Pierre Proudhon e o Direito Civil sob o olhar de Pietro Nardella-Dellova: Prefácio ao livro Pierre Proudhon e sua Teoria Crítica do Direito Civil: Anarquismo, Teorias da Propriedade e Kibutzim
O anarquismo, cuja teoria revisitada por Pietro Nardella-Dellova, embasa o primeiro capítulo do presente livro, é certamente inerente ao pensamento socialista e imponderável quando colocado ao lado de qualquer pensamento econômico neoliberal, com o qual contrasta: é luz solar que afasta vampiros e combate o vampirismo da exploração.
Conforme destaca Nardella-Dellova, o embrião do anarquismo, enquanto ideia, origina-se nos debates das aulas de Sócrates, entre seus discípulos Antístenes e Platão e, posteriormente, entre suas respectivas Escolas. Antístenes funda a Escola dos Cínicos (em referência a Cinosarges, ginásio onde funcionava a sua Escola), um pouco menor que a Escola de Platão, à qual se opunha publicamente. A Escola de Antístenes ficou conhecida como sendo a Escola da filosofia dos trabalhadores gregos, enquanto a de Platão, excessivamente aristocrática. No mesmo cenário grego, igual tensão já se havia observado anteriormente entre a poesia camponesa e libertária de Hesíodo e a poesia aristocrática de Homero, assim como entre a escola libertária e feminina da poeta Saphos e as Escolas patriarcais atenienses. Posteriormente, verificaram-se embates filosóficos, sobretudo, entre Epicuro, criador da Escola chamada Jardim de Epicuro, caracteristicamente libertária e internacionalista, em face das Escolas tradicionais fundadas em Atenas, entre as quais a platônica. Nardella-Dellova aponta, também, as características “anarquistas” entre os Judeus de Jerusalém no primeiro século, principalmente entre os fariseus e essênios, contra a imposição dos saduceus, detentores do controle dos serviços religiosos do Templo, e contra a ocupação romana. Os sábios Hillel e Jesus de Nazareth são, de acordo com Nardella-Dellova, duas dessas figuras libertárias, contestadoras e “anarquistas” daqueles tempos.
Entretanto, o anarquismo, enquanto pensamento orgânico de caráter filosófico, desenvolveu-se somente na Europa em resposta aos desdobramentos da Revolução Francesa, e como repercussão do Iluminismo, tendo em Pierre Proudhon seu maior expoente, aliás, chamado de pai do anarquismo. O anarquismo é, nesse sentido, parceiro crítico e ilustre do socialismo, como força teórica e prática. Porém, defendendo “a outra” alternativa de superação, foi colocado em permanente debate antagônico com os socialistas, entre os quais, Marx e Engels. Assim como o pensamento dos seus contendores, o anarquismo proudhoniano erguia-se como fórmula histórica contrária a tudo que a sociedade moderna burguesa erigia.
As ideias do anarquismo, mais do que seus próprios formuladores do século XIX, perduram e repercutem até hoje na academia e nas ruas, algumas vezes até de modo inconsciente. Nesse livro, Nardella-Dellova lança luzes sobre o anarquismo como teoria crítica, desfazendo conceitos e preconceitos, e desconstruindo visões distorcidas e equivocadas. Sob a construção do pensamento anarquista se erguem sólidas plataformas, entre as quais: (1) a luta contra a exploração do homem pelo homem como modo de produção que se estrutura no princípio legal da propriedade privada enquanto direito definidor e separador dos homens; (2) a defesa da possibilidade do desenvolvimento de uma sociabilidade humana em direção a formas libertárias, autonomistas, que se oponham a padrões autoritários (de autoridade!), projetos de domesticação e regimes de controle em geral estimulados por direções burocráticas em forma de Estado e; (3) a defesa da capacidade racional e afetiva do homem e em sua punção libertária.
As evidências empíricas de experiências sociopolíticas nesse paradigma são escassas e raramente estudadas de modo substantivo até porque em geral requerem grande erudição para responder a seus adversários do passado e do presente. E porque é absolutamente necessário esclarecer, com excelência, suas bases e fundamentos para que se possa compreender o significado do anarquismo até nossos dias, sobretudo quando deparamos com o avanço do conservadorismo e do neofascismo, características do poder neoliberal hegemônico, do qual o estágio do capitalismo neoextrativista tanto necessita, chegando mesmo, como se verifica nos dias atuais, às raias do genocídio e do necropoder como formas de controle social para ampliar sua ganância ao mesmo tempo em que submete e escraviza corpos fragmentados ampliados como massa de miséria, e para esconder os destroços que gera contra o ambiente e a natureza.
O livro PIERRE PROUDHON E SUA TEORIA CRÍTICA DO DIREITO CIVIL, de Pietro Nardella-Dellova, é esse sopro de conhecimento erudito e jurídico, que poderá ajudar nossas esperanças libertárias a serem mais bem consideradas e compreendidas. Nardella-Dellova, Professor e Pesquisador de Direito Civil Constitucional e de Filosofia do Direito há muitos anos, recupera academicamente, no segundo capítulo do livro, as obras proudhonianas, em especial as três nas quais Proudhon trata da Propriedade: Qu’est-ce que la Propriété? ou Recherches sur le príncipe du Droit et du Gouvernement (de 1840), Système des Contradictions Économiques ou Philosophie de la Misère (de 1846), Théorie de la Propriété (de 1862, publicada em 1865), e as apresenta, primeiramente para contrapor-se, com objetividade, aos preconceitos jurídicos dos repetitivos Manuais de Direito Civil, e, concomitantemente, como elemento teórico para a construção proudhoniana de uma teoria trilógica da propriedade.
Proudhon é um pensador-chave para questionar a suposta condição privada como essência civilizatória. Nas obras acima citadas, respectiva e trilogicamente, Proudhon: (1) denuncia o droit d’aubaine (expressão intraduzível que indica o direito ao roubo); (2) desvela a miséria criada pela visão estritamente burguesa da propriedade “sagrada”, e; (3) apresenta uma possível e nova função libertária da propriedade (para muito além da hoje conhecida função social da propriedade).
Além disso, não é pouco que Nardella-Dellova, cultor da alta Doutrina do Direito Civil e dos valores constitucionais do Estado Democrático de Direito, traga para o seu debate a crítica que Pontes de Miranda, grande civilista, também faz acerca da Propriedade, ou seus elogios, na linha de Ruy Barbosa, sobre o pensamento científico de Pierre Proudhon. Do mesmo modo, aproveita a visão refinada e crítica de Orlando Gomes, referência no Direito Civil e no Direito do Trabalho, em oposição flagrante à visão dogmaticamente estreita de Clóvis Beviláqua, Washington de Barros Monteiro, Luiz da Cunha Gonçalves, Carvalho Santos e de outros civilistas.
Finalmente, no terceiro capítulo desta obra, Nardella-Dellova nos oferece um olhar, a partir da filosofia judaica anarquista dos proudhonianos Gustav Landauer e Martin Buber, do pensamento judaico crítico de Hannah Arendt e da pesquisa presencial conhecida como Kibutz e a Entidade Cooperativa (1964) de Waldirio Bulgarelli (antigo Professor de Direito Privado da Faculdade de Direito da USP), sobre a experiência original dos Kibutzim judaicos como utopia/topia judaico-anarquista, mutualista e proudhoniana, fato muito escassamente documentado e pouco valorizado. À vista do mundo, os Kibutzim foram sendo avaliados como erro enquanto a ênfase deveria estar no processo constituinte do Estado de Israel, em sentido contrário, balizado por um modelo cada vez mais estatista e centralizado, onde outras formas de governança coletiva, como as kibutzianas, foram sendo sufocadas. O livro nos sugere considerar a burocracia autocrática estatal e a pressão do Mercado em tensão com os Kibutzim anarquistas (registre-se, o autor diferencia-os entre Kibutzim judaicos, de 1870 a 1948, e Kibutzim israelenses, a partir de 1948), e nos deixa em suspense e na vontade de retomar essa mesma utopia/topia para, inclusive, ponderar as causas dos vários conflitos e questões regionais. Esse livro muda nosso olhar sobre a história e sobre a liberdade humana, e já por isso me parece extraordinário!