A saudade é o que ficou do que nunca fomos (Mia Couto)

Ela estava ali, quase ao lado, mas não me via. Uma vez por ano, eu a percebia no jantar de Pessach, liturgia que reunia um pedaço da família em torno de aromas, sabores e memórias. Antes da comilança restauradora, formavam-se grupos separados de homens e mulheres. O Menino, com os primeiros pelos e espinhas no rosto, acompanhava conversas acaloradas dos adultos sobre futebol. Assunto “de homem”. Quarentinha, atacante de pernas finas que jogava no Botafogo, era presença obrigatória. Jamais comemorava os gols que fazia e, por isso, ficou conhecido como “o artilheiro que não sorria”. A alma rubro-negra não entendia muito bem aquela adoração alvinegra. Certo, eles tinham o Quarentinha, mas a gente tinha o Aírton Beleza…

A uma distância prudente, o adolescente em construção flagrava um quê de tristeza no olhar dela. Talvez fosse apenas projeção das expressões severas tão comuns nos adultos ao redor. Talvez, quem sabe, espelhasse uma nuvem passageira no rosto bonito. Enigma que o tempo congelou.

Na casa do Grajaú habitavam, aos empurrões, sentimentos contrastantes. Era espaço de acolhimento, quietudes e espantos sempre em busca de equilíbrio. Equilíbrio tão difícil no mundo lá fora. A mesa que celebrava uma história de liberdade sugeria, sobretudo, o abraço frugal, afetuoso, tão desejado, que a rotina negava. Havia, no entanto, ausências. E não eram poucas. Metade da família nunca estava lá. Por que?

A fratura que sobrevoava a mesa farta ficou exposta quando o coração do Grande fez uma falseta e ele saiu de cena. O abraço disse adeus e foi-se embora. Abriram-se vazios dolorosos e o Menino não tornou a encontrá-la.

Décadas depois, a casa do Grajaú já demolida, meus caminhos deram uma pirueta e reencontrei aquelas raízes. Não falo dos espectros que sempre ocupam os espaços das ausências não desejadas. Procurei os sobreviventes da mesa seminal. Não eram muitos e, na maioria dos casos, o contato foi desapontador. O tempo comum não vivido foi implacável. Confirmou uma velha constatação. Se você chupar um picolé de abacaxi hoje, mesmo que ele tenha as mesmas marca e receita daquele que você conheceu infante, o sabor jamais será o mesmo do antigo. Faltará a ele o paladar da memória afetiva. O mais saboroso será, sempre e indiscutivelmente, o das antigas.

Ela já não vivia. Pensei que era um caso perdido, não haveria como descobrir por quais estradas transitara o quê de suave tristeza. A nuvem intuída se desfez? Entrou em campo o acaso.

Com o precioso auxílio de uma ferramenta virtual, acabei chegando ao viúvo dela. De alguma forma, inesperada, recuperamos a intimidade que hibernava numa esquina do tempo. E então descobri.

Ela se revelou desbravadora. Desafiando o padrão machista da família, saiu do rótulo “prendas domésticas” e ganhou asas. Foi jornalista, artista plástica respeitada, escreveu poesias, formou-se em psicologia. Transformou a inquietação – seria esta a nuvem que percebi numa noite remota no Grajaú? – em invenção e elaboração poética. Combinou muitas personas, que traduziu muito bem num pequeno poema: De repente/silenciei./Ou será/que este/não é o meu silêncio,/é o silêncio do Outro?

A sensação de tristeza descongela. Inventou-se o sorriso.

Faz 33 anos que se foi. Ela era Mirinha. Miriam Blanck Sambursky. Minha prima.

Abraço. E coragem.