O conhecido site de esquerda 247 outra coisa não é do que uma Rede Globo com sinal trocado. Infinitamente menor e menos influente, mas igualmente mal-intencionado.
Trata-se de pura manipulação disfarçada de jornalismo. O veículo é instrumento de militância política em prol das convicções de seu comandante, Leonardo Attuch. Não permite qualquer contraditório. Se a pessoa for vinculada ao canal e discordar, rua, sumariamente. Se não for, é inimigo.
Há exemplos de todo tipo. Mas vou focar em um específico.
O antissemitismo é um dos mais antigos e resilientes racismos que mancham a espécie humana. Expulso da Judeia pelos romanos no ano 70 d.C., o povo judeu se espalhou pelo mundo. Mas jamais abriu mão de sua identidade.
Não há nenhum outro exemplo, na História, de um grupo humano desprovido de território que tenha se mantido unido por cultura, religião e tradição. E isso por dois milênios.
A contradição, privativa do judeu, entre nacionalidade e etnia, eternizou-o como “estrangeiro dos estrangeiros”, em todo e qualquer lugar que habitasse. Isso o tornou alvo preferencial dos ódios chauvinistas irracionais. Porém, explicar esse fenômeno não é meu objetivo aqui.
Em 1948 a humanidade tentou solucionar a questão, e deu aos judeus uma pátria nacional. Isso gerou um dos mais longos e cruéis confrontos bélicos de todos os tempos. Tampouco, e pela mesma razão, me deterei nessa questão.
Não faltam historiadores e cientistas sociais que abordam ambos os pontos com propriedade.
Minha intenção é tentar demonstrar que a simples existência do Estado de Israel constitui um divisor de águas histórico sobre a natureza do antissemitismo.
Esse país nasce quase que simultaneamente com a Guerra Fria. O mundo se resumia a dois polos. Ou se estava com o lado socialista, chefiado pela União Soviética, ou com o capitalista, sob a liderança dos Estados Unidos. Era impossível ser neutro.
Com o tempo, Israel tornou-se aliado preferencial dos EUA, e peça-chave da estratégia ocidental para a Ásia e o Oriente Médio.
Paralelamente, recrudescia o conflito árabe-israelense. Como tudo era preto ou branco, se o ocidente apoiava Israel, carregando consigo toda a direita do mundo, então o bloco socialista e a esquerda mundial passaram a estar ao lado dos árabes.
Mas a equação ainda se complicou mais. Em determinado momento a direita radical tomou o poder em Israel, para não mais deixá-lo – pelo menos até hoje.
Ocorre que a sociedade israelense está dividida rigorosamente ao meio. Para manter o controle, os fascistas necessitam do apoio dos religiosos fanáticos, os quais julgam possuir uma escritura divina que lhes confere propriedade sobre todo o território.
A aliança do ódio de uns com a cegueira dos outros, determina uma política de desprezo às resoluções internacionais que conferem ao povo palestino o mesmo direito que possuem os judeus, a um Estado Soberano. O resultado é a ocupação crescente, implacável e ilegal, dos espaços físicos nos quais esse ente nacional deveria ser construído.
Ora, e o 247 com isso?
Explico. Há que se considerar a existência de três elementos.
O primeiro se chama sionismo. Trata-se do movimento político-ideológico, surgido no século XIX, que defendia a criação, na então Palestina, de um estado nacional para o povo judeu.
Em segundo lugar, o contexto histórico e geopolítico já mencionado. Desde o início da Guerra Fria a esquerda se colocou a favor do Estado Palestino e contra as posições israelenses, sempre fiéis aos EUA. Isso só piorou, posteriormente, quando a extrema direita se apossou do governo israelense e acirrou sem peias as políticas de agressão ao povo palestino. Necessário observar que muito recentemente foi empossada no governo uma composição esdrúxula, mas um pouco mais moderada, composta de representantes de várias tendências. Eventuais alterações nas políticas referentes aos palestinos ainda são uma incógnita.
Por fim, temos a esquerda judia, com suas várias facetas (como, aliás, ocorre com todas as esquerdas do mundo), inclusive uma que é sionista. Ela atua tanto dentro quanto fora de Israel e, embora esteja alijada da capacidade de tomar decisões que influenciem as políticas expansionistas e irracionais adotadas por ele, desenvolve uma luta diária, hercúlea e incessante, pela reversão deste cenário.
A esquerda judia sionista é defensora da resolução da ONU que, em 1948, partilhou o território do então mandato britânico, a fim de que nele se constituíssem dois estados: um para abrigar o povo judeu, e outro para abrigar o povo palestino.
Ou seja, o sionismo da esquerda se resume a defender a existência do Estado de Israel, e o direito do povo judeu a um lar nacional soberano, tal como, desde o início, pretendia o movimento sionista. Ele não sustenta, e jamais sustentará, a ideia de que este direito extrapole os limites territoriais traçados originariamente. É, portanto, e será sempre, contrário à ocupação de todo e qualquer pedaço de terra que se localize além de tais limites.
A combinação desses três elementos gerou um quarto, que eu resolvi denominar como esquerda bitolada. São todos aqueles esquerdistas que abriram mão do mais básico dentre todos os atributos característicos de quem é progressista: o de pensar criticamente.
É que existem sionistas para preencher todos os campos do espectro ideológico. A única coisa que o sionista de centro ou de direita possui em comum com o sionista de esquerda é que todos defendem a existência de Israel. E só. Todo o resto é divergência. Como já se viu, e por incrível que possa parecer a contradição, há até mesmo judeu sionista que se posiciona com a extrema direita fascista!
Não precisamos ir longe: há judeus brasileiros que apoiaram e ainda apoiam Bolsonaro, não há? Então!
O pecado da esquerda bitolada é colocar todo e qualquer sionista debaixo do mesmo guarda-chuva. De novo: ser sionista é apenas e exclusivamente defender o direito do povo judeu a um lar nacional. A partir daí, é necessária uma qualificação específica para cada um. Há sionista para condenar energicamente a política israelense em relação ao conflito com os palestinos, assim como há sionista para apoiá-la incondicionalmente. E há sionista em todos os pontos que ficam no meio entre essas duas posições.
Mas, para os bitolados, é tudo igual. Ser sionista implica em apoiar as ocupações ilegais, o apartheid, a violência, a intransigência, a intolerância e o ódio.
Com isso, colocam os sionistas de esquerda em um limbo não apenas equivocado como, pior, contraproducente. A invés de tê-los como os preciosos aliados que de fato são, praticam em relação a eles uma discriminação tão odiosa quanto estúpida.
Sabe-se que a raiz do preconceito é a generalização. Ou seja, entender que qualquer grupo de pessoas possui pensamento, comportamento ou caráter uniforme, e então classificar automaticamente todos os integrantes desse grupo dentro de tal compartimento [1].
“O negro é isso”; “o nordestino é aquilo”; “a mulher é inferior”; o judeu é sovina”; “o gay é doente” são algumas das manifestações desse conceito. É exatamente aí que se encaixa a expressão “o sionista é favorável à opressão dos palestinos”.
Os limites entre antissionismo (entendido como crítica à política israelense) e antissemitismo são tênues e difusos. Mas existem.
Você ser contrário às práticas perversas do governo do Estado de Israel em relação ao povo palestino é perfeitamente legítimo, porque se trata de uma posição política.
Contudo, você ignorar que é possível ostentar esta posição mesmo sendo judeu e sionista, é preconceito. E o nome dele é antissemitismo.
Nesta forma, ele difere daquele outro, verificado ao redor do mundo desde antes da criação de Israel. Mas possui a mesma genealogia, e não é nem um pouco menos detestável e/ou deletério.
E é aí, então, que, finalmente, entra o site 247. Ufa!
José Reinaldo Carvalho é um comunista ortodoxo, daqueles estr(e)itamente dogmáticos. Remanescente do velho PCdoB ferrenhamente stalinista, Reinaldo morou e trabalhou na Albânia durante o governo de Enver Hodja, de quem é admirador e era amigo pessoal. Para quem não lembra – ou não sabe –, sob Hodja a Albânia foi o único país comunista do mundo que permaneceu fiel ao sanguinário ditador soviético após a revelação de seus terríveis crimes. Na teoria e também na prática. Quer saber mais? Dê um google. É de arrepiar!
José Reinaldo é o atual editor internacional do 247. Semanas atrás, a pretexto de celebrar o “Dia da Terra Palestina”, afirmou, em programa televisionado do canal, que “os sionistas” brasileiros se infiltram nas organizações de esquerda a fim de, ali, sabotar tanto o movimento palestino em busca de seu direito inalienável, quanto o de solidariedade ao mesmo.
A rigor, tal posição é previsível. De estranhar, partindo de alguém ideologicamente bitolado como o comentarista, seria o contrário. Nuances nunca foram o forte de nenhum stalinista empedernido.
Nem por isso, contudo, o pronunciamento deixa de ser gravíssimo. A par de odiosamente preconceituosa e racista, a acusação é tosca, grotesca, mentirosa e, sobretudo, insultuosa. Incorre de maneira escancarada em todos os crimes acima elencados.
Mas isso nem é o pior. De certo modo, e como já explicado, José Reinaldo Carvalho pode ser considerado quase um inimputável, dadas as limitações impostas pelo reflexo condicionado de que sofre, juntamente com seus pares ideológicos.
O pior é o comportamento autoritário subsequente, da direção do site que o abriga, e que, paradoxalmente, se diz plural e democrático.
Como não poderia deixar de ser, o episódio mencionado gerou forte e enérgica reação, com destaque especial para denúncia pública formulada contra o citado editor pelo coletivo “Judias e Judeus Sionistas de Esquerda”, do qual faz parte o jornalista Milton Blay, então colunista fixo do 247.
Este último, ao invés de examinar o tema à luz do contraditório aberto, e, no mínimo, instaurar um debate, como seria coerente com o que o veículo se reivindica, simplesmente demitiu Blay dos seus quadros, sumariamente, sem qualquer explicação ou justificativa.
E, a não bastar, afundou-se ainda mais em suas próprias arbitrariedade e parcialidade, ao chamar, para comentar o assunto, ninguém menos do que Breno Altman. Para quem não sabe, Breno é judeu, comunista e – surpresa! – também ferrenhamente stalinista. Possui histórico até familiar de militância radicalmente antissionista. Este último predicado, em si, nada tem de condenável, até porque é uma posição política não apenas legítima como até bastante comum.
Mas a outra posição, essa é determinante. Ao chamar Altman, Leonardo Attuch manipulou seus ouvintes duplamente. Em primeiro lugar, porque era um jogo de cartas marcadas. Attuch sabia, previamente, qual partido seu convidado tomaria na querela. Sendo camarada ideológico de Reinaldo, e adversário do sionismo adotado por seus oponentes, não era mistério algum o teor do que diria.
E em segundo, por tal convidado ser judeu. A mensagem, de um teor de má-fé altíssimo, é clara. Endossado por um militante da própria etnia dos acusadores, o delinquente virtual faz pose de imparcial e probo, quando, em verdade, é exatamente o contrário.
Quanto a Breno Altman, prestou-se de bom grado ao papel patético que a ele se solicitou. Formulou raciocínios claramente sofísticos e, pior que tudo, utilizou um método criado por ninguém menos do que o nazista Joseph Goebbels. Acusou os oponentes de Reinaldo exatamente do que ele próprio, Altman, estava a fazer. Disse que eles se refugiam em uma generalização típica do sionista: quando se lhe aponta qualquer erro, imediatamente assaca contra quem o faz a pecha de antissemita.
Na verdade, não é isso o que fez o coletivo sionista. Mostrou com argumentos lógicos e articulados a raiz racista do pronunciamento de José Reinaldo; apontou, de forma clara e fundamentada, a diferença entre o conteúdo do mesmo, preconceituoso porque generalizador, e uma posição contrária ao expansionismo e à violência praticados pelo Estado de Israel sob o domínio de extremistas de direita, com o apoio de sionistas da mesma tendência.
Altman ignorou solenemente tudo isso. Não rebateu um único argumento. Não abordou um único fato. Pior, tampouco forneceu, de seu lado, uma única linha que sustentasse sua afirmativa. Pelo contrário. Limitou-se a dizer, sem oferecer qualquer fundamentação, que “sionista de esquerda é algo tão impossível quanto um boi voador”. Com isso, enveredou pelo mesmo caminho de seu correligionário e protegido: englobou todos “os sionistas” em um mesmo rótulo e, assim, cometeu, ele sim, o pecado de que acusou seus oponentes: basta que se aponte um comportamento antissemita, mesmo que se o faça com argumentos irrefutáveis, e lá vêm os antissionistas recorrer ao surrado, fácil e imbecil argumento generalizador.
[1] Devo essa noção a Tânia Maria Baibich, pesquisadora e professora do tema, reconhecida internacionalmente.