A lenda grega de Narciso conta que ele era um jovem de singular beleza, filho do deus-rio Cefiso e da ninfa Liríope. No dia de seu nascimento, o adivinho Tirésias vaticinou que Narciso teria vida longa desde que jamais contemplasse a própria figura. Indiferente aos sentimentos alheios, Narciso desprezou o amor da ninfa Eco e seu egoísmo provocou o castigo dos deuses. Ao observar o reflexo de seu rosto nas águas de uma fonte, apaixonou-se pela própria imagem e ficou a contemplá-la até consumir-se. Na psiquiatria e particularmente na psicanálise, o termo narcisismo designa a condição mórbida do indivíduo que tem interesse exagerado pelo próprio corpo.
O auto-ódio é uma explicação para atitudes de indivíduos que passam a negar sua própria existência odiando a tudo e a todos que se relacionem com a sua origem. Arthur Koestler, escreveu: “O auto-ódio é o patriotismo dos judeus”. Muitos chamam de auto-ódio os judeus que perseguem outros judeus, ou seja, judeus anti-semitas.
Ultimamente tenho lido diversos artigos sobre anti-semitismo. Eu mesmo já escrevi alguns sobre o tema. Neles existe uma diferença básica. Enquanto eu atribuo o anti-semitismo ao preconceito contra o povo judeu, muito diferente das atitudes contra a política do Estado de Israel, outros autores não fazem nenhuma distinção entre o anti-semitismo e o anti-israelismo *(1). Por esta razão, tendem a chamar os judeus que criticam a política de terrorismo de estado praticado por Sharon, como atitudes anti-semitas e vindas de judeus, como sendo auto-ódio.
Esta visão maniqueísta cujo propósito não é outro senão desqualificar opiniões divergentes poderia então estar associada à Síndrome de Narciso. Para estas pessoas o Estado de Israel é belo e único. Nada do que faça está equivocado. A morte de israelenses em atentados é terrorismo, mas a morte de civis palestinos são efeitos colaterais. Isto por que não admitem como Narciso, que possa haver algo errado com a perfeição que seria o Estado de Israel.
Existem fatos sobre os quais não existe muito como divergir. Israel é o lar nacional do povo judeu, o próprio Arafat em entrevista recente ao Jornal Israelense Ha’Aretz, reconhece isso quando diz que não se pode pensar em alterar o caráter judaico do país, numa referência a solução para os refugiados palestinos. Partindo-se deste pressuposto podemos diferenciar entre aqueles que criticam a postura do governo israelense frente ao conflito com os palestinos e aqueles que atacam a existência do Estado de Israel. Mesmo assim é preciso cuidado ao se taxar de anti-semitas todos aqueles que não aceitam a existência de Israel. O que seriam, por exemplo, os Naturei Karta *(2)?
O que está acontecendo nos últimos meses é uma tentativa equivocada e desesperadora do governo de Israel e seus simpatizantes, de colocar sob a mesma pecha de anti-semita toda ação ou atitude que não vá de encontro a sua política belicista. Tentam fazer com que os atos anti-semitas que nunca deixaram de ocorrer na Europa, por exemplo, sejam vinculados a declarações antiisraelenses. Desta forma os que criticam a construção do muro que ocupa terras palestinas são tão anti-semitas como aqueles que profanam um cemitério judaico na França, ou atacam uma sinagoga na Rússia.
Sempre é bom lembrar que os membros do atual partido no poder em Israel se negaram a assinar a Declaração de Independência que falava em “estendemos nossa mão a todos os estados vizinhos e seus povos numa oferta de paz e boa vizinhança, e apelamos a eles para o estabelecimento de laços de cooperação e ajuda mútua com o soberano povo judeu, estabelecido em sua própria terra. O Estado de Israel está preparado para fazer a sua parte em um esforço comum para o desenvolvimento de todo o Oriente Médio” *(3).
A política de detratar e desqualificar o oponente colocando-o como uma pessoa desprezível a qual não se deve dar ouvidos não é nova. A finalidade é sempre a mesma: não leiam o não dêem ouvidos ao que ele diz por que ele sendo alguém que nos odeia, não merece crédito. Sendo ele um de nós, muito pior, ele se auto-odeia e por isso é ainda mais execrável do que os outros.
Felizmente a maior parte dos críticos a política de Sharon, judeus e não judeus, não se deixam abalar por estas tratativas fascistas. A maioria de nós defende incondicionalmente o Estado de Israel ao mesmo tempo em que aponta a solução de dois estados para dois povos como uma forma de solucionar o conflito e acabar com a barbárie e a carnificina. Alguns como eu, são israelenses que sonham com um Lar Nacional Sionista Socialista onde a solidariedade vença as diferenças e a reconciliação apague da memória os anos de guerras e desavenças trazendo paz e prosperidade para toda a região.
Narciso morreu auto contemplando-se e vendo em si somente beleza e perfeição. Felizmente o Estado de Israel não é somente belo e perfeito. Temos muitos defeitos e muito que fazer para corrigir nossos erros. Para que isso ocorra precisamos solucionar o conflito com o povo palestino, que como nós também terá de aprender com os seus erros. A paz e a reconciliação é o único caminho. Dois estados para dois povos é o único meio.
*(1) Anti-israelismo: neste caso ataques à política do atual governo de Israel.
*(2) Naturei Karta: seita religiosa ultra-ortodoxa judaica que não aceita o Estado de Israel.
*(3) Declaração de Independência do Estado de Israel: http://taglit.online.com.br/independence.html