por Richard Klein | 6 jun, 2020 | Comportamento, Crônica
Capítulo 08
“Caminhando contra o vento
Sem lenço e sem documento…”
Caetano Veloso – Alegria, Alegria
Célia era a amiga bonita e magricela do andar de baixo. Foi ela que tinha chamado a Sarah para ver a copa do mundo na sua casa. As duas eram coladas. Um dia entrou como um foguete no apartamento.
“Sarah! Sarah!” Quando minha irmã apareceu, ela precisou retomar o fôlego. “Sarah! Minha mãe acabou de dar de presente de aniversário dois ingressos para o Festival Internacional da Canção, você quer vir comigo?!!”
As duas comemoraram animadíssimas, mas logo Sarah se lembrou.
“Vou ter que perguntar para minha mãe.”
Acompanhando a conversa do quarto, pensei a mesma coisa na mesma hora; a dona Renée não ia liberar essa nem a pau. Sem motivo para inveja, me fingindo de morto, fiquei ouvindo as duas fazerem planos para convencê-la.
Quando minha mãe chegou, não deu outra.
“Você no Maracanãzinho à noite?! Nem pensar, é muito perigoso!”
Os festivais aconteciam no Maracanãzinho, o irmão menor do Maracanã, uma arena ao lado do estádio para eventos não futebolísticos.
“Mas mãe, o Maracanãzinho fica do lado de uma universidade e de um hospital! A gente vai de carro com os dois irmãos dela, qual o problema?”
“Todo mundo sabe que aquela área é cheia bêbados e de assaltantes! Aqueles dois franguinhos não vão conseguir defender vocês de nada! E imagina se você se perder no meio daquela gentalha?! Nem pensar! Você não vai e acabou!”
Sarah não se deu por vencida. “Mãe, pode ser que seja assim quando tem jogos de futebol no Maracanã, mas no dia do festival só vai ter gente de nível da Zona Sul. Não vai ter perigo nenhum! Por favor mãe, me deixa ir!”
“Para que? Para assistir músicos de segunda categoria fazendo um barulho ensurdecedor e tocando canções horríveis para um monte de comunistas emaconhados?” Dona Renée fez um gesto dramático e decretou “Você não vai e pronto!” Daí ela foi para a cozinha dar ordens à empregada.
Mais tarde, precisou a mãe da Célia subir para implorar que a dona Renée mudasse de ideia. Dona Dindinha garantiu que seus filhos – um estudando para ser médico e outro estudando para ser padre – conheciam bem o lugar e que a Sarah estaria segura com eles. Afinal ela estava deixando sua filha na mão deles. Além disso, o presente era muito especial para a Célia, que ia ficar de coração partido se fosse sem a melhor amiga no dia do seu aniversário. Os argumentos adultos e o fato de que sua família era dona do nosso apartamento fizeram Renée conceder. Ela disse que ia falar com o marido quando voltasse do trabalho. Ao ouvir essas palavras eu já sabia qual seria o resultado.
Durante o jantar, as duas explicaram o que tinha acontecido e, apesar dos argumentos contrários da minha mãe, meu pai liberou na hora.
“Qual o problema da Sarah ir para o Festival com a Célia e os irmãos dela? Ela adora este tipo de música e os dois são ótimos rapazes.”
*
Em uma época sem Internet, – e mesmo sem gravadores de fitas-cassete – a única opção para ouvir nossas músicas preferidas era ou comprar discos caros ou torcer para que tocassem no rádio. A oportunidade do convite da Célia era imperdível. Os melhores artistas do país e outras atrações internacionais estariam se apresentando naquela noite e o evento seria transmitido em horário nobre para o país inteiro.
Para piorar as coisas para mim, mais ligado em música que minha irmã, não tínhamos televisão em casa. Havia a possibilidade remota de assistir o festival na casa do Paulo mas, como meus pais, ele não se interessava em música brasileira. Não ia acontecer. Tive que aceitar que não assistiria o evento do qual todo mundo estaria falando. Meu único consolo era que aquela elas estavam indo para a semifinal; a final seria no próximo fim de semana.
Aquelas competições faziam as manchetes dos jornais no país inteiro e as canções concorrentes tocavam direto no rádio. Conforme a final ia se aproximando todo mundo já tinha escolhido sua preferida. Apesar de serem organizadas por gravadoras promovendo seus artistas e por estações de TV vendendo o espaço publicitário, eram vistas como eventos culturais da maior importância. Tinham até significância política já que, embora não os patrocinasse, o regime as encorajava como uma maneira de unir a nação em torno de uma celebração da música brasileira. Além disso, por tolerar a presença de artistas com mensagens de oposição, eram uma maneira dos generais provarem à população que, embora não permitissem que escolhesse seu próprio governo, não tinham nada contra a liberdade de expressão.
Os artistas subiam ao palco representando todos os segmentos da sociedade. A esquerda intelectual tinha Chico Buarque; os puristas da bossa nova, Tom Jobim e Nara Leão; os roqueiros e os psicodélicos, Os Mutantes; os afrodescendentes, Toni Tornado; a militância estudantil, Geraldo Vandré; a juventude despolitizada, Wanderléa e outros representantes da Jovem Guarda; os tropicalistas tinham Gilberto Gil e Caetano Veloso; os amantes da música tradicional e o povão, Jair Rodrigues e Paulinho da Viola; e ainda tinha Jorge Ben, que agradava a todos.
As revelações daqueles eventos não só encheriam os cofres das gravadoras mas também dariam origem – ou pelo menos influenciariam – a tudo o que viria depois em termos de música popular brasileira.
Acima de tudo, devido ao momento político, esses festivais se tornaram o único canal com alguma possibilidade de se debater a realidade no país, mesmo que de forma indireta.
“Para Dizer Que Não Falei de Flores” do Geraldo Vandré, por exemplo, se tornaria o hino da resistência à ditadura.
Havia ecos de Cuba quando o estádio se juntava para cantar.
“Há soldados armados
Amados ou não
Quase todos perdidos
De armas na mão
Nos quartéis lhes ensinam
Uma antiga lição
De morrer pela pátria
E viver sem razão”
Por outro lado, havia a turma hippie, interessada em liberdade individual. Seu carro chefe eram Os Mutantes como com a canção 2001.
“Astronauta libertado
Minha vida me ultrapassa
Em qualquer rota que eu faça
Dei um grito no escuro
Sou parceiro do futuro
Na reluzente galáxia”
Essas duas correntes antagônicas competiam lado a lado com canções de amor melosas e sambas engraçados.
*
A polêmica acirrada entre os defensores da liberdade individual radical e a militância política que esquentava os festivais, ia muito além dos palcos. Esse embate também acontecia – não só no Brasil – nas artes, no cinema, no teatro e na literatura. O movimento da Tropicália emergiu desse emaranhado tentando englobar os dois lados e tudo mais que pudesse. Seus expoentes seguiam a máxima do artista plástico Andy Warhol e de outras estrelas da vanguarda internacional de que “tudo é pop”.
Misturando rock com música brasileira e psicodelia com revolução, a música/manifesto Tropicália de Caetano Veloso deixava a plateia atônita, sem saber se vaiava ou se aplaudia.
“Eu organizo o movimento
Eu oriento o Carnaval
Eu inauguro o monumento no planalto central”
Sob as asas acolhedoras dos tropicalistas havia a simpatia pela revolução cubana, o amor pelos Beatles, uma procura por raízes brasileiras, sem esquecer, é claro, de uma boa dose de sagacidade comercial. Embora comumente associada à música de Caetano Veloso, Gilberto Gil e Os Mutantes, a Tropicália foi bem mais ampla. Antes de se dissipar, o movimento envolveu artistas plásticos, como Hélio Oiticica, músicos vanguardistas como Tom Zé, escritores, cineastas, filósofos e uma pletora de malucos e gênios que marcaram a cultura brasileira.
*
No começo, os militares permitiram que os artistas cantassem o que quisessem. Contudo, a dinâmica dos festivais acabou sendo diferente do planejado. Conforme as canções de liberdade e de revolução foram ganhando destaque, ficou claro que a sua presença nas salas de estar da nação em horário nobre era um contrassenso. Querendo evitar uma imagem negativa ao acabar com a festa ou excluindo as estrelas, a saída que os generais encontraram foi a censura.
As coisas foram de mal a pior com o draconiano AI-5 que tirou as liberdades civis dos brasileiros. Sem ter que responder a um poder judiciário os militares acabaram indo muito além da censura. Ignorando a possível reação da sociedade civil, puseram em marcha um processo de exílio e de aprisionamento dos artistas contrários ao regime, independentemente do seu prestígio e da sua popularidade. A consequência foi que os festivais se esvaziaram de significado e acabaram morrendo.
Alguns anos mais tarde, num gesto de reconciliação, os militares aceitaram os artistas de volta. Porém, nada seria como antes. No seu retorno, apesar de serem recebidos como heróis, haviam amadurecido no exterior. Agora, expostos diretamente ao que estava acontecendo na cenário jovem internacional, tinham preocupações mais profissionais.
Apesar da queixa de alguns críticos puristas, quem acabou ganhando com essa mudança foi o público. Suas apresentações passaram a ser individuais em teatros ou em casas de shows. Mais refinados, propiciavam uma mistura única de resquícios de resistência autêntica, status de celebridade e talento. Essa alquimia contava com o suporte de músicos e produtores de qualidade internacional. Quando Gilberto Gil, Caetano Veloso e Chico Buarque subiam no palco, era como se o mundo tivesse voltado à normalidade só que com elementos de uma realidade fantástica.
*
Quando me tornei adolescente – anos depois da minha frustração com a não ida ao festival – comecei a frequentar shows. Eram ocasiões intensas, mais parecidas com partidas de futebol ou com comícios do que com apresentações musicais. Quando os teatros abriam as portas, o público entrava às pressas como gado. Com todos acomodados, começava um clima de Maracanã; diferentes sessões da plateia vaiavam umas às outras ou se aplaudiam como se estivessem torcendo para times diferentes. O público ficava cantando bordões políticos, musiquinhas relacionadas às drogas ou ficavam sacaneando uns aos outros.
“Que beleza…
A maconha que vem lá do Ceará!
O lêlê! O lálá!
Enrola na seda,
acende pra fumar! ”
“A turma lá da frente é bicha!” Os da frente se levantavam e respondiam com vaias.
Quando as luzes se apagavam, a sala caía em silêncio e a magia começava. Nos melhores shows, era como estivessemos na sala de estar dos artistas. As músicas mais calmas proporcionavam uma comunhão tão forte que nunca senti nada parecido, nem antes e nem depois. Artistas mais carismáticos como Gilberto Gil faziam momentos de “pergunta e resposta” em que a plateia respondia entusiasmada às suas orientações musicais. As canções mais animadas – muitas vezes sucessos que tocavam no rádio e apareciam na televisão – eram sempre deixadas para o final e acabavam num Carnaval fora de época com o teatro inteiro indo à loucura, pulando nos corredores e no palco.
Paralelamente a essas festas em forma de show havia algo novo chegando de mansinho. As bandas de rock eram a expressão da geração mais nova. No contexto da época, eram o submundo do submundo. O clima dos seus shows não era de carnaval fora de época. A celebração era macabra, guiada por guitarras distorcidas e ritmos frenéticos na bateria. O público era medonho: agressivo, meio sujo, tinham cabelos mais longos do que o normal e usavam drogas que a maioria de nós nem sabia que existiam. Uma de suas principais expressões era Raul Seixas e seu letrista, o agora mundialmente famoso, Paulo Coelho.
“Quem não tem colírio usa óculos escuros!” Aconselhava uma de suas músicas.
“Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante.” Dizia outra.
Tal como Led Zeppelin, David Bowie e os Rolling Stones, seus temas; o sexo – tanto hétero como homo -, as drogas e o misticismo, eram perturbadores e anti sociais. Com essa leva vieram os Secos e Molhados. Muito a frente do seu tempo, adotavam um estilo andrógino e usavam uma maquiagem exagerada que mais tarde a banda americana Kiss copiaria. A voz lindamente feminina do seu vocalista Ney Matogrosso e seus trejeitos homoeróticos escancaravam a questão da identidade sexual nas rádios, nos palcos e nos televisores do país; isso nos idos de 1972. Esses artistas, ainda que populares com uma grande parcela dos jovens, chocavam a todos os não envolvidos. Ninguém com um posicionamento “sério” se atrevia a se identificar com eles, nem mesmo intelectuais esquerdistas “avançados”.
Esses pioneiros iniciaram tudo o que a maioria das pessoas de classe média consideraria banal nas décadas seguintes: drogas leves, vegetarianismo, interesse em filosofias orientais e a busca por um jeito zen-individualista de levar a vida. Ignorando tanto a ditadura política da direita quanto a ditadura intelectual da esquerda a galera do rock só queria saber de viver intensamente.
Quando chegou a onda da discoteca, descobriram que dar uma melhorada no visual e soltar a franga nas pistas de dança atraía sexo. Isso e a grande quantidade de fatalidades relacionadas às drogas entre os que mergulharam de cabeça naquele estilo de vida, fizeram com que a primeira geração do rock brasileiro desaparecesse com a mesma velocidade que tinha aparecido.
A passagem de bastão entre as gerações dos festivais e a do rock, marcou o fim da aura de resistência política nos shows. Eles passaram a ser simplesmente um sopro de ar fresco na claustrofobia tanto do regime quanto dos lares tradicionalistas. Com essa mudança ficou claro que esse era um clube para privilegiados. Para fazer parte da turma e participar das atividades afins – sair com a galera descolada, comprar os discos certos e viajar para destinos alternativos – você tinha que ter dinheiro e não era todo mundo que tinha acesso a esse recurso.
Desde os primeiros festivais, nunca havia representantes da classe trabalhadora nos auditórios. As massas ainda eram as domésticas que preparavam o jantar do publico antes de saírem de casa, os cobradores e motoristas dos ônibus que levavam alguns lá, os “flanelinhas” que pediam para vigiar os carros de outros e os policiais lá fora, ávidos para extorquir o seu dinheiro. Nos anos 1970, os rebeldes das classes menos privilegiadas ouviam funk e iam á suas próprias festas, como bem retratado no filme “Cidade de Deus”, um relato verdadeiro desse período da história do Rio de Janeiro.
…
Voltar
Início
por Richard Klein | 30 maio, 2020 | Brasil, Crônica, Literatura
O presidente recém eleito, Jânio Quadros, lembrava o primeiro-ministro britânico do pré-guerra, Neville Chamberlain na aparência e na bizarrice, mas compartilhava com Churchill a fama de amante da garrafa. As massas o adoravam mas, apesar de servir seus interesses, a elite o ridicularizava pelos seus trejeitos exagerados e por sua inteligência medíocre.
Quando assumiu, o ciclo de crescimento econômico iniciado pelo seu antecessor, o carismático Juscelino Kubistchek, estava dando sinais de cansaço. Depois da euforia veio a ressaca econômica e com ela o descontentamento das classes que mais tinham se beneficiado dos anos de vacas gordas: os trabalhadores e a classe média emergente.
A freada no ritmo da melhoria da qualidade de vida dos brasileiros causou uma guinada à esquerda na preferência ideológica do país. Havia uma influência cada vez maior de sindicatos e de organizações trabalhistas na vida pública. Esses novos elementos fizeram com que as elites ficassem nervosas.
Talvez Jânio não fosse o melhor presidente para lidar com a situação. Ele tentou, à sua maneira, conciliar a crescente divisão política proibindo biquínis nas praias para agradar os conservadores de direita e reconhecendo a Cuba Castrista para agradar a esquerda. Essa decisão ousada foi fatal; além de fazê-lo perder o apoio da bancada direitista, em especial da UDN, a União Democrática Nacional, responsável pela sua chegada na presidência, o gesto chamou a atenção dos Estados Unidos.
Pressionado para fazer reformas populistas de um lado e para freá-las do outro, sem apoio no congresso, em 1961, Jânio renunciou na esperança de que o país se unisse para exigir o seu retorno. Isso nunca aconteceu e seu vice-presidente João Goulart tomou posse. Jango, como era conhecido, tinha fortes ligações com movimentos sindicais e com governadores de esquerda, como Miguel Arraes em Pernambuco e Leonel Brizola no Rio Grande do Sul. Contrariando interesses poderosos tanto fora quanto dentro do Brasil, assim que assumiu, deu início a um projeto de nacionalização de setores importantes da economia, apostou na educação das camadas menos privilegiadas e contemplou políticas abrangentes para melhorar a distribuição de renda.
No pano de fundo estava a ainda muito recente Revolução Cubana. Confrontando a hegemonia dos Estados Unidos na a América Latina, o levante trouxe a Guerra Fria para o continente. Na opinião da esquerda, Cuba havia demonstrado que a região tinha a capacidade de gerir o seu próprio destino. Em contrapartida, para as potências dominantes, países governados por revolucionários rejeitando a sua tutelagem e focados em cooperação ao invés dos lucros de uma minoria eram inaceitáveis. Washington fez tudo para esmagar o exemplo, impondo um embargo comercial, ajudando exilados numa invasão fracassada e tentando assassinar seu líder. O único resultado dessa tática foi o de empurrar os cubanos cada vez mais para perto da União Soviética e essa aliança tornou uma América Latina socialista – ou mesmo comunista – uma possibilidade assustadora, porém bastante real.
Situações parecidas com a qual o governo de Jango ameaçava não eram novidade e haviam sido revertidas por golpes de estado. Os primeiros apareceram no Irã no início dos anos 1950 e no Iraque quando estes resolveram nacionalizar suas reservas de petróleo. Pouco depois, Colômbia, Venezuela, Guatemala, Síria e Nigéria entre outros países, sofreram o mesmo quando resolveram enfrentar a ordem econômica estabelecida. O que todos tinham em comum eram pactos entre elites locais e potências mundiais interessadas nas riquesas naturais dos países em questão.
No caso brasileiro, os Estados Unidos estavam determinados a manter o maior país da América do Sul “livre”. Com apoio americano, os poderosos iniciaram uma conspiração para garantir sua permanência no comando do país. Para tanto, seguiram a mesma receita que Rafael tinha presenciado na Alemanha nos anos 1930. O primeiro passo foi conquistar a opinião pública. Distorcendo a verdade e apostando nos preconceitos dos leitores, a imprensa envolvida passou a retratar uma crise profunda na economia e uma ruptura nos valores tradicionais da sociedade. Em paralelo, começaram a “denunciar” a desonestidade dos dirigentes e sua inabilidade em restaurar a ordem. Pessoas comuns passaram a acreditar na imagem contraditória de uma liderança ao mesmo tempo corrupta e disposta a impor uma ideologia totalitária, destruidora da propriedade privada e nociva à herança cultural e religiosa do país. Os “cidadãos de bem”; sensatos, trabalhadores e honestos passaram a ver o governo de Jango como um inimigo. Agora, precisavam de um salvador da pátria acima do sistema político viciado e corrupto demais para resolver os gravíssimos problemas. Em 1964, esse “salvador” seria o exército.
No início de Abril, tropas e tanques foram para as ruas das principais cidades do país, onde os militares “revolucionários” não encontraram qualquer resistência organizada que os desafiasse. Ainda que os líderes do “movimento” declarassem que seu objetivo fosse restaurar a democracia livrando o Brasil do comunismo, o país precisaria de mais de duas décadas para voltar à normalidade política.
Assim que tomou posse, o novo regime exilou o presidente Goulart e seus aliados, além de perseguir e prender personalidades públicas e ativistas de esquerda. Como é comum em golpes de estado, enquanto a atenção se voltava ao drama político, passaram uma legislação revertendo os direitos dos assalariados e privilegiando os interesses dos grandes grupos econômicos que patrocinaram a mudança de regime.
Apesar da indignação de intelectuais e de pessoas mais esclarecidas houve, no início, uma indiferença geral dentro da classe trabalhadora. Por outro lado, os militares encantaram a comunidade dos negócios, inclusive Rafael. Para eles, o Brasil precisava se modernizar, imitar os americanos e alcançar o seu potencial econômico: o gigante tinha que acordar. Com os militares, amigos do “mercado”, no poder e com a orientação e a simpatia do Tio Sam – que na época financiava prosperidade como uma arma para enfrentar os avanços da esquerda – haveria um final feliz onde todos iriam enriquecer.
*
Por suas mudanças terem beneficiado apenas os muito abastados, por não terem cumprido com a palavra de restaurar a democracia e pela corrupção ter aumentado em vez de ter diminuído depois do golpe, quatro anos mais tarde, em 1968, a sociedade civil brasileira se levantou em oposição ao regime.
Os protestos partiram de movimentos universitários inspirados na explosão do espírito revolucionário pelo mundo afora. Na mesma época, em pontos tão diversos como Paris, Chicago e Praga, a juventude estava tomando as ruas para reivindicar um mundo mais justo e mais livre. Embora a maioria silenciosa os considerasse sonhadores inconsequentes, as autoridades os levavam a sério. Tendo em conta o sucesso de vários movimentos revolucionários acontecendo na época, obcecados com a ameaça comunista e ouvindo ecos da Guerra Civil Espanhola, da Revolução Chinesa, da Revolução Russa e mesmo da Francesa, o complexo financeiro, industrial e militar acionou suas defesas.
No Rio de Janeiro a tensão estava borbulhando. Depois que a polícia baleou e matou um estudante, uma passeata 100 mil pessoas, incluindo artistas e intelectuais de peso, tomou conta da avenida Rio Branco no centro da cidade. Esta foi a maior manifestação contra um governo já vista no Brasil. A oposição se alastrou tão rapidamente que mesmo alguns deputados no congresso, agora tutelado pelos militares, passaram a criticar abertamente o governo.
A resposta do regime foi brutal; ignorando a constituição, publicaram o infame AI-5 – Ato Institucional Número Cinco – dissolvendo o congresso e o senado e dando total autoridade executiva e judicial ao presidente. Logo em seguida prenderam membros da oposição, líderes estudantis e jornalistas. A tortura tornou-se prática comum e quem pôde fugiu para o exílio.
Acuados, alguns estudantes passaram à clandestinidade e se juntaram às guerrilhas urbanas. Nelas, treinados em Cuba e em outros satélites soviéticos, organizaram bem-sucedidos assaltos a bancos e sequestros. Em 1969, depois do sequestro do embaixador americano no Rio e de ataques a bomba em quartéis militares, as autoridades intensificaram a repressão. Pessoas começaram a desaparecer, incluindo o filho do nosso médico de família. Por outro lado, núcleos embrionários de milícias revolucionárias partiram para o campo tentando emular a Revolução Cubana. Em uma ocasião, no começo dos anos 1970, o exército brasileiro enviou uma divisão de cerca de 10.000 soldados para capturar uns vinte jovens maoístas na remota região do rio Araguaia. As forças armadas acabariam por executar a maioria dos militantes capturados.
Esses eram tempos obscuros em que tudo era censurado: livros, peças de teatro, filmes e músicas. Os regime também controlava com rédea curta o conteúdo dos jornais e das estações de rádio e de televisão. Intuindo a tensão mas sem ter informações, as pessoas fantasiavam. Havia todo tipo de teorias circulando sobre o alcance do poder dos guerrilheiros, possíveis alianças militares com Cuba, China e União Soviética, ligas de camponeses prestes a invadir as cidades trazendo desapropriações e pelotões de fuzilamento para os ricos.
Como tudo na vida, quando a imaginação substitui a realidade nada de bom vem à tona. Nesse caso, tanto os militantes quanto seus repressores superestimaram o que minúsculos grupos de extremistas poderiam alcançar num país tão grande e tão complexo como o Brasil. Juntos, jogaram o país num período de trevas. A polícia e o exército montaram departamentos com amplos poderes para espionar a população e para coibir qualquer tipo de oposição. Entre eles estavam o SNI, o Serviço Nacional de Informações e o Destacamento de Operações Internas, DOI-Codi, em cujas dependências presos eram torturados, alguns até à morte. Também reativaram o DOPS, Departamento de Ordem Pública e Social, criado por Getúlio Vargas para esmagar seus adversários e agora utilizado para aterrorizar qualquer atividade contrária à ditadura.
*
O final dos anos 1960 foi um tempo politicamente intenso não só no Brasil, mas no mundo inteiro. Havia uma forte consciência social, revoluções, guerras e guerrilhas pela liberdade e pela igualdade e um aprofundamento da guerra fria no planeta inteiro. Paradoxalmente, este foi o período de maior prosperidade econômica que o ocidente conheceu. Essa bonanza veio acompanhada de uma redistribuição de renda inédita e uma consequente ampliação gigantesca do mercado consumidor. Foi nesse contexto que o mercado jovem nasceu. Esta leva de novos consumidores abastados, filhos da vitória contra o nazi-fascismo, sem vínculos com o passado e ávidos por novidades, sacudiriam as bases dos valores tradicionais e inaugurariam o uso de inúmeras novas tecnologias.
A efervescência daqueles tempos afetaria a todos de uma maneira ou de outra. As novas gerações se veriam obrigadas a escolher entre serem agentes das mudanças ou serem defensores da situação. Muitos se esbaldariam na explosão de drogas ilícitas e no sexo livre facilitado pelo aparecimento da pílula anticoncepcional.
No Brasil, com a impossibilidade de se resolver as coisas pela via política, a contracultura surgiria como talvez a única alternativa de se manter vivo o germe da resistência fosse através da arte ou de atitudes. O slogan que sintetizaria aquele tempo foi “Seja marginal, seja herói!” do artista plástico Hélio Oiticica.
Considerada inofensiva pela repressão por não representar nenhuma organização política, a contracultura, além de conseguir manter uma certa distância da censura, tinha atrativos comerciais. Apesar do tempero subversivo, gravadoras e outros empreendedores da área cultural não hesitaram em explorar as oportunidades oferecidas por seu forte apelo, tanto artístico quanto ideológico, junto ao lucrativo mercado jovem. Essa aliança forçada entre revolução e lucro proporcionaria uma explosão de talento que daria luz a um dos períodos culturais mais criativos e pungentes da história, tanto nacional quanto internacional.
Apesar da repressão brasileira ter sido vitoriosa em abafar uma possível reviravolta política com censura, exílio, tortura e prisão, ela não contava com um porém; as ideologias de revolução tinham se tornaram dominantes na cultura jovem do mundo “desenvolvido”. Vindas dos mesmos países que patrocinaram o golpe, elas eram parte do pacote cultural apresentado à juventude privilegiada pela ditadura. Não dava para tapar o sol com a peneira. No país inteiro, qualquer pessoa munida com um dicionário tinha acesso às vozes dos contemporâneos estrangeiros, fosse em discos, livros, em revistas ou mesmo em filmes que conseguiam driblar a censura.
Embora a América fosse a maior responsável pela derrubada da democracia brasileira, sua juventude estava na vanguarda dessa rebelião. Eles tinham sofrido o seu próprio golpe com os assassinatos mal explicados do presidente John Kennedy, do seu irmão Bob Kennedy e do reverendo Martin Luther King, todos defensores de uma América mais próxima dos ideais libertários e progressistas dos seus fundadores. Isso, junto com a possibilidade de serem mandados para a Guerra do Vietnã – um conflito que visava tão somente manter os interesses americanos na região – criou um enorme contingente de jovens inconformados.
A manifestação maior dessa onda contestatória aconteceu na música, mais especificamente o rock, que na época tinha um forte caráter revolucionário. O paradoxo de protestos nas ruas gerando uma demanda comercial por vozes subversivas, abriu espaço para ícones tais como Bob Dylan, Arlo Guthrie e Joan Baez. No Reino Unido, as superestrelas dos Beatles e dos Rolling Stones interessadas em atingir esse novo público e a dizer alguma coisa mais profunda do que canções românticas, juntaram forças com a rebelião. Ajudados por estratégias de marketing modernas e orçamentos milionários, expuseram a contestação no coração do sistema, num palco muito maior do que qualquer revolucionário de outrora jamais teria sonhado.
Talvez seja difícil de entender no cínico mundo de hoje que no auge das suas carreiras aqueles roqueiros genuinamente acreditavam que suas criações faziam parte de um movimento mais amplo para derrubar o status quo. A presença de novas tecnologias em sua música reforçou sua imagem de catalisadores de grandes mudanças. As possibilidades sonoras inéditas permitiram que o espírito revolucionário fosse espalhado nas guitarras distorcidas de gênios musicais como Jimi Hendrix, Jimi Page e David Gilmour, cujos solos forneceram uma trilha sonora – e mesmo um lado espiritual – a esse momento excepcional.
*
Essa foi a educação musical da minha geração. Eu tinha oito anos quando os Beatles se separaram; Led Zeppelin lançou Stairway to Heaven quando tinha nove; os Rolling Stones lançaram Exile on Main Street quando tinha dez e o álbum Dark Side of the Moon, do Pink Floyd, foi lançado quando tinha onze. Para alguém de origem judaica tradicional crescendo numa uma ditadura militar, esses foram mísseis aterrissando no meu toca-discos. No entanto, igual aos programas matutinos do Haroldo de Andrade que ouvia quando criança, ninguém da família, nem a maioria dos meus amigos, conseguia entender como alguém poderia gostar daquele “barulho”. Dessa vez, nem a empregada estava do meu lado.
Apesar da incompreensão, era como se um circo mágico musical tivesse parado na esquina de casa. Queria fugir com ele. Não estava sozinho nessa busca, milhões de outros jovens pelo mundo afora também estavam sintonizados nessas mudanças. Muitos acabariam mais próximos uns dos outros do que das suas próprias famílias.
Trancados no quarto, ouvindo rock, se sentindo oprimidos por nossos pais e professores, meus irmãos de geração digeriam as palavras de ordem nos seus postos avançados. A mensagem era clara: resistir aos caretas, lutar para sermos nós mesmos e subverter os planos que o sistema tinha reservado tanto para nosso futuro quanto para o futuro do planeta.
No Brasil, a repressão acabaria percebendo que havia algo no ar mas não conseguia dizer ao certo o que era, muito menos sabia como lidar com aquilo. Podiam prender um hippie por fumar maconha, um militante por suas ações ou pelos seus livros, mas não dava para acabar com a insatisfação com a pequenez do mundo. Como nossos pais, torciam para que fosse fase de adolescente e que depois nos juntassemos docilmente ao rebanho.
…
Voltar
Seguir
Início
por Mauro Nadvorny | 11 mar, 2020 | Brasil, Comportamento, Imprensa, Política
Uma das noções que desenvolvi durante o meu processo de percepção de fenômenos das mais variadas naturezas, mas em especial, nos fenômenos sociais e políticos, é que certas coisas não dão errado – ou voltam-se a uma natureza destrutiva – por acaso. Alguns fenômenos catastróficos só assim o são não pelo fortuito, pelo acaso, ou pela falha de projeto. Ao contrário, são frutos de meticuloso e vultoso planejamento.
Se examinarmos o conjunto de ataques que o sistema político brasileiro vem sofrendo desde o início do século XXI, e mais agudamente a partir das jornadas de 2013, passando pelo golpe de 2016 e culminando na eleição de Bolsonaro, não haverá que ser feito grande esforço intelectual ou analítico para se perceber que existe uma harmonia subjacente a todos esses processos. Uma gradual, crescente e contínua desconstrução do sentido das palavras, da lógica do raciocínio, dos fundamentos da informação, do conhecimento e da ciência em si mesmos.
O estado de coisas em que nos encontramos, onde um presidente do Brasil mente diária compulsivamente, atenta continuamente contra as instituições, tensiona os campos políticos a limites jamais testados desde a redemocratização do país, diante de instituições paralíticas e de um sistema jornalístico que tenta dialogar pelo meio da única linguagem que conhecem, sem entretanto obter qualquer efeito no outro lado, que claramente fala outra língua, desorganiza o pensamento, tira qualquer questão fundamental do foco, e zomba grotescamente de qualquer conquista da civilização, retrata sim uma enorme construção com fundamentos e alicerces que escapam à percepção da imensa maioria.
Há certamente poderosos jogadores por trás desse tabuleiro. Uma união que engloba Olavo de Carvalho, Rodrigo Constantino, MBL, Vem-prá-Rua, Kim Kataguiri, Fernando Holliday, Partido Novo, Janaína Paschoal, o próprio presidente e sua família, Sérgio Moro, Abraham Weintraub, entre outros, definitivamente não vem do acaso. A sustentação de uma parcela da sociedade, ainda que minoritária, mas significativa, que sustenta o bolsonarismo apartando-se da sociedade em uma espécie de apartheid voluntário e obsessivo, não se sustenta por mero acaso.
Receio que ainda não estamos instrumentalizados para examinar todo esse complexo e identificar todos os processos que foram empregados para esta construção. Obviamente tudo aponta para Steve Bannon, o grande ideólogo da extrema direita mundial. Mas simplesmente apontar o dedo para o óbvio nada resolverá se não pudermos traçar todos os caminhos desta enorme conspiração sobre a qual eu tenho poucas dúvidas da existência. E logo eu, tradicionalmente avesso a teorias conspiratórias. Mas os fatos que presenciamos no momento, especialmente caracterizados pela paralisia das instituições do estado e dos órgãos de imprensa e instituições da sociedade, incluindo partidos políticos, revelam com clareza que estamos diante de um enorme desconhecido, uma espécie de matéria escura, que no momento predomina em força e preserva-se invisível.
Enquanto não desvendarmos esta estrutura, dificilmente sairemos desse buraco.
NELSON NISENBAUM.