Mês que vem completo 70 anos. Vivi todo o período da ditadura militar brasileira. Em 1964, quando ela começou, eu estava na pré-adolescência, e pouco compreendi do que ocorria. Mas dois anos depois já estava na rua, combatendo-a. Fiz isso de muitas maneiras, com variados graus de consciência e informação, e em diversos graus de intensidade, durante todo o tempo em que ela durou.

Seu fim coincidiu com o nascimento de meu filho caçula, a quem dei, em hebraico, o nome equivalente a “amanhecer”.

Minha militância – que permanece até hoje, e na mesma direção ideológica – não incluiu, sequer em cogitação, pegar em armas. A uma porque pouca luta armada se deu no Paraná, onde sempre atuei. E a duas porque, desde que pude refletir a respeito, alinhei-me entre aqueles que a consideravam equivocada.

Não me entendam mal. Não houve, jamais, qualquer tipo de avaliação moral. Naquela época eu me considerava um revolucionário, e como tal, jamais descartei, em teoria, a violência revolucionária como instrumento de luta pelo fim da opressão. O julgamento era, e sempre foi, político. Ou seja, relativo à adequação e eficácia dessa ferramenta dentro da conjuntura real na qual se situava concretamente nossa luta. Nós a julgávamos, naquele tempo e contexto, inadequada e ineficaz.

Ontem, após dois anos, voltei a uma sala de cinema. Fui assistir “Marighella”.

Tive três camadas de reação, todas muito fortes.

Não restou em meu corpo um único pelo em repouso. Senti-me dentro do filme. Sou parte –pequena, talvez insignificante mesmo, mas ainda assim, parte – daquela história. Vivi aquele tempo, debati aqueles temas no calor dos próprios momentos. Ainda que em outra trincheira, travei o mesmo combate, e, o que é mais importante, do mesmo lado em que estavam os personagens da obra.

Carlos Marighella foi, sem dúvida, um herói do Brasil, e a História já está lhe fazendo a merecida justiça. Como ele, foram heróis todos aqueles brasileiros que colocaram a própria vida na linha de tiro, em defesa da liberdade e contra a tirania. Admiro-os a todos, e a cada um.

Ao nível da emoção, portanto, “Marighella” foi uma redenção catártica.  Saí do cinema impactado, abalado e, principalmente, consolado. Convencido de ter estado sempre no lado certo da História.

Em segundo lugar, o filme como tal. Cinema no estado da arte. Não sou técnico no assunto, mas, como espectador experiente e exigente, fui excepcionalmente bem servido. Já li o livro que baseou o roteiro, e entendo que um está à altura do outro. É uma obra audiovisual belíssima, em forma e conteúdo. Cada detalhe se sobressai.

Acho relevante destacar, nesta parte, dois deles. Refiro-me à pertinência, a meu ver, de duas peculiaridades do filme que ouso classificar como licenças poéticas. Marighella não era negro, mas mulato, filho de pai italiano de pele branca, e mãe negra, filha de escravos. Se, porém, sua pele era clara e seus traços amplamente caucasianos, o fato é que, como bem frisou sua neta Maria Marighella (que é branca), preta era a cor de sua luta!

Por isso, a escalação de um negro retinto para representá-lo na telona não poderia ter sido mais feliz, não apenas do ponto de vista artístico (Seu Jorge, aliás, está soberbo no papel), mas também do simbólico.

A segunda licença poética está no antagonista. O policial Lúcio (Bruno Gagliasso, igualmente magistral) na verdade se chamava Sérgio. Por que a mudança? Não sei, mas minha opinião é a de que Wagner Moura, o diretor, não quis dar ibope para um dos mais execráveis brasileiros que já viveu. Se é assim, acertou também.

Por fim a terceira camada, a histórica. Nela, minha identificação fica com Jorge Sales, o do Partidão, personagem de Herson Capri, outro destaque.

A primeira cena dele com Marighella me representa por completo. A luta armada, naquele contexto, era não apenas uma aventura, mas uma aventura suicida. A realidade é a medida da razão. E a História é a juíza dos juízes.

São inúmeros os exemplos. Se a revolução cubana tivesse fracassado, Fidel e Che não passariam de vilões. Outros que tentaram o mesmo, mas sem sucesso, terminaram como notas de rodapé históricas.

É impossível prever quem vai ganhar ou perder. Mas a vida é implacável. Quem aposta e ganha, se consagra. Quem perde, paga caro. Um ótimo exemplo é a campanha de Galípoli, na Primeira Guerra Mundial, que só não custou a carreira política de Winston Churchill porque ele era realmente um gigante, e ainda porque, em 1940, ficou no centro de uma combinação anormal e extraordinária de fatores. Mas na ocasião viu-se frente a frente com o opróbio.

No Brasil de 1968 havia abundantes indícios, todos calcados em análises abalizadas e desapaixonadas, de que a aposta na resistência armada era um erro. Tanto que muitos guerreiros incontestes do povo brasileiro (como, por exemplo, Salomão Malina, herói da Segunda Guerra Mundial, Giocondo Dias, combatente na Revolução Constitucionalista, Dinarco Reis e Roberto Morena, heróis da Guerra Civil Espanhola, e tantos outros, que poderiam ser acusados de tudo, menos de covardia) se posicionaram contra essa orientação. A discussão, então, nada tinha de romântica. Era pura política.

Portanto, Marighella apostou errado. E não apenas ele. Lamarca e o PCdoB (no Araguaia), também. E outros. A realidade crua é a de que, malgrado o heroísmo pessoal, a intenção virtuosa, e, mais que tudo, o desperdício de inúmeras vidas, a resistência armada foi ampla e completamente derrotada pelo regime. O fato, duro mas real, é que fracassou. Do ponto de vista histórico, sua influência no sucesso da luta democrática foi nula. Sob um ângulo de abordagem não totalmente inválido, pode-se inclusive entender que a atrasou, ao acirrar a linha-dura militar.

Ao final, revelou-se correta a linha traçada desde o início pelo Partido que Marighella acusou de covarde. A ditadura foi posta de joelhos e derrotada pela luta política (muitas vezes traduzida no embate eleitoral, mesmo dentro dos limites arbitrários por ela impostos), travada em conjunto por todas as forças que a ela se opunham. A democracia foi conquistada através da conscientização, mobilização e organização das massas, feita com paciência de formiguinha, nas ruas, nos debates, no enfrentamento realizado dia-a-dia, todos os dias.

E a pior de todas as consequências foi que Marighella e tantos outros heróis de nosso povo não viveram para conquistá-la, desfrutá-la e, mais que tudo, melhorá-la. Quanto seríamos, hoje, um país mais civilizado, se todos eles pudessem ter contribuído com o aperfeiçoamento da nossa vida, quando a liberdade chegou? O quanto teríamos um Brasil mais próximo da justiça, fraternidade, e solidariedade, se a serviço dessas causas generosas tivessem estado corpos, almas e mentes dessas pessoas excepcionais, que nelas tanto acreditavam, e por elas pereceram inutilmente?

Infelizmente, não sabemos. E não saberemos. Mas que fizeram – e fazem – falta, isso não se discute.