Os Bons, os Maus e os Outros Animais
Talvez o melhor seja começar logo por aqui, por essa ideia incômoda, difícil de engolir, mas tão verdadeira quanto qualquer susto diante do espelho: a de que a gente não é exatamente quem acha que é. O homem bom — esse que acorda cedo, leva o lixo, alimenta o cachorro, paga os boletos em dia e evita parar na vaga de deficiente — esse mesmo é capaz de arrancar a língua de outro se alguém soprar no ouvido certo as palavras “pátria”, “honra” ou “família”. E não sou eu quem inventa, é a história que grita pelos ossos deixados pra trás nos becos do mundo, ossos empilhados, embranquecidos, catalogados, às vezes até exibidos em museu, como se a gente dissesse com orgulho: olhem como fomos eficientes até na matança.
E não me venham com essa conversa simplista de separar os bons dos maus, como se o mundo fosse um teatro de bonecos em que alguns mexem os fios da maldade e outros só dançam a musiquinha da virtude. Porque, se tem uma coisa que já deu tempo de aprender, mesmo a contragosto, é que ser bom depende muito das circunstâncias — e ser cruel também. O mesmo sujeito que hoje abraça o vizinho, amanhã pode mirar nele, se o mapa mudar, se a bandeira trocar de cor ou se alguém gritar que é isso ou morrer — e nem falo da morte do corpo, mas daquela outra, a que nos arranca da tribo, que nos expulsa do grupo, e que, convenhamos, é a que mais mete medo.
Dizem que somos civilizados, modernos, que aprendemos com os erros do passado. Mas basta uma crise, um colapso no mercado, uma eleição mal digerida, um inimigo fabricado na prensa da propaganda, e lá estamos nós outra vez, com a tocha na mão e a convicção inflada no peito, prontos pra fazer justiça do nosso jeito — como se a justiça algum dia tivesse tido mãos que não fossem as nossas. E se me perguntarem onde estão os maus, eu digo: em todo lugar onde os bons acham que têm razão demais pra ouvir.
Ah, os bons. Essa turma tão cheia de certeza, tão limpinha, tão moralmente alinhada. Nunca hesitam, nunca tropeçam, nunca suam. Só apontam, denunciam, corrigem. Como se tivessem recebido um crachá de pureza e agora fossem os únicos autorizados a decidir quem merece o chão e quem merece o buraco.
E os maus? Ora, os maus são uma delícia. São úteis, funcionais. Eles explicam tudo: a decadência, a violência, a bagunça, o trânsito. Com eles, a gente dorme tranquilo — porque o mal tá sempre lá fora. Nunca dentro. Nunca na gente. Nunca no jeito que a gente ama, teme, decide ou se cala. E assim seguimos, com a consciência lavada e o sangue nas mãos dos outros.
Porque, no fundo, todo mundo está pronto. É só aparecer a causa certa. E se não aparecer, a gente inventa. Ou então pega emprestada de alguém mais convicto, mais barulhento. Não faltam bandeiras, slogans, hinos, líderes carismáticos e frases de efeito. E então o homem bom marcha, o homem bom grita, o homem bom aperta o gatilho. E quando tudo passa, ele diz que não sabia, que só cumpria ordens, que era pelo bem maior. Depois volta pra casa, dá ração pro cachorro, paga os boletos e segue se achando bom. Talvez até melhor. Mais consciente, mais patriota, mais cidadão.
E é aí que mora o perigo. Não no grito selvagem, mas no silêncio limpo. Não no monstro escancarado, mas no sujeito comum cheio de certezas. E se me pedirem um jeito de distinguir o bem do mal, eu respondo: não sei. Talvez nem tenha como. Talvez o mais sensato seja desconfiar — não do outro, mas de si mesmo. Porque quem confia demais na própria bússola moral corre sempre o risco de bater palma pro horror, desde que ele venha bem justificado.
E aqui, diante da tela acesa onde se escrevem hoje as velhas confissões do mundo, eu deixo essa dúvida como quem planta não um fruto, mas uma faísca:
se todo mundo é capaz de tudo, quem é que vai nos salvar das nossas causas?