Encontrei a palavra “abrigo” em alguma leitura, e aos poucos ela ficou dançando na mente, pedindo atenção. Tardei em entender que ela era significante, pois nunca tinha usado essa palavra no que escrevo ou falo. Abri o coração a ela e fiquei pensando que ela significava. Lembrei, finalmente, de um abrigo no centro de Porto Alegre no qual os bondes tinham seu ponto de partida. Até hoje está lá a edificação, ainda com as bancas que vendem sucos, lanches e batidas ou vitaminas. Era numa das bancas que eu era obrigado a tomar uma batida de abacate com leite num copo grande, e eu pequeno. Tomava contrariado, pois era muito e o primo bem mais velho dizia que era para tomar tudo. No abrigo me sentia desabrigado, obrigado, contrariado, e não gostava.
Entretanto a palavra abrigo também é o começo da vida, sentir-se abrigado, amparado, protegido, e é essencial para enfrentar a vida. O primo era malvado, mas ao mesmo tempo me levava a passear no centro e cobrava o preço de me ver tomando a batida de abacate.
A palavra abrigo é proteção, amparo, e essa construção na capital gaúcha tem essa função. “Abrigo” tem origem latina – apricari –, e ao longo da vida a gente é abrigado e abriga. Há as roupas que abrigam, e uma até que se chama abrigo. Por outro lado, é uma palavra que contém uma outra que é brigo, brigar, e na vida não faltam brigas, tensões, desencontros. Então pensei que abrigo pode tanto ser algo bom como algo ruim, e assim sentia a obrigação de tomar a batida de abacate, um presente chato que divertia o primo sádico.
O problema é o quanto se paga pelo abrigo e o quanto é um amparo essencial, e que cada um, com o tempo, precisa construir seu próprio abrigo, seu espaço, proteger-se de si mesmo e dos demais. Um dos espantos da vida é o quanto a gente sofre, a necessidade de castigo, o sentimento de culpa, diferentes expressões que revelam o masoquismo primário da gente. Sofro mas estou amparado, sofro mas não estou só, tem sempre alguém que desfruta do sofrimento amoroso. O problema de aprender a conviver consigo mesmo, atravessar o desamparo na intimidade de cada um. Conviver com os demais, conviver consigo, e o quanto pode ser difícil viver com menos sofrimentos.
Entretanto, a vida se dá em sociedade, e na convivência social o poder é exercido por quem é mais velho, ou quem tem dinheiro, armas, ou equivalentes de mando. Quando os sofredores se rebelam, são atacados pelos armados pagos pelos endinheirados. Quando eu era criança, paguei ao primo que me levava ao centro para passear tomando o copão de batida de abacate. Entretanto, agora vejo que o preço, mesmo sendo ruim, eu pagava, e achei graça desse jogo. Tardei em fazer as pazes com a palavra abrigo, e hoje me divirto com ela. Talvez nesse encontro aqui nas redes sociais a gente busque algo parecido a um abrigo, tanto quem escreve como quem lê. Uma boa amizade é um abrigo contra o desespero.
Hoje ainda não gosto muito da batida de abacate, mas tomo.
Sempre caminhei em praças e parques, até que um dia no consultório escutei um analisando falar que caminhava nas ruas. Fiquei pensando a partir de então como eu poderia seguir essa ideia que não tinha me ocorrido. Não tardei a encontrar um circuito que, saindo da minha casa, chega na rua Felizardo após quinze minutos. Aí tem uma das lombas íngremes da cidade, que está ao lado do Jardim Botânico até chegar a uma rua plana que igualmente bordeia o jardim. Aos poucos fui treinando as subidas e descidas e não tardei em imaginar o quanto uma vida é feita de altos e baixos.
Às vezes, a gente está tão bem, tão em paz com a existência, em outras parece que o mundo vem abaixo, se passa do amparo ao desamparo. Ora animado com o Brasil e o mundo, ora abatido, ora sonhando com o amanhã e ora angustiado. Quem na vida não subiu e já desceu, quem até não adoeceu? Viver é uma arte e tanto, mas como se aprende a arte de viver é o X da questão. Lembrei agora da autobiografia de Oliver Sacks, “Sempre em movimento”, livro que recomendo. Viver em movimento físico, psíquico, social, gerando ideias que dão origem a metamorfoses, emociona.
Não poderia viver sem parcerias, mas admiro quem consiga viver mais só, em busca de alívios da solidão. Quantos artistas viveram sós, às vezes com alguém ao lado, mas iluminaram as vidas do ser humano. Lembrei de Franz Kafka com seus amigos e noivas, ou o incrível gênio da pintura que foi Van Gogh, ou o compositor Beethoven que mudou a música ocidental. Gente que viveu intensamente, sofreu muito nos seus amores, criou obras admiráveis e aos quais tanto devemos. Foram humildes, suportando crises intensas de todos os tipos.
Na vida há um sobe e desce em todas as atividades, e muitas vezes há avaliações íntimas de uma boa autoestima e outras de baixa estima. Esse vaivém tem a vantagem do movimento, nada fica sempre igual, o tempo passa, a gente cresce, amadurece, envelhece e pode seguir aprendendo. Dos aprendizados, é essencial aprender a vivacidade pura do amor, aprender a amar essa tribo que a gente forma com familiares, amigos, gente com quem se trabalha, convive.
Se me perguntassem o que é mesmo viver hoje, responderia que viver é aprender, aprender do cotidiano, da natureza, das artes, e de como conviver sem tanto sofrimento. Não acredito em fórmulas, confio no aprendizado, nos que se arriscam ao novo, vivem as metamorfoses como acréscimos. Aprender a se amar como a gente é, com certos limites que vão sendo definidos com o passar do tempo. Um dos aprendizados é suportar a loucura geral, pessoal, sem perder muito o norte, mantendo aqui e ali alguma luz diante das angústias geradas pelas perdas. No fundo o que se requer é aceitar os contrastes paradoxais da gente e dos demais, e assim conviver com o desamparo. Perceber a incerteza cotidiana, fazer as pazes com o estranho que vive na gente, esse inconsciente ambivalente onde o tempo não passa.
Subir e descer a rua Felizardo, e cada dia é diferente, conviver com a natureza do Jardim Botânico não me fez melhor, não aprendi a escrever, nem sei se fiquei mais equilibrado. Entretanto, sempre que saio a caminhar sinto uma alegria, e quando retorno das subidas e descidas percebo que estou animado sob o efeito das endorfinas. Subir e descer na vida com parcerias, mesmo imaginárias, alivia, dá leveza diante de tanto peso.
Carlos era um menino de dez anos, adorava livros e estudava em um colégio judaico. Um colégio com muitas árvores, pátios, um ginásio de esportes e uma bela biblioteca. Desde muito cedo se acostumou a ler graças ao seu pai e principalmente ao seu avô. Na verdade, o avô era chamado Zeide, em ídiche, pois ele tinha nascido na Polônia, numa pequena aldeia onde moravam muitos judeus. O avô tinha estudado numa escola de rabinos, uma Yeshivá, e conhecia muito o Tanach, o Velho Testamento, e outros livros da sabedoria judaica. Quando Carlos tinha oito anos ganhou um pequeno livro, o Pirkê Avot (Ética dos Pais), e aprendeu as frases e histórias dos sábios de dois mil anos.
O único problema de Carlos era ser o mais pobre de sua turma na escola. Seus colegas vinham com pastas bonitas, uniformes muito bem passados; já ele não, tudo era muito simples. Na saída da escola os pais vinham buscar os filhos em grandes carros, e ele ia caminhando para sua casa. Um dia, Bernardo perguntou-lhe por que o seu pai não vinha buscá-lo de carro, e Carlos disse que sua família não tinha carro. Bernardo não quis acreditar, riu do seu colega, e logo contou aos demais.
Interessante que no futebol esse menino pobre se destacava, pois se empenhava nas partidas, correndo atrás da bola com entusiasmo. Um dia Carlos trouxe um pequeno livro preto de capa dura e despertou o interesse de vários colegas, e alguém que lhe perguntou:
– Que livrinho é esse?
– É o Pirkê Avot.
– Pirkê Avot? O que é isso? – logo vários perguntaram.
– Ética dos Pais. É o livro mais popular da sabedoria judaica.
– E o que tem nele de tão especial?
– Os principais sábios judeus expõem lições de vida através de comentários da vida.
– Conte alguma – disseram alguns colegas curiosos.
– Começo com Hilel, o único a ser chamado de sábio dos sábios no Povo Judeu.
– Como mesmo é o nome dele? – perguntaram.
– Hilel, que de tão importante é chamado de sábio dos sábios. Por exemplo, ele disse uma frase famosa mais ou menos assim: “Não faças aos outros o que não queres que façam a ti”. Contam que ele teve influência até em Jesus Cristo.
A essa altura o grupo de colegas que rodeava Carlos já tinha aumentado, e estavam todos surpresos. Não imaginavam o colega pobre, que vinha ao colégio com roupas amarrotadas e que seu pai não tinha carro, saber tanto sobre os sábios judeus.
– Conte mais sobre Hilel.
– Tem três frases famosas que gosto muito: “Se eu não for por mim, quem será por mim”; “Se eu for apenas por mim, o que será de mim?; “Se não for agora, quando?”. Meu avô, o Zeide, me explicou várias vezes que cada um deve cuidar de si, mas também devemos nos ocupar dos demais, e, quando temos algo para fazer, devemos fazer e não sempre postergar para amanhã.
Disse, por fim, que entre as qualidades de Hilel estavam a paciência e a capacidade de pensar coisas novas que até hoje são úteis. Existem no mundo escolas com o nome de Hilel. Concluiu:“Nunca mais alguém do Povo Judeu foi chamado de sábio dos sábios”.
– Carlos, tu és o amigo dos sábios – disse Bela.
A partir daquele dia ele passou a ser chamado de amigo dos sábios.Todos estavam estupefatos, o menino que tinha ironizado Carlos por seu pai não ter carro e ele ser pobre ficou envergonhado. Agora, via uma riqueza e um conhecimento no colega. Pediu para ele contar mais do Pirkê Avot, em especial de Hilel. Entretanto, já havia batido e o recreio terminado. Os demais colegas, a partir daquele dia, passaram a tratar Carlos de outra forma. A turma soube na prática o que é um dos valores do Judaísmo e da Sabedoria universal, que é o hakarat hatov (reconhecer o bem) – elogiar as qualidades de seus semelhantes e falar bem dos outros.
P.S. Essa é a única história que escrevi para crianças no livro “Contos e reencontros” com vários autores, editado pelo Colégio Israelita Brasileiro nos seus 95 anos, que agora está completando cem anos. Fui aluno e professor do CIB a quem agradeço sempre.
Do primeiro nascimento a gente não recorda já do segundo sim. A recordação de uma imagem, uma palavra, uma música, um colo, também uma ameaça à vida pode constituir um segundo nascimento. E foi isso que ocorreu ao menino Boris quando ele tinha seis anos, pois numa madrugada entraram na casa onde vivia com lanterna e revólver. Eram policiais nazistas do sul da França no distante ano de 1944; ele foi levado à Delegacia. A Senhora Farges o salvou ao dizer em sussurro que não se devia dizer que era judeu, e que ele até já tinha outro nome. O nome de Boris passou a ser Jean Bordes, novo nome numa nova vida, pois havia escapado da morte ajudado pela sua nova mãe, a Senhora Farges, que tinha sido sua professora. Ele nunca mais viu seus pais, mas soube que tinham sido enviados a um campo de extermínio. Em toda a sua infância o tema da morte foi onipresente, até que começou a pôr em risco a própria vida. Na escola onde Boris estudava se formavam grupos que entravam em disputa, e ele subia em árvores altas para espiar os adversários. Percebeu o quanto era rápido para subir e descer de árvores altíssimas. Imaginou descer rápido se pudesse se agarrar de galho em galho como se fosse um macaco. Era magro e forte, e se prendia em cada galho na descida. Todos se reuniam para vê-lo, até os educadores, e foi se sentindo valorizado.
A guerra terminou, e o menino se transformou em um bom estudante, médico, psiquiatra, psicanalista. Rememorando a descida das árvores, percebeu que flertou com a morte, como se desejasse seguir o caminho dos pais na guerra quando foram mortos. Desafiar a morte e vencê-la foi indispensável para construir seu porvir. Pôs sua vida em jogo cuidando para não morrer, precisou ser ousado. Se tivesse sido equilibrado poderia despertar pena, afinal, perdeu seus pais com menos de seis anos. Quantas pessoas não vivem ou viveram situações semelhantes à desse menino, me perguntei.
O menino Boris que nasceu duas vezes foi é o Boris Cyrulnick, uma referência mundial em resiliência e essa história e outras está em seu livro autobiográfico “Corra, a vida te chama”. A descida das árvores foi marcante, e não tardei em associar a uma aventura de infância. Tinha dez anos quando mudei de casa para um apartamento: nova rua, novo grupo de meninos, e eu chegava como estranho. Tinha uma bicicleta vermelha e branca, comprada de segunda mão pelo meu pai, que se integrou ao meu corpo. Podia andar nela muitas horas por toda a cidade sem cansar e sem que a família soubesse. Durante alguns anos, preferia estar na bicicleta do que jogando bola, pois foi com ela que descobri os ventos da liberdade, ela me abriu as portas do que é ser livre.
Morava num edifício que ficava ao lado de uma lomba íngreme, asfaltada, em tempos de poucos automóveis. Comecei a pensar em descer a lomba com a bicicleta. Um dia, pedi aos novos amigos da zona que cuidassem a vinda de automóveis pela velha a deserta rua Vasco da Gama. Ficavam na esquina e tinham que me avisar se vinha carro ou não, e aí era o sinal para minha descida. Várias vezes desci com êxito e ganhei fama de corajoso no bairro. Confirmei, assim, que viver era bom demais, e lembro com felicidade a descida, pois foram momentos em que conquistei a vida. Entre a segurança e a liberdade pode-se pensar nossa humanidade: uma parte precisa da segurança, já outra se excita com a liberdade.
Estou há tempos para escrever sobre a coragem, mas se até agora não escrevi foi por falta de coragem. É um tema difícil, pois não se trata tanto de um saber, mas de uma decisão; não é tanto uma opinião, mas um ato. Já tive coragem, já tive medo, ora até covarde, também já fui imprudente. Ao longo dos tempos aprendi histórias corajosas, escutando, lendo e vivendo. Se hoje escrevo sobre a coragem, é, em parte, pelo carnaval. Voltou o carnaval do povo brasileiro, a coragem de ser alegre, de voltar a ser feliz após anos de medo e tristeza. Voltaram gente para o governo que devem reconstruir o destruído, gente que ama o Brasil.
“Ora, tenha coragem”, disse Virgílio a Dante no início do Canto XVII, do Inferno de “A Divina Comédia”. Dante, para escrever, precisou da companhia imaginária de um poeta. Dom Quixote buscou Sancho Pança para viver suas aventuras, e até mesmo o astucioso e corajoso Ulisses teve o apoio da deusa Atenas. Quantas coragens diferentes se pode ter, como a coragem de amar, a coragem de escrever, a coragem de não ser indiferente ao sofrimento alheio. Coragem de assumir o desejo, coragem de criar, enfrentar os perigos, coragem para reparar, assumir uma derrota, coragem diante das ameaças. Neste país é necessário coragem para ser da raça negra ou indígena, raças e povos que na História foram mortos, escravizados, viveram genocídios como o povo yanomami agora.
Para pensar a coragem, tratei de recordar alguma história, e lembrei de uma escrita por Pedro Tierra, no seu livro “Pesadelo – Narrativas dos anos de chumbo”. A capa do livro e os desenhos de Elifas Andreato são de rara beleza, apesar de expressarem a crueldade e a covardia dos armados. Tudo transcorre na prisão, quando um dia entrou na cela dos presos políticos um general nordestino, baixo, atarracado. Vinha acompanhado de um oficial, o sargento de turno, um cabo e um soldado. Formou-se um semicírculo perto da porta, havia inquietude, nervosismo, curiosidade. Com voz anasalada e forte sotaque, disse: “Somos generosos. Estamos preocupados com a juventude do Brasil”. Seguiu falando, e os presos apavorados, mas ao final perguntou: “Quem de vocês aceita ir à televisão e se declarar arrependido?”. Pavor e silêncio entre os presos, enquanto os olhos do general varriam, inquisitivos, um a um dos presos, à espera de uma resposta. Finalmente, o mais velho do grupo, tinha uns sessenta anos, bem mais alto que o general, dá dois passos em sua direção e diz:
“General, a cela é o espaço do preso. O último espaço. O senhor, portanto, não devia ter entrado aqui. O senhor vir aqui oferecer a esses meninos que se arrependam em troca de qualquer coisa eu compreendo, embora não aceite. O senhor fazer essa proposta para mim, um comunista moído a pancada por seus mãos de ferro, é um insulto! O senhor se retire da cela. Aqui ninguém se arrepende”. O rosto do general, dos seus acompanhantes, de todos os presos, eram rostos de espanto. O general ainda disse: “Vocês vão se arrepender”. Retirou-se e, aos poucos, os presos se aproximaram, se abraçaram e começaram a falar. Durante meses todos pagaram com o corpo a ousadia do gesto, e ninguém se queixou. Pelo resto da vida carregaram os sobreviventes as palavras de bravura e ousadia. Como o autor não escreveu o nome de quem foi o líder que falou na prisão, eu o segui, mas imagino quem foi, e, se for quem penso, ele morreu com 93 anos.
Pedro Tierra escreveu no livro que a coragem é um ato de loucura. Acrescento que a coragem pode ser um ato de loucura criativa. Hoje sinto que temos chance, não vamos nos arrepender de ser brasileiro, a bandeira é nossa, de todas, todos, todes. Além do que tem muita gente que reúne sabedoria e loucura, saber e decisão como os artistas, os idealistas, e, as vezes, até nós conseguimos. As vezes nos abatemos, desistimos, entristecemos na necropolítica, mas levantamos. Temos em comum a capacidade da metamorfose, a potência da utopia.
“Eu não gosto de piada, não gosto que me contem piada”, disse o humorista Luiz Fernando Guimarães numa das entrevistas que deu ao Jô Soares. O Jô ficou surpreso, o público também, e os telespectadores, como eu, idem. Disse e ficou quieto, e o Jô, espantado, perguntou o porquê, e ele explicou que não conseguia rir de uma piada. Fica tenso quando alguém anuncia que irá contar uma piada, pois pode não achar graça. Essa entrevista me ajudou a pensar o tema do humor, da piada que vinha estudando e escrevendo. Quem define o que é uma piada? Quem conta sempre, mas na verdade quem define e quem escuta, pois se não entender como piada, não ri e não é piada. Por isso insisto que contém estória e se o público rir é piada como ocorre na interpretação ou pontuação, é o analisando quem define ao se sentir tocado pela palavra do analista ou a sua própria. Recebi uma lição do Luiz Fernando, e agora a partir de uma entrevista recente no Roda Viva, vi ele mais velho, mais sábio no seu livro recém lançado.
A história da piada não consta do livro autobiográfico “Eu sou uma série de 11 capítulos”, que indico aos depressivos e aos alegres, aos leitores mais sofisticados e aos simples e até aos que não gostam de ler. Autoajuda de verdade unida a conhecimento do ser humano. O livro é todo entremeado com depoimentos de amigas e amigos. Fernanda Torres faz o prefácio e conclui: “Eu amo, idolatro e venero o Luiz”. Regina Casé foi quem descobriu ele ao incluí-lo no Asdrúbal Trouxe o Trombone, em 1974 e só dele caminhar numa sala, disse, ao vê-lo: “É um gênio!”. Integrou o grupo TV Pirata que mudou o humor televisivo, fez filmes como “O que é isso companheiro?” no papel de motorista do carro que sequestrou o embaixador americano em 1969. Fez diversas séries como “Os Normais” com Fernanda Torres e depois fez dupla com Pedro Cardoso no Fantástico. Muitas peças de teatro, filmes, é ator há meio século.
No seu livro descreve sua mãe Yara como uma professora da vida. Esclarece que nunca saiu do armário, porque não entrou, sempre se viu como gay. Teve vários parceiros, alguns de longa duração, até conhecer o Adriano, há 25 anos. Há pouco tempo, adotaram duas crianças, são irmãos da Amazônia, são os pais afetivos. Um apaixonado por gente, daí amizades incríveis com Fernanda Montenegro, que adora telefonar para conversar com ele. Foi muito viciado em drogas, em especial no álcool, e chegou a ser internado, pois, como escreve, “nem tudo são flores”. Na internação ficou poucos dias e saiu, seguiu bebendo, mas se assustou com o que viu e mudou de terapeuta. Finalmente, conseguiu dominar o vício, parou com as bebedeiras.
Jô Soares e Miguel Falabella estão entre os amigos que escrevem depoimentos, assim como Gregório Duvivier com quem já trabalhou. Apaixonado por cães, hoje tem quinze num sítio que define como um paraíso. Festeiro, deu festas para cem, duzentas pessoas, é um acumulador de amigos. “Eles vão chegando e vão ficando. Gosto de conhecer novas pessoas.” Mais adiante: “A festa está dentro de nós, a solidão também”. Depoimento de Evandro Mesquita: “Com ele, o jogo fica bom, o frescobol teatral, ninguém vence, mas todos ganham!”. Escreve: “Não sou político…Pessoalmente, acho um horror a humanidade hoje em dia… mas não perco a fé na humanidade, não”. Luiz faz humor, não faz a guerra, é um ator de uma qualidade rara, aplaudido por todos públicos, amado por artistas, diretores, críticos. É uma unanimidade, nacional-menos os fanáticos-mas é de gente como ele que precisamos aqui e no mundo.