Depois de uma longa espera sozinho na arquibancada, uma voz grave e formal surgiu nos alto-falantes anunciando as bandas e o patrocinador do evento. Depois disso, apagaram as luzes e o estádio ficou parecendo uma caverna gigante cheia de morcegos por causa dos milhares de assobios. Alguns segundos mais tarde, o palco se acendeu e o Weather Report começou tocando Birdland, uma de nossas favoritas, com a lenda viva, Jaco Pastorius, fazendo o solo inicial.

Aquele momento pareceu seguro para acender a preciosidade. Duas garotas bonitas que estavam sentadas ao meu lado pediram um “pega”. Não recusei e o espetáculo começou a parecer promissor. 

Na metade da segunda música, em êxtase harmônico, notei o policial de uma entrada sair caminhando para falar com um colega na outra. Ele foi beirando a arquibancada, mas quando chegou na minha frente, começou a subir abrindo caminho pelos espectadores.

Quando vi aquilo, pensei: “Caralho! O cara está vindo me prender!!”

A única coisa que consegui fazer foi tentar me livrar do baseado com um movimento rápido de dedos. Não fui muito feliz e ele acabou se quebrando ao meio. Uma parte voou longe mas um pequeno pedaço caiu perto do meu pé. O policial chegou na hora H, pegou o flagrante, me algemou e saímos desfilando pela multidão até o lado de fora da arena. 

Na saída do anel do ginásio, nervoso, com raiva e chapado como estava, ouvi a besteira sair da minha boca como se outra pessoa estivesse falando por mim.

“Meu irmão, tu tá fodido porque esse flagrante não é nada e não tenho grana nenhuma para te dar.”

O policial ouviu mas não se deu o trabalho de responder. Ele continuou a me empurrar por um longo corredor cheio de outros guardas até que chegamos numa sala grande e iluminada. Lá, a polícia militar já detinha mais de quarenta pessoas. Logo que entramos, ele me deu um forte murro na barriga.

“Tá pensando que tu pode me comprar, seu babaca! Quero ver você dizer a mesma coisa quando vierem para te enrabar na cela!”

O estômago sempre havia sido meu ponto fraco em brigas, mas devido à adrenalina, não senti nada. Segurando o cassetete na minha cara, o policial vasculhou meus bolsos mas não encontrou nada. Porém, ele ficou com minha carteira de identidade e a entregou para seu superior.

“Sargento, peguei esse jovem fumando maconha no estádio. Também houve desacato à autoridade.”  

“Tem flagrante?”

O policial passou a mini ponta já desfeita. Era ridículamente pouco para levar alguém preso, mas os caras eram campeões em fabricar provas. Atrás de uma escrivaninha, o sargento me encarou, examinou o documento e preencheu um formulário. Depois, colocou a ponta num saquinho de plástico, grampeou junto com os papéis e me olhou de novo. 

“Sabe o que isso aqui significa? Cana!”

Engoli a seco, e não querendo dizer o mesmo tipo de besteira que tinha falado antes, respondi olhando para baixo: 

“Sim senhor.”

“Me explica o desacato, cabo. ”

“O infrator deu a entender que eu aceitaria propina para que não fosse detido.”

O sargento continuou me olhando impassível. “Bom serviço, cabo, agora volte ao seu trabalho.” 

O mulato magro, de bigode, com uma cara invocada saiu da delegacia improvisada. O sargento se voltou para mim. “Vai lá e fica com os outros, a gente só vai levar vocês depois que o show acabar.”

Com as palavras “levar vocês” ecoando na cabeça, fui me juntar aos meus novos companheiros espalhados pela sala. Conversando com outro detido, descobri que havia três tipos de pessoas lá dentro: os que tinham sido pegos pulando para a plateia, maconheiros e dois assaltantes. Era evidente quem eram; eles estavam algemados e sentados no chão junto a um grupo de policiais. De vez em quando, um se virava e lhes dava um chutão violento com as botas de couro antes de retomar à conversa como se nada tivesse acontecido. O resto de nós ficou fazendo de conta que aquilo não estava acontecendo enquanto quebrávamos a cabeça para encontrar uma saída para a situação.

Aquela era uma jurisdição diferente da Zona Sul. Mesmo que tivesse alguma grana, os policiais não estavam com cara de quem aceitariam suborno e até a sugestão poderia ser um erro grave, como já tinha percebido.

Após uma meia hora ali, um argentino magro com um cavanhaque desgrenhado começou a puxar conversa com um novo sargento que tinha vindo render o que tinha me colocado ali.

“Sargiento, con todo o respecto, o señor acha corecto que yo tenga vindo desde Argentina para ver un show de música e me quedar preso en otro país por una cosa tán banal?”

Apreensivos pela integridade física do argentino, ficamos surpresos não só porque o sargento, um sujeito grisalho, mas em forma, respondesse educadamente, mas com inteligência. “Meu caro, eu tenho um filho da tua idade. Acredito que ele não fume maconha, mas espero que se saia tão inteligente e educado como você. Para falar a verdade, acharia errado ele estragar o seu futuro por causa de uma decisão errada. Mas veja bem, a gente não pode fazer uma exceção. A lei vale para todos. Se a gente deixar vocês irem, o mesmo vai ter que valer para um monte de marginais.”

“Mas e se o señor descobrisse que su filho fosse un alcoólatra, piensaria diferente?”

“Boa pergunta, mas uma coisa não tem nada a ver com a outra. Beber álcool, por pior que seja, não é contra a lei. Mas para te responder, tentaria entender o que levou meu filho a ficar assim e quem sabe o levaria a uma clínica. Mas entendo o que você quis dizer. Não posso comentar sobre a lei porque não sou eu que a fiz. Mas acho que a gente gasta recursos demais para reprimir jovens como vocês. Isso acaba muitas atitudes erradas dentro da corporação.” Quase não dava para acreditar no que a gente estava ouvindo.

Uma roda tinha se juntado em torno do sargento gente fina. Um brasileiro que parecia da Zona Sul se meteu na conversa, talvez precipitadamente. 

“Então o senhor acha certo prenderem a gente?”

“Filho, veja bem, você conhece a lei em torno da cannabis?” O cara balançou a cabeça dizendo que sim. “Então me diz aí, o que diz a lei?”

O cara, meio pego de surpresa e meio sem jeito, teve que responder. “Ela diz, por razões incomprovadas e erradas, que fumar maconha é um crime.”

“Viu!? Você disse tudo sem eu precisar explicar. Vocês cometeram um crime, independentemente dos estudos e mesmo da verdade. O nosso dever é reprimir o crime e é por isto que vocês estão aqui. Quem resolve não cumprir a lei tem que arcar com as consequências, você não acha?”

O argentino respondeu. “E se a lei está errada, como vamos a cambiar esto?”

“Se ela está errada ou não, não é da minha nem da tua alçada, a lei está aí para ser cumprida.” Ele deu um sorriso inteligente. “Já imaginou se todo mundo resolvesse desrespeitar a lei e os prejudicados fossem vocês? Para onde vocês iam correr? Para a polícia! Estamos aqui para isso, para fazer a lei ser cumprida.”

A discussão continuou. Ele aceitou os argumentos de que os cigarros também eram tóxicos – talvez muito mais – porém circulavam livremente porque traziam milhões a seus fabricantes. O mesmo valia para bebidas alcoólicas. No entanto, os argumentos dele sempre voltavam à ladainha de que conhecíamos a lei perfeitamente bem e que nosso dever era respeitá-la. Chegou uma hora que até o argentino, certamente preocupado em se safar de ser preso em um país estrangeiro, percebeu que ganhar o argumento levaria a nada. O importante era manter a sua simpatia para sair dali o mais rápido possível.

Enquanto isso, podíamos ouvir o som abafado do show do outro lado da parede. Depois de algumas horas, os aplausos e o barulho pararam e o clima dentro da sala se tornou apreensivo. Um oficial de patente mais alta chegou e se sentou atrás da escrivaninha enquanto o sargento nosso amigo saiu. Depois de alguns minutos tensos, sem sequer olhar para nós, ele se virou para o seu assistente.

“Cabo, os infratores que foram pegos pulando para as cadeiras especiais podem ir para casa, o resto vai passar a noite na décima terceira.”

Meu coração chegou a parar. Já podia ver os policiais ligando para que meus pais fossem me tirar da cadeia e fiquei imaginando a sua decepção deles e as medidas draconianas. Depois que saíram, os que ficaram para trás sentaram no chão deprimidos, esperando o pior. 

Depois de uma silenciosa meia hora que pareceu uma noite inteira, o oficial chamou seu assistente e também sem olhar para ninguém, falou. 

“Cabo, pode dizer para essa cambada de maconheiro veado que eles podem ir para casa também.”

A gente não acreditou nem pensou duas vezes. Nos levantamos e fomos em direção à saída. Um dos policiais que estava dando bico nos ladrões, um baixinho metido a piadista, abriu a porta para a gente e falou: “Bonecas, é melhor sair batido antes que o capitão mude de ideia. ”

O capitão virou para os ladrões já cheios de hematomas. “Esses aí ficam, pode chamar a viatura.”

Quando cheguei no ponto de ônibus, me lembrei da carteira de identidade. Procurei nos bolsos e ela não estava lá. Entrei em pânico. “Seu imbecil!! Como é que você deixa a porra da carteira com a polícia!?” 

Embora fosse estupidez demais para ser verdade, tive que voltar. Depois de perguntar um monte e passar por centenas de policiais, cães, carros e caminhões de transporte, finalmente achei a sala onde tinha ficado. Me sentindo um retardado, fui forçado a explicar a situação constrangedora.

O guarda que estava ali ouviu incrédulo. “Tem certeza, playboy? A gente nunca fica com os documentos.”

“A carteira não está comigo, a única possibilidade é que ela tenha ficado aqui.”

Meio sem paciência ele perguntou: “Você pelo menos se lembra do nome do oficial de plantão?”

“Acho que ouvi alguém chamando ele de Teixeira, mas não tenho certeza.”

“Ah, o Capitão Teixeira! Não sei se ele já foi, deixa eu ver se acho.”

Fiquei esperando na sala vazia por mais uns quinze minutos com um mistura de apreensão e de auto-aversão. Acabou que tinha lembrado certo. O capitão Teixeira, um cara grande, bronzeado, de cabelo raspado e com cara de traficante colombiano, entrou na sala e fez questão de me olhar de em cima a baixo com desprezo.

“Então, jovem, esqueceu a carteira de identidade aqui?”

“É, desculpa o incômodo.”

O capitão ignorou o comentário. “Não me lembro de ter deixado nenhuma carteira identidade aqui. Deixa eu ver.” Ele pegou uma chave e abriu a gaveta. “É, não tem nada aqui dentro e a gente não levou nada. Tem certeza que não está no teu bolso? Procurou direito?”

“Procurei, não está lá.”

“Procura de novo para eu ver.” O cara falou com uma autoridade que não dava para dizer não.

Procurei de novo e não é que a carteira estava lá! 

“Achou?”

Envergonhado, tive que admitir o óbvio. “É, está aqui.”

O capitão não achou graça nem ficou puto, só virou para o cabo que estava com ele e disse. “Viu porque é que eu digo que fumar maconha faz mal? Dá uns troços desses aí.” 

Ele virou para mim e pediu para cheirar meus dedos. “Não tem cheiro de nada nem deve ter flagrante, mas deixa de fumar essa merda, garotão! Isso só dá problema! Teus pais sabem?”

Eu respondi que não. Antes de me liberar ele me encarou e avisou: “Pensa bem no que eu vou te dizer. Dessa vez a gente só não levou vocês porque tinha gente demais. Na próxima, talvez você não tenha tanta sorte.”

voltar