pessoas tocando o pessoal foi chegando. Depois de um tempo, Leandro, a estrela musical da nossa turma, que mais tarde se tornaria o guitarrista predileto do Cazuza e que chegou a tocar com Roberto Carlos, apareceu e fez o som decolar para as alturas. Mais tarde, autointitulado padrinho dos músicos de Mauá, o lendário e veterano Serginho do Mel, também apareceu do nada pedindo para gente fazer uma levada de blues. Mais pessoas foram se juntando e no final, deveria ter uns sete ou oito músicos captando o que os espíritos tinham a dizer sobre a beleza das montanhas e o que a lua prateada e as estrelas acima dela estavam achando daquela noite.
A população de doidos da Maromba acabou comparecendo em peso e, eufórica, se juntou participando com o que quer que pudesse aumentar a energia – cantando versos improvisados, batendo palmas, batucando nas mesas e nas paredes frágeis do bar ou simplesmente dançando. Como num quadro louco de Van Gogh, a música, o lugar e as pessoas se misturaram num transe que durou horas.
Não me lembro como aquela explosão de psicodelismo terminou e nem onde dormi. Só sei que de manhã, quando fomos tomar nossa dose diária de leite tirado da vaca e quase todos da noite passada estavam lá na fila. Enquanto esperávamos a coitada da vaca dar seu leite para aquela malucada, todos comentavam o quanto o som tinha sido bom. Aos poucos fomos descobrindo que todos os músicos tinham comido cogumelos, mas não sabiam que os outros também tinham e isso virou a piada da cidade.
Passamos o resto do dia curando nossas ressacas no escorrega, um tobogã aquático natural que ficava depois da Maromba, se espatifando na água gelada depois de pegar velocidade nas pedras. Aqueles choques térmicos nos trouxeram de volta à vida normal e à lembrança de que tínhamos deixado o pesadelo do vestibular para trás com uma vitória.
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por Richard Klein | 11 jul, 2020 | Brasil, Comportamento, Crônica
Capítulo 12
“... aí eu vou misturar
Miami com Copacabana,
Chiclete eu misturo com banana
E o meu samba vai ficar assim...”
Jackson do Pandeiro – Chiclete com Banana
Apesar do fiasco na Escola Britânica ter quase acabado com o projeto de estudar cinema no exterior, ele continuou. A única alternativa que sobrou no Rio de Janeiro foi a Escola Americana ou a EA (pronunciada i-ei por todos que a conheciam). Inegavelmente era um melhor e mais sólida para adolescentes e ainda tinha a vantagem de que os cursos iam até a idade pré-universitária. O currículo, porém, era inteiramente voltado ao sistema americano. Quando me formasse teria que fazer faculdade nos Estados Unidos. Por todas serem privadas, isso custaria uma fortuna. Ao contrário, se fosse estudar no Reino Unido, muitas das melhores universidades eram praticamente gratuitas e melhores do que a maioria das Americanas. Ciente como nunca de que estávamos, mas não éramos, ricos, Rafael aprovou a decisão salgada. Um detalhe preocupante era que se mudasse de ideia e resolvesse permanecer no Brasil a escola não preparava para o vestibular.
O início foi desconcertante. O colégio possuía tudo o que se poderia esperar de uma High School americana: garotas e garotos ruivos e loiros falando inglês anasalado, um campo de baseball, uma equipe de futebol americano e a competição social inerente àquele tipo de instituição. Cobrindo o morro logo em frente a favela da Rocinha, a maior do mundo, era um lembrete de que aquele terreno enorme abrigando prédios futurísticos era o foco de um vírus estrangeiro.
O lado pedagógico da EA era tão avançado quanto sua arquitetura apesar das aulas serem ridiculamente fáceis. Não havia uniforme, construíamos nosso próprio currículo e estudávamos com diferentes alunos em diferentes salas de aula. Havia uma área de fumantes para os estudantes e vários professores, todos americanos e muito profissionais, tinham cabelos compridos, algo que nenhuma outra escola no Rio tinha nos anos setenta.
Numa cidade influenciada pela cultura Estado Unidense, em matéria de curtição, a escola era o Olimpo para a juventude da Zona Sul carioca. Quem havia introduzido o surfe, os biquínis e a maconha à cidade tinha estudado ou estava estudando ali. Meus colegas de turma eram filhos dos estrangeiros poderosos enviados para assegurar que a filial seguisse de perto as diretrizes da matriz na construção do “Novo Brasil”. Essa mentalidade colonial era visível na maioria dos estudantes e eu tinha que tomar cuidado para não absorver o sentimento generalisado de superioridade em relação aos brasileiros.
A maior parte dos colegas não era santa e estava vivendo junto com suas familias os melhores momentos de suas vidas. Longe de sua terra, os pais ganhando mais do que estariam ganhando em casa e onde tudo era mais barato, a rapaziada fazia todas as coisas erradas que outros da mesma idade faziam, mas com a vantagem de poder contar com a IBM, a Merck ou a Esso para intervir quando as aventuras terminavam mal. Esse tipo de impunidade era normalmente reservada apenas às famílias locais do mais alto escalão.
A elite da escola se conhecia bem por meio das festas, dos clubes e das organizações que seus pais participavam. Era fácil excluir os que não faziam parte da roda. Com o status de brasileiro, não-surfista, não-sarado e filho de um judeu idoso dono de um pequeno negócio, me barraram na hora. Os que faziam parte daquela turma tinham imaculados pedigrees americanos ou europeus, irradiavam autoconfiança, eram atléticos e pareciam arrasar em qualquer atividade física na qual se envolviam, menos no futebol. É claro que as meninas só davam bola para eles.
Aquela galera levava um estilo de vida difícil de se imaginar. Para começar, a maioria tinha barcos a sua espera na marina do Iate Clube do Rio de Janeiro. Muitos moravam em casas espaçosas, uma raridade mesmo naquele tempo. Os que moravam em apartamentos, viviam nos melhores endereços da cidade como as avenidas beira-mar de Ipanema e do Leblon, a Vieira Souto e a Delfim Moreira. Sempre que era convidado para suas festas ou para passar um tempo com algum deles, pensava comigo mesmo: “Então são essas as pessoas que moram aqui!” Aquela turma tinha acesso a coisas que eram ficção científica: videogames (algo que quase ninguém tinha na época), pranchas de surf e skates importados, discos de todas as bandas imagináveis e os melhores equipamentos de som disponíveis nos Estados Unidos. Seus fins de semana, quando não passados velejando num iate, eram passados em casas de veraneio que pareciam saídas de revistas especializadas e isso nas melhores localidades. Lá utilizavam todos os seus brinquedos.
Como se isso não bastasse, suas mesadas em dólar eram muito maiores do que o que eu recebia em um ano inteiro, que, por sua vez, era mais do que um salário mínimo. Meu pai tinha ganho bastante dinheiro extra com sua jogada na bolsa, mas comparados a essas famílias éramos pobres.
Os poucos amigos que fiz estavam numa situação parecida. No entanto trouxeram uma novidade: fumavam maconha. Depois que ficaram sabendo que tocava violão e dos meus gostos musicais não demorou muito para que me convidassem a descobrir qual era o motivo de tanto barulho.
Minhas primeiras tentativas foram decepcionantes. “Cara, cadê? Esse bagulho não era bom pra caralho? Já é o segundo e nada!”
“Calma, Rique, não bateu porque você está nervoso. Vou colocar um Pink Floyd para relaxar, Dark Side of The Moon. ”
“Tenho em casa, sei até tocar Time no violão.” Paranóico de que minha tirada de onda tinha caído mal, mudei de assunto. “Será que não bateu porque tossi demais?”
Aquilo foi a chave de ouro para a minha pagação de mico e todos caíram na gargalhada.
Rod, um cara que não ia com a minha cara, conseguiu parar de rir e falou. “Não falei que esse cara é muito louco?! Não bateu porque ele tossiu demais!!” E as gargalhadas voltaram.
Na terceira ou quarta sessão, tomando mais cuidado para não falar bobagem, fiquei na minha e de repente a ficha caiu que estava muito chapado.
“Caralho, cara, esse som tá muito bom!!”. Os caras olharam para mim esperando que eu falasse mais besteira. Levantei, olhei em volta me sentindo diferente e emendei. “Porra!!! Eu tô doidaço!!”. Dessa vez todos riram comigo.
A experiência não foi como tinha esperado, não havia unicórnios galopando pelo ar e as coisas não tomaram cores psicodélicas. A única mudança foi que a gente continuou rindo sem parar sem motivo nenhum enquanto trocavamos discos de bandas obscuras na vitrola. Sem dúvida, a onda dava uma dimensão diferente às coisas. Talvez por estar aprendendo violão, o efeito da fumaça deixava nítida as diferentes camadas da música. Eu parecia compreender o que se passava na cabeça dos músicos quando as criaram e quando as gravaram.
Enquanto a turma ficou inventando mentiras sobre ácido, heroína e maconhas mais potentes, falei que tinha que ir ao banheiro e fui curtir a novidade dando uma volta pelo apartamento. Os pais do dono da casa, Fred, tinham viajado e a casa estava vazia. Fiquei vagando no escuro pela sala de estar enorme vendo pinturas na parede, esculturas e plantas decorativas. Tudo tinha adquirido uma beleza que nunca teria notado em meu estado normal.
Quando voltei, já estavam fumando outro.
“E aí, Rique? ”
“Cara, esse negócio é muito bom! Me passa essa porra aí!” e todo mundo caiu de novo na gargalhada.
Depois daquela noite entrei numa sintonia diferente tanto na escola quanto na praia, no clube e em casa: agora pertencia a um clube secreto. Coisas e pessoas que nunca tinha entendido passaram a fazer todo sentido. Participar dessa realidade paralela era como a conquista de uma nova identidade. Na minha cabeça, meus pares em outras rodas, o Maurício, o Jaime e o Léo estavam morrendo de vontade de fazer o mesmo mas não tinham coragem.
O lado negativo foi que passei a levar uma vida dupla. Não disse nada para os meus outros amigos, muito menos para os meus pais. Os dois Riques não se misturavam, para um grupo continuei sendo o mesmo de sempre só que com sumiços e momentos estranhos, para o outro era um iniciante estabanado. Logo descobriria que a maconha era um repelente contra as garotas, mas e daí? Nunca iria conseguir nada com as beldades da Escola Americana mesmo.
…
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