Samba Perdido – Capítulo 24 – parte 01

Capítulo 24

 

“...  E passo aos olhos nus,
Ou vestidos de luneta
Passado, presente, particípio
Sendo o mistério do paneta”

Novos Baianos - Mistério do Planeta

 

No final do primeiro ano da faculdade, Pedro e eu já éramos melhores amigos e tidos como a malandragem da sala. Com a chegada do verão, deteminados a ser mais fortes que a tempestade, resolvemos dar uma volta pelo Nordeste. O orçamento desta vez seria muito mais curto devido às condições. Não havia feito nada de extraordinário naquele ano, os negócios estavam difíceis e, farto do meu distanciamento do “mundo real”, Rafael se recusou a financiar a viagem. Do lado do Pedro, sua mãe viúva também não tinha muito para colocar na mesa. Para tornar a coisa viável, tive que vender meu querido Blues Boy e ele teve que pegar parte do dinheiro que seu pai havia lhe deixado. Mesmo assim, pelos nossos cálculos, só teríamos o suficiente para ir de ônibus até Vitória, e a partir de lá, tentaríamos chegar o mais ao norte possível pegando carona e acampando.

Apesar do prejuízo e dos possíveis contratempos, não queríamos outra coisa. Seria uma oportunidade de viver um sonho de mochileiro hippie, além de um alívio imprescindível da crise na cidade grande.  Enquanto o ônibus atravessava a ponte Rio-Niterói rumo ao Nordeste, não via a hora de chegar naquele Brasil idílico onde poderia voltar a ser eu mesmo.

Sabendo que as coisas só esquentariam depois que chegássemos na Bahia, não íamos ficar muito tempo em Vitória. Sem pertencer ao Sul nem ao Nordeste, a cidade não era nem moderna o bastante para a gente curtir a balada, nem exótica o suficiente para ser empolgante. O plano era acampar na praia por uns dois dias e de lá começar a fase de caronas e chegar à Bahia o mais rápido possível.

Assim que chegamos por volta do meio dia, pegamos um ônibus rumo ao bairro da Praia do Canto onde achamos logo um quiosque na beira da areia para deixar nossas mochilas. Foi lá que rolou nosso primeiro contratempo. O dono da barraca, um mulato magro de cabelo parafinado vestindo uma roupa de surfista e com óculos escuros coloridos, nos explicou que existia uma lei que proibia acampar em qualquer lugar da costa da cidade.

“Tiveram uns malucos que tentaram acampar aqui há duas semanas atrás. A polícia chegou a noite, tirou eles à força e ainda ficaram com a barraca. Se vocês quiserem tentar, tentem, mas está avisado.”

“É só aqui ou em Vitória inteira?”

“É proibido acampar na orla inteira, se vocês quiserem montar a barraca com os mendigos na praça é com vocês.” O cara encerrou com um sorriso irônico, já preocupado com outros fregueses que tinham acabado de chegar.

Virei para o Pedro. “Cara, e agora? A gente vai dormir aonde?”

“Sei lá, depois a gente vê. Não estressa, estamos de férias!”

Aceitei a sugestão. Depois que os clientes foram embora, trocamos de roupa rapidamente atrás do balcão. De sunga, numa cidade estranha, com o oceano aberto em frente e o sol forte, não pensei mais no assunto. O que queríamos era curtir o dia e curar o desconforto de uma viagem de 15 horas. No final do dia, com o pôr do sol chegando, a pergunta sobre onde dormiríamos naquela noite voltou à tona.

“Aê, de repente o cara falou aquilo só para assustar, vai ver que ele não quer ninguém acampado perto do quiosque.”

“Pode crer, também achei o cara meio mané.”

“De qualquer maneira, é melhor a gente ficar esperto, se a polícia chegar e levar a barraca vai ser foda!”

“E se de repente a gente armar a barraca naquele gramado ali em cima das pedras no final da praia?”

“Cara, tu tá maluco? Se não deixam acampar aqui, tu acha que vão liberar ali num parque público?”

“Então vamos para a casa do estudante universitário de Vitória? Não coloquei na lista, mas deve ter uma.” A gente olhou para o balcão e ele já estava começando a arrumar as coisas para ir embora.

“Tá muito tarde para isso, mas dá um guenta aê, que vou pegar as coisas lá no quiosque que o cara está fechando.”

Quando voltei, o Pedro estava conversando com um sujeito alto e desengonçado que tinha acabado de sair da água com uma máscara e um arpão.

Pedro, cujo pai tinha sido mergulhador, estava falando sobre mergulho genuinamente interessado. “Lá no Rio o mar é mais claro, mas volta e meia fica sujo assim também. Quando mergulhava com meu velho a gente chegou até a ver polvo.”

“Conheço o Rio, mas nunca mergulhei lá. O mar é mais frio, né? A água aqui é mais barrenta, mas até que dá para ver uns peixes. O Luiz lá dentro pegou um polvo no ano passado, mas foi em Guarapari.”

A conversa foi interrompida quando o tal do Luiz saiu da água e tirou a máscara de mergulho para vir falar com a gente. “E aí? Beleza? Luiz.”  O cara estendeu a mão e apertamos.

Depois ficamos  sentados na praia já semivazia conversando. Me surpreendi com o conhecimento do Pedro sobre o assunto, embora desconfiado de que a metade do que estava dizendo era mentira. Nao sabia nada de mergulho e enquanto o papo continuava, voltei a ficar ansioso por não ter ideia de onde ia dormir naquela noite.

A uma certa altura o assunto finalmente mudou. “Somos de BH e estamos na casa do tio do Fernando aqui, e vocês?”

A gente explicou a situação torcendo que fosse rolar um convite. Luiz, um cara com toda pinta de soldado e com ar de mandão, virou para o Fernando.

“E aí? Não dá para eles ficarem no quarto de empregada?” Ele se voltou para nós e perguntou.  “É só por uma noite, né?”

 Nem precisou a gente se consultar, acenamos a cabeça na hora dizendo que sim. O plano era passar duas noites em Vitória, mas dadas as circunstâncias uma já bastava.

Sem entusiasmo, o Fernando pensou um pouquinho. “É verdade, tem o quarto de empregada. Olha, é apertado e quente pra caralho, mas é melhor que ficar dormindo na rua que nem vagabundo.”

A gente não estava numa posição de escolher. “Pô, obrigadão, pode deixar que é por uma noite só, a gente vai pegar a estrada amanhã.”

O Luiz levantou impaciente. “Então tá decidido, a casa é aqui pertinho. Vamo nessa? Fiquei com fome depois desse mergulho.”

O Fernando, ainda um pouco relutante levantou também. “Vamo nessa. Essas aí são as tralhas de vocês?”

Pegamos as mochilas, a barraca e a viola e saímos atrás deles. O conjugado ficava num prédio alto e antigo em uma das ruas de trás. Era apertadíssimo. Depois de nos acomodarmos e tomarmos um banho estávamos prontos para o rango. Quando o Luiz falou que não tinha nada na geladeira, entendemos que a gente devia pagar uma janta para os caras em retribuição. Só que se não tínhamos grana nem para uma refeição boa para nós dois, quanto mais para dois marmanjos a mais.

Pedro também não falou nada e ficou subentendido que não ia rolar. O clima ficou esquisito mas pegamos o que estava na geladeira e devoramos uns sanduíches de queijo. A fome não passou e resolvemos ir de ônibus para a zona boêmia de Vitória, Vila Velha.

Duros, com a barriga roncando, ficamos andando pelo passeio feito uma matilha de cães. Acabamos num lugar que parecia um parque de diversões noturno, cheio de trailers vendendo comes e bebes e tocando música a todo volume. Na confusão, alguém viu uma mesa vazia cheia de petiscos e de garrafas de cerveja intocadas. O Luiz, já chefe de nós todos, fez um sinal para a gente parar e ficar esperando.  Passamos uns dez minutos vigiando. como os donos nunca voltatam, chegamos junto e discretamente tomamos conta.

Fui direto numa garrafa de cerveja já aberta, mas cheia. Assim que o gelado desceu, ouvi uma voz masculina afeminada me chamando de atrevido. Olhei para o lado e não era o Pedro de brincadeira nem um dos outros dois, era uma bicha loura alta com purpurina cintilando nos cabelos e na barba, olhando para mim com os lábios hidratados.

Quase cuspi a cerveja fora. “Desculpa, a gente pensou que não tinha ninguém na mesa, daí…”

“Menino, essa cerveja tem dono.  Eu e minha amiga estávamos dando uma volta e deixamos as coisas aqui. Será que não dá para fazer isso numa noite de domingo!?”

“Olha, desculpa mesmo, quanto custa uma cerveja? Te pago uma nova.”

O cara não parecia incomodado. “Deixa de ser bobo, garoto, senta aí e bebe com a gente.”

Quando olhei para o lado e vi a “amiga” dele, um moreno também coberto de purpurina com maquiagem nos olhos e se derretendo para cima do Luiz, a ficha caiu: havíamos caído na armadilha da dupla. Estava claro que eles queriam muito mais que cervejas novas e nossas desculpas. De qualquer maneira, como os dois mergulhadores pareciam mais confortáveis com a situação, Pedro e eu saímos de fininho e deixamos o problema com eles.

Rindo do acontecido, resolvemos deixar de ser pão duros e fomos comprar uns hambúrgueres e uns refrigerantes numa das barracas. Depois fomos dar uma volta. Não demorou muito para a coisa começar a ficar chata. Estávamos cansados e voltamos à mesa para ver quando iríamos embora. A novidade era que os quatro haviam se tornado íntimos e voltar para o apartamento não estava mais nos planos.

A “loura” foi a porta voz da decisão. “A gente ficou muito amiga desses dois moços e vai levar eles para conhecer a minha casa. Se vocês quiserem vir com a gente será um enorme prazer.”

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Samba Perdido – Capítulo 23

Capítulo 23

 

“Meus heróis morreram de overdose
Meus inimigos estão no poder
Ideologia,
Eu quero uma pra viver.”
Cazuza – Ideologia

 

Pedro também caiu de paraquedas no curso de Economia da UFRJ. No vestibular, tinha dado a sorte de se sentar ao lado de um amigo de infância “Caxias”. Sem ter que insistir muito, o amigo deixou a sua folha de respostas a mostra e foi assim que ele entrou para o curso. Ele não era o cara típico de círculos acadêmicos. Morava fora da Zona Sul, tinha pele mais escura, cabelo enrolado e por ser da equipe de polo aquático do Fluminense, era sarado. Não demorou muito para que engatássemos numa firme amizade, comigo sendo seu passaporte para festas na Zona Sul e com ele me ajudando na cultura de rua.

Economia e Administração de Empresas, Comunicação (Jornalismo e Publicidade) e Psicologia eram as três faculdades no campus da Praia Vermelha. Nosso curso era o mais prestigioso e ficava no prédio mais suntuoso, o que abrigava o famoso Teatro de Arena. O diretório central dos estudantes era lá e usava aquele anfiteatro como palco para bandas alternativas, muitas delas excelentes, como Premeditando o Breque, Diana Pequeno, Luli e Lucinha, entre outros.

Por essas e outras, os alunos de Economia se achavam um degrau acima, acreditando lidar com questões mais difíceis e importantes. Para nós, os estudantes dos outros cursos estudavam matérias fáceis e superficiais. Em contrapartida, ainda que impuséssemos um certo respeito, eles nos viam como riquinhos nerds metidos a besta.

Pedro e eu não estávamos interessados nesses estereótipos. Em vez disso, saímos explorando o campus, fazendo amizade com os estudantes de Comunicação – eles sabiam das melhores festas – e com os de Psicologia – a grande maioria era de mulheres, muitas delas bonitas e pareciam dispostas a experimentar coisas novas.

De qualquer forma, passamos a fazer parte de uma turma universitária mais madura que possuía vida social própria. As festas que começamos a frequentar refletiam esse novo status universitário. Nelas, além da nossa turma de calouros, havia estudantes de anos mais avançados, jovens professores, suas namoradas, esposas e seus amigos, todos inteligentes e muito mais sofisticados do que a maioria das pessoas com as quais estávamos acostumados a nos relacionar.

Minha habilidade no violão operava milagres e éramos convidados para as melhores festas, organizadas pelos membros mais conceituados do corpo acadêmico, muitas nos melhores endereços da cidade. A elite era de esquerda e vários chegariam a posições importantes em agências governamentais, nos negócios e mesmo na política. A maior parte vinha de famílias tradicionais e conceituadas, e alguns dos pais eram envolvidos nas cúpulas dos recém-legalizados partidos de oposição.

Num tempo de renascimento político esses círculos apreciavam a aura descontraída de um violonista, versado no estilo de vida alternativo encontrado em Visconde de Mauá e Trancoso. Durante um breve tempo, tanto Pedro como eu fomos cortejados pela elite estudantil, mas a novidade desbotou logo e nos deixaram de lado devido às notas baixas, o contexto familiar inadequado e a falta de base e de interesse nos assuntos sérios que todos deveriam estar focando.

A acolhida nos outros cursos foi mais durável. Choviam convites para festas e levadas de som. Conhecemos garotas sensacionais e fizemos boas amizades. Imersos na farra e com um status elevado em casa, foi fácil esquecer a realidade econômica sombria pairando sobre nossas cabeças, bem como os esforços requeridos por uma das melhores faculdades do país.

*

Com a contrarrevolução neoliberal veio a caça às bruxas. Pessoas que não haviam colhido os frutos do milagre econômico dos anos 1970 ou que não tinham participado da festa, quer por proibição dos pais, quer por dedicação aos estudos ou repúdio àquela postura, pareciam estar ajustando as contas e festejavam a desgraça do inimigo.

O que antes era curtição, passou a ser visto com maus olhos, o que havia sido revolucionário agora era considerado idiotice e o que antes era aproveitar a vida se tornou a causa de doenças sexuais e mentais. A jornada de uma geração que havia lutado contra uma ditadura e que mais tarde presenciou a volta da democracia foi relevada. O sentimento de irmandade que tinha surgido naqueles dias se dissipou. Tudo parecia de cabeça para baixo: o que o senso comum havia considerado até então como egoísta e detestável, agora era aplaudido como a coisa certa a fazer.

O choque econômico também trouxe novidades na maneira de se “fazer a cabeça”. A cocaína passou a substituir a maconha. Não nos encontros dos radicais chiques de esquerda do curso de Economia onde muitos nem fumavam, mas nas outras rodas que frequentávamos. O comando do tráfico carioca percebeu que o pó branco era mais fácil de transportar, mais difícil de rastrear, mais viciante, mais caro e, enfim, muito mais lucrativo do que a herva, uma tradição de séculos. O submundo se profissionalizou em torno da novidade. Passaram a criar longos períodos de escassez de cannabis, enquanto o fornecimento de pó era abundante e barato. Logo, logo, os antigos maconheiros estavam caindo de napa nos espelhos do Rio de Janeiro. Muitos passaram a ver a maconha como uma lembrança ruim, um entretenimento para hippies fracassados e outros perdedores.

A Brizola – o nome do ex-exilado e futuro governador do Rio de Janeiro e por alguma razão o apelido da cocaína – era mais agressiva e mais nociva. Essa mudança de preferência era ilustrava bem o que estava acontecendo por causa do choque neoliberal. Ao invés de trazer a tona o lado contemplativo e artístico das pessoas, a cocaína deixava o raciocínio rápido e o ego inflado. Depois de se tornar popular, é claro que o tráfico aumentou o preço e fez com que seu consumo se tornasse um peso no orçamento. Por ser necessário consumir muito para manter a onda, em tempos de crise econômica muita gente acabou tomando caminhos à margem da lei para manter o hábito.

No começo, não gostava do clima superficial nem do egocentrismo que as linhas brancas traziam, mas a onda era tão forte que acabei entrando na onda junto com a galera mais chegada. A ilusão de autoconfiança conferida compensava as pancadas da recessão econômica. Àquela altura, a realidade lembrava um caminhão desgovernado vindo a toda em nossa direção mas com a Brizola tinhamos a impressão de correr mais rápido que ela.

No entanto, a implacável verdade era que o Brasil tinha se tornado um país assolado pela hiperinflação e pela recessão. Com uma crise à solta, havia muito desespero e mesmo suicídios, alguns próximos de nós. A saída era “cada um por si e Deus contra todos”, nas palavras de Mário de Andrade em seu livro Macunaíma. A válvula de escape para os abastados era a autodestruição através do excesso, para os mais pobres, era o crime e a violência. Histórias trágicas começaram a pipocar nos jornais; um aumento assustador no número de sequestros e assassinatos de um lado e justiceiros matando suspeitos do outro.

Dentro do meu círculo social o desânimo era generalizado. Na inocência de achar que resistíamos ao sistema, quando os dias ruins chegaram – algo que nunca imaginamos que pudesse acontecer – percebemos o quanto estávamos presos a tudo que achávamos que havia de errado no mundo. Moloch era muito maior que pensávamos. Ao contrário do que ditava a lógica, a crise o fortaleceu.

Todos sentiam que isso era apenas o começo de um longo caminho no escuro. Ao final de meu primeiro ano na universidade, os efeitos do caos eram profundos. A crise tinha pego todos de surpresa e ninguém sabia como reagir. Éramos como prisioneiros inocentes em estado de choque. Tentei me convencer de que podia lidar com o que viesse e de que era impossível que as coisas pudessem piorar. Estava errado.

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Samba Perdido – Capítulo 21 – Parte 01

Capítulo 21

 

“Sagrado e profano

O Baiano é

Carnaval!”

Chame Gente – Moraes Moreira 

 

Meu status em casa saltou para as alturas depois do sucesso no vestibular. Como prêmio, Rafael resolveu me dar um Fusca 1973 azul claro, que apelidei de Blues Boy. Ainda que barato e velho era um carro e, que me lembre, amigos de lares muito mais prósperos tinham recebido apenas um tapinha nas costas por não fazer mais do que sua obrigação. 

Li esse gesto como uma tentativa de reconciliação dele com um filho incompreensível que se recusava a ouvi-lo e que fugia da sua companhia. Nosso convívio era difícil. De gerações completamente diferentes, nascidos em mundos opostos, havia um fosso nos separando em termos de perspectivas, de familiaridade com o que estava à nossa volta e do que buscávamos da vida.

Num mundo longe das minhas descobertas, a realidade do Rafael estava difícil. Já beirando os 80 anos, lutando bravamente contra os problemas normais da idade avançada, haviam dificuldades imprevistas com o presente. Apesar do patrimônio acumulado, o Brasil tinha se revelado uma decepção. Quanto mais convivia com o “jeitinho brasileiro” nos negócios e com autoridades tortas, menos gostava do país. Com os dias do milagre econômico num passado distante, quase três décadas depois da sua chegada, o país estava em queda livre e havia uma nova política de restrição às importações. Essas duas pancadas atingiram seus negócios em cheio. Mesmo que achasse desnecessário expressar suas angústias, elas estavam sempre à flor da pele.

No meio das suas preocupações estava o meu futuro. Apesar da predileção indisfarçada pela Sarah, talvez o seu único verdadeiro amor na vida, Rafael silenciosamente queria que eu chegasse a alturas que o seu passado o havia barrado; a respeitabilidade de um diploma universitário e a estabilidade de uma profissão.

O destino e o instinto de sobrevivência haviam dirigido a sua vida, ao passo que eu tinha escolhas, ou pelo menos achava que tinha na altura. Diferente dele na sua juventude, tinha a liberdade de me misturar com todos a minha volta e de curtir sem ser vítima de preconceitos e sem ter medo de passar necessidade. Talvez por isso, para ele, a tempestade existencial na qual tentava conciliar o mundo de fora de casa com o que se passava dentro dela, era algo que escapava à sua compreensão e ao seu respeito. Talvez agora, comigo na faculdade de economia, essa bobagem iria acabar e os estudos a sério poderiam ser a salvação de uma personalidade mimada e egoísta.

*

Sem se importar com os conflitos mudos em casa, o verão carioca estava no auge, e com ele a temporada de curtição. Agora pré-universitário, sem a paranoia do vestibular, só queria saber de praia e de aproveitar as outras maravilhas que minha cidade tinha para oferecer. Meu querido Blues Boy prometia ser uma grande ferramenta para essa tarefa, porém, antes de ganhar as chaves, havia a barreira da carteira de motorista. 

A ideia da minha pessoa no volante causava arrepios em casa. Isso era devido a uma aula de direção que Renée havia resolvido me dar em Teresópolis quando adolescente. A caixa de câmbio do carro da família, um Opala bege, era manual e saía da coluna de direção. Logo na primeira tentativa, embaralhei as instruções e ao invés de sair devagar em primeira, acelerei o carro em marcha à ré. Se minha mãe não houvesse tido o instinto de puxar o freio de mão na hora, teríamos caído em um despenhadeiro bem atrás da gente. O valor cômico da cena não foi captado pelo meu pai de 77 anos que estava nos observando fora do carro e ele passou mal. Nunca houve outra aula.

Porém, na época em que ganhei o fusca, o que os dois não sabiam era que seu filho já tinha começado uma carreira secreta de motorista. Ela tinha começado no dia em que decidi colocar um anúncio no jornal oferecendo aulas de violão. Com a mesada definhando devido aos problemas nos negócios, precisava de dinheiro para manter o nível de farra e essa foi a melhor ideia que veio à cabeça.

Dois dias depois o telefone tocou. A voz dela era rouca, algo que sempre me deu um certo tesão. Enquanto processava isso, a cabeça já estava “Caralho, uma aluna!!”

Tentei soar profissional. “Sim, as aulas são particulares para iniciantes. Também dou aulas de bossa nova para alunos mais avançados.”

“Ai, adoro bossa nova, mas nunca toquei violão. Quanto tempo você acha que levaria para aprender?”

“Bom, isso vai depender da tua habilidade e do teu esforço. Por que você não tenta uma aula, e daí a gente avalia?”

“Ah, não sei, esse número é de Ipanema. É muito longe. Eu moro na Tijuca, conhece?”

Menti. “Conheço, claro. Posso ir aí, mas como disse no anúncio são vinte e cinco cruzeiros na casa do aluno.”

“Não dá para fazer a primeira aula de graça? Só para eu sentir se vou gostar ou não?”

Considerei as coisas, mesmo se aquela a voz no telefone fosse a de uma deusa a Tijuca era longe demais. “Olha, não dá, principalmente porque fica tão longe.”

Para minha surpresa, ela concordou. “Então, está bem. Que dias você pode vir? Só posso nos fins de semana.”

Blefei. “Um instante, deixa eu ver minha agenda.” Esperei um pouco e respondi. “Tenho uma abertura no sábado à tarde da semana que vem, às três, pode ser?”

“Para mim está ótimo.”

Animado, peguei o endereço e depois de desligar comecei a planejar as aulas. Ia imitar o Romualdo. Primeiro, exercícios para fortalecer os dedos, depois acordes e depois as primeiras músicas fáceis. Só isso já daria quatro ou cinco aulas, cem cruzeiros no meu primeiro mês como professor… nada mal.

No sábado seguinte, lá estava eu, violão em punho, sacrificando um dia ensolarado de praia na linha 464 rumo à Tijuca para dar minha primeira aula na vida. Me senti bem dando os primeiros passos para ganhar meus primeiros trocados. Pedi para o motorista me avisar quando o ponto chegasse. Quando desci, segui as informações e consegui achar o prédio. Estava na hora e, nervoso, apertei o botão do apartamento no porteiro eletrônico. Depois de um tempinho ela atendeu e mandou subir. 

O apartamento era apertado. A sala era decorada com móveis de fórmica organizados em torno de uma televisão enorme, uma cortina feia cobrindo a janela de alumínio e fotos de família penduradas na parede. A aluna, Marineide, foi uma decepção. Parecendo tonta demais para aprender o instrumento, era mais nova que eu, maquiada mas com um bigodinho mal disfarçado, cheirando a perfume barato, unhas pintadas e com uma blusa semitransparente cobrindo o corpo roliço, ela me convidou para entrar. Em pé na sala, confuso, senti vontade de sair correndo daquela roubada mas me segurei e fui profissional.

Tentando parecer sério, perguntei: “O teu violão?” Depois de um silêncio inconfortável sob seu olhar extra terrestre, continuei. “Você disse que ele está todo desafinado. Posso dar uma olhada?”

“Ah, claro!” Ela voltou a estar presente, mas parecia nervosa. “Ele está no meu quarto. Se importa em dar a aula lá?”

Com uma estranha desconfiança de que o motivo que ela tinha me chamado ali não tinha nada a ver com aprender violão, entrei no quarto apertadíssimo e exageradamente arrumado. O violão estava fora da capa, na cama.

“Tem um banquinho para me sentar aqui no quarto? Prefiro dar aula vendo o que o aluno está fazendo.”

“Claro! Tem um banquinho na cozinha; serve?”

“Serve, claro. Obrigado” Enquanto ela foi para cozinha, tirei meu violão da capa e saí afinando o dela sentado na cama.

Ela voltou com um copo d’agua gelado, mas sem o banquinho. Eu já tinha afinado o violão.

Bebi a agua e toquei uns acordes nele. “Nossa! Tá todo afinado! Ai, estou doida para aprender, você acha ele bom para o meu tamanho?”

“Ele é pequeno, mas vai servir.”

Ela se sentou do meu lado na cama. “Posso experimentar?” Ela passou as unhas afiadas, que eu ia ter que pedir para ela cortar, nas cordas. “Viu? Não sei tocar nada.”

A fim de começar a aula e sair dali o mais rápido possível eu perguntei: “E o banquinho?”

“Você tem certeza de que precisa do banquinho?”

“Sim, não vai dar para te ensinar nada sem sentar de frente.”

“Tá bom, vou trazer, mas posso ouvir você tocar uma música antes de ir lá pegar?” Achei estranho, talvez quisesse me testar, por isso toquei Aquarela do Brasil num arranjo complicado que impressionava.

Quando terminei, dava para ver que ela estava impressionada. “Nossa, gato, como você toca bem!”

Estava pronto para começar a aula. Ela levantou, mas em vez de ir pegar o banco e sem pedir licença, ela se ajoelhou na minha frente se apoiando nas minhas pernas. 

“Sabe o que é? É que sou apaixonada por violeiros e quando eu ouvi tua voz no telefone, achei ela tão gostosa que senti que tinha que te conhecer pessoalmente.”

Fiquei sem resposta e sem ação. Depois daquilo, me deu uma olhada safada, tirou o violão da frente, abriu minha braguilha e colocou a mão dentro. As “joias da família” reagiram no ato. Sem pedir permissão, ela baixou meus jeans e aplicou seus talentos. A aula estava encerrada.

Feia, não muito inteligente e deveras comum, a Marineide não fazia o meu tipo mas era safadíssima e só saí de lá tarde da noite. Houve mais “aulas” e, viciado no que estava me dando, atravessei as barreiras de minha vida social esquizoide e acabei a apresentando aos amigos de baseados e de música. 

Foi aí que o carro entrou em cena. Num fim de semana prolongado, minha ex-possível aluna tornada amante, colocou o carro do pai dela à disposição para a galera ir para Mauá. Como ela não tinha ideia de como usá-lo, confiou na minha habilidade inexistente como motorista. O entusiasmo levou a melhor sobre o medo O paraíso hippie ficava a quatro horas de carro, duas horas e meia rodando pela rodovia mais importante do país, a Via Dutra, que liga São Paulo ao Rio, e o resto subindo por estradas de terra entre as montanhas e resolvi encarar aquilo sem carteira de habilitação, contando com o pouco conhecimento adquirido com minha mãe em Teresópolis e pelo que tinha ouvido falar. .

Quando o dia chegou, passei a noite na casa dela e partimos bem cedo para a casa de Kristoff para apanhar ele e o resto da galera. Tive sorte, porque de madrugada não havia nem trânsito nem policiamento. Depois de atravessar vários sinais vermelhos, Marineide, que até então não tinha dado um pio, gritou apavorada.

“Rique!!! Você vai entrar numa contramão!”

“Cacete! É mesmo!”

 Não pensei duas vezes e virei totalmente o volante. À toda, o carro começou a derrapar, mas os pneus obedeceram, conseguindo evitar por poucos centímetros um poste que pareceu ter passado pela nossa frente em câmera lenta. Por um milagre chegamos no Leblon e pegamos a galera, todos achando graça em segredo da minha garota bigoduda, mas também contentes com a independência de poder viajar de carro. De lá fomos rumo à avenida Brasil e saímos da cidade. Como chegamos em Mauá sem um arranhão permanece um mistério, mas ao sair do carro com as pernas ainda bambas tinha aprendido a dirigir.

Sem nem imaginar a possibilidade dessa aventura, Rafael insistiu que eu pegasse aulas de direção em vez de comprar uma habilitação no departamento de trânsito, o Detran, como todos faziam. O teste que aplicavam era quase impossível de passar; a ideia era forçar a propina. Como estava prestes a viajar de férias, chegamos a um consenso: eu pegaria as aulas e eles pagariam um preço mais baixo para comprar a habilitação sem a prova, em vez de pagar mais caro para que recebesse uma carteira sem nunca ter sentado em frente a um volante.

Depois de duas semanas de aulas, fui à central de testes onde entrei no carro com o dono da autoescola e dois examinadores que mais pareciam membros do esquadrão da morte. 

Sem olhar para mim, um dos inspetores virou para trás e perguntou: “Esse pagou?”

O dono curso respondeu afirmativamente. 

Depois disso, tive somente que dar uma volta no quarteirão para receber um certificado que me deixaria “preparado” para o trânsito maluco do Rio de Janeiro.

*

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Samba Perdido – Capítulo 20 – Parte 03

Haviam mais contradições. Em alguns finais de semana, deixava de lado a pretensão hippie, arrumava o cabelo, colocava uma camisa com colarinho, sapatos de couro brilhantes, cinto e calça social para ir às gafieiras. Resquícios dos dias de glória do samba nos anos 1930 e 1940, a maioria ficava em torno da Praça Tirandentes, na Lapa. Não era apenas a arquitetura que permanecia intacta, as orquestras de samba que tocavam ali também. Elas eram autênticas, lideradas por sambistas da antiga encantados por estar virando moda de novo tanto na Zona Norte quanto na Zona Sul.

Ainda mantinha a amizade com o Davi e com a galera “brima” e ia com eles. Mas quem dizia que ia lá pela dança ou pela experiência autêntica estava mentindo. Para nós, a atração maior era o monte de mulheres bonitas provenientes do lado “errado” da Floresta da Tijuca, algumas novas na cidade, interessadas em jovens do lado “certo” da cadeia de montanhas. Depois das danças de rosto colado sob luzes imitando as de discotecas havia as cervejas, os beijos introdutórios e as trocas de números de telefones. Vindos de mundos diferentes, o anonimato protegia ambos os lados e permitia casos rápidos sem a pressão dos círculos sociais mais chegados. Era raro sair de lá sem resultados. Seguindo a mentalidade da época, estávamos fazendo o que se esperava de machos latino-americanos e por mais frio que possa parecer, era isso que as atraía.

Apesar dasses sucessos, ser tímido com as garotas que interessavam e corajoso com as que não, nunca levaria a uma vida afetiva saudável. O esforço para criar uma aura bacana na esperança de atrair uma garota à altura dos meus sonhos não estava dando certo. Talvez por não ser sincero o bastante, não ter a familia suficientemente rica ou por ser esquisito demais, ou talvez por pura impaciência, o que eu queria não se materializava. Ainda por cima, havia um demônio subversivo me dizendo que a felicidade num relacionamento resultando em casamento e familia era uma fantasia que só existia na cabeça de burgueses.

*

A pressão em torno do vestibular estava aumentando exponencialmente.  A um mês da prova, a música e as festas teriam que ficar em segundo plano. Se não colocasse trabalho duro na equação, nada de universidade boa nem de tolerância em casa. Isso pedia medidas radicais e por isso fui para Teresópolis para passar duas semanas me preparando isolado.

No dia da primeira prova, acordei de madrugada. Sem conseguir pegar de novo no sono, fui para a praia para me acalmar. O nascer do sol estava espetacular e o mar estava calmo e convidativo. Mergulhei, nadei, peguei umas ondas e relaxei. Quando saí, percebi um homem na passarela olhando para mim. Parecia um Zé Pilintra vestindo um terno de linho branco, chapéu. Ele era alto, usava um bigode curto, e na hora me veio em mente Alec, meu avô por parte de mãe. Aquele encontro bizarro me deu calafrios na espinha, mas o encarei como um bom presságio.

Fui para casa, tomei banho e café da manhã e saí para pegar o ônibus rumo a uma velha escola primária no final do Leblon. Quando saltei me juntei às centenas de outros estudantes esperando no portão. depois de uns dez minutos, funcionários vestidos em jalecos vieram para nos deixar entrar. O primeiro passo era ver a sala onde deveríamos ir em um quadro de avisos. Achei a minha, entrei e fui me sentar no fundo numa cadeira escolar com braço dobrável, a parte de baixo cravejada de velhos pedaços de chiclete.

Quando deu nove horas, os portões fecharam e os inspetores, todos na faixa dos vinte anos, passaram pelas carteiras nos entregando lápis e borracha. Um pouco depois, alguém mais graduado entrou, fez a chamada e nos colocou a par das regras: nada de cola, nada de conversa e quando dissessem que o tempo acabou todos teriam que entregar as provas imediatamente. Depois disso, nos deram grossos envelopes de tamanho A4 contendo as provas e um cartão onde deveríamos marcar as respostas de múltipla escolha.

Os exames eram divididos em quatro dias. Confesso que nas provas de física e química, fui com algumas fórmulas importantes anotadas na parte de baixo das minhas calças, mas nas outras, português, matemática, línguas, história, biologia e geografia, joguei limpo.

*

Com medo do pior, no fim de semana quando os resultados seriam anunciados nos jornais, Kristoff e eu fugimos para Mauá. Acampamos perto da Maromba onde a única ligação com o mundo exterior era o telefone pago de uma pousada. No domingo que saíram os resultados, seria mais seguro ficar sabendo da notícia à distância. O plano era ligar para a Sarah que tinha passado pelo mesmo processo e não me julgaria tanto caso tivesse me dado mal.

Quando atendeu o telefone, ela já tinha procurado por meu nome. Para a absoluta surpresa de todos, eu havia passado para a UFRJ, a Universidade Federal do Rio de Janeiro, no primeiro semestre do seu conceituado curso de Economia, considerado o melhor do Rio e um dos melhores do país. A teoria de ser contra tudo que o vestibular representava evaporou na hora.

“Caralho, mana! Tu tá falando sério!? UFRJ, primeiro semestre??!!!”

“É, seu cagão, e ainda vai ter a moleza de estudar na Urca. ” Ela tinha cursado a mesma universidade mas no Fundão do lado do aeroporto. Mas na hora aquilo não importava, ela tinha deixado de lado sua distancia e estava contente.

“E os velhos?”

“Estão nas nuvens. Não acreditaram também. Tu é muito sortudo, mano! Um dia você ainda vai me explicar como você conseguiu essa façanha depois de tanta vagabundagem.”

“Ah, quem tem os genes da Dona Renée consegue qualquer coisa, ela nunca te contou?”

A gente riu um pouquinho. “Eles saíram para Teresópolis faz uma meia hora, ficaram esperando você ligar, mas acabaram desistindo.”

“Foi o que eu calculei.” Demos mais risadas. “Obrigadão mana, um beijo.”

“Um beijo e parabéns mano. Pode curtir à vontade aí e aguarde uma recepção de gala na volta.”

Antes de desligar, o Kristoff me deu uma cutucada e me lembrei: “Você também procurou pelo nome do Kristoff?”

“Procurei, passa o telefone para ele que eu quero dar a notícia eu mesma.”

Ele tirou o telefone da minha mão apressadamente, “Fala Sarah, tudo bem?”

A reação dele foi uma risada alta. “Ha, ha, ha, nem dá para acreditar!” Ele tinha passado para biologia para a mesma UFRJ, um dos cursos mais difíceis de se entrar, com 20 estudantes por vaga.

*

Depois daquele telefonema estávamos os dois nas nuvens. Para comemorar a ocasião especial, a gente resolveu experimentar a mais recente coqueluche alucinógena da galera: chá de cogumelos. Mauá era conhecida por tê-los e o clima estava perfeito para que brotassem, ensolarado após alguns dias de chuva pesada.

Corremos para as pastagens próximas, mas não encontramos nada. Nossas esperanças se reascenderam quando alguém nos disse que certamente encontraríamos alguns nas pastagens de Campo Alegre, um vilarejo a 40km. O problema era que o nosso único meio de transporte era nossos pés, mas tínhamos bastante obstinação para sair numa caminhada de quase um dia inteiro para colher nossos fungos dourados.

Fomos na hora. A caminhada exaustiva valeu a pena: encontramos um campo cheio deles e colhemos o que conseguimos sob o olhar ameaçador do touro dono do pedaço. Tínhamos que ser cuidadosos: havia duas espécies parecidas de cogumelos nas pastagens. Os dois eram do mesmo tamanho e com o mesmo formato. O que queríamos tinha listas pretas na parte de baixo, o outro tinha listas brancas e era venenoso. Quando terminamos, depois de um momento de euforia, caímos na real e lembramos de que ainda tínhamos a longa caminhada de volta pela frente.

De volta ao acampamento, cansados, aproveitamos os últimos minutos de sol para um mergulho merecido no rio. Quando estávamos prontos para a noitada, resolvemos não fazer um chá já que daria trabalho demais, simplesmente abrimos a bolsa, dividimos a colheita, três para cada um, e os comemos. Eram parecidos com cogumelos comuns só que tinham um sabor mais marcante. Contudo, naquela altura o aspecto culinário era irrelevante.

Já estava escuro quando voltamos para a estrada, dessa vez com os instrumentos debaixo do braço. Tivemos sorte de pegar uma carona. O dono do carro era um casal mais velho de paulistas procurando uma pousada depois da Maromba. Eles estavam ansiosos para saber se tinhamos dicas de bons restaurantes bons e lugares para conhecer na área. No banco de trás, olhando pela janela, tentando responder suas perguntas, comecei a sentir a cabeça ficar leve. Quando saímos e vimos as luzes do carro se distanciar no escuro da estrada de terra, já nos encontrávamos em território psicodélico.

Estávamos na praça da Maromba – um quadrado de terra delineado por poucas casas, um armazém, um bar e uma igreja. Para não sair numa tangente incontrolável, tivemos o bom senso de ir ao bar. Sendo o único nas redondezas, era o lugar onde a malucada se encontrava à noite para levar um som. As únicas outras luzes ao redor vinham do armazém no outro lado do terreno baldio.  O pessoal da terra se reunia lá para beber bebida barata em torno de uma mesa de sinuca. Os dois grupos respeitavam o espaço do outro. Uns completamente chapados de um lado e os outros igualmente passados por uma mistura fatal de cachaça com o famoso mel da região do outro.

Já havia dois caras sentados na mesa principal do nosso bar dedilhando alguma coisa no violão. Perguntamos se podíamos afinar com eles e saímos tocando. Com quatro pessoas tocando o pessoal foi chegando. Depois de um tempo, Leandro, a estrela musical da nossa turma, que mais tarde se tornaria o guitarrista predileto do Cazuza e que chegou a tocar com Roberto Carlos, apareceu e fez o som decolar para as alturas. Mais tarde, autointitulado padrinho dos músicos de Mauá, o lendário e veterano Serginho do Mel, também apareceu do nada pedindo para gente fazer uma levada de blues. Mais pessoas foram se juntando e no final, deveria ter uns sete ou oito músicos captando o que os espíritos tinham a dizer sobre a beleza das montanhas e o que a lua prateada e as estrelas acima dela estavam achando daquela noite.

A população de doidos da Maromba acabou comparecendo em peso e, eufórica, se juntou participando com o que quer que pudesse aumentar a energia – cantando versos improvisados, batendo palmas, batucando nas mesas e nas paredes frágeis do bar ou simplesmente dançando. Como num quadro louco de Van Gogh, a música, o lugar e as pessoas se misturaram num transe que durou horas.

Não me lembro como aquela explosão de psicodelismo terminou e nem onde dormi. Só sei que de manhã, quando fomos tomar nossa dose diária de leite tirado da vaca e quase todos da noite passada estavam lá na fila. Enquanto esperávamos a coitada da vaca dar seu leite para aquela malucada, todos comentavam o quanto o som tinha sido bom. Aos poucos fomos descobrindo que todos os músicos tinham comido cogumelos, mas não sabiam que os outros também tinham e isso virou a piada da cidade.

Passamos o resto do dia curando nossas ressacas no escorrega, um tobogã aquático natural que ficava depois da Maromba, se espatifando na água gelada depois de pegar velocidade nas pedras. Aqueles choques térmicos nos trouxeram de volta à vida normal e à lembrança de que tínhamos deixado o pesadelo do vestibular para trás com uma vitória.

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Samba Perdido – Capítulo 20 – Parte 02

Independentemente da consciência existencial-política, não passava de um garoto pré-universitário da Zona Sul carioca. 1980 seria um ano não só de muita curtição, mas também de contradições. A mais estranha dessas incoerências era que fazer parte do clube de músicos doidões teve um efeito positivo em meus estudos. Não tinha problemas para dormir, não tinha sequelas de stress e, apesar da loucura quase diária, meu estado de espírito era bem mais equilibrado do que o dos colegas caretas. Além disso, quando resolvia estudar, conseguia absorver as matérias.

A nível de galera, com alguns de nós mandado bem no violão e sabendo lidar com a malandragem das ruas melhor do que estudantes comuns, deixamos de ser vistos como os esquisitos da escola para nos tornarmos a galera descolada. As nossas festas eram as melhores e mesmo as garotas mais bonitas começaram a nos notar.

No meio do ano escolar mais puxado de nossas vidas, surgiu uma nova Meca: a região de Visconde de Mauá, uma coleção de pequenos vilarejos rurais aninhados na Serra da Mantiqueira entre o Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo. Quando era criança, a família costumava passar temporadas rurais por lá. Muitas das pousadas tinham sido erguidas por imigrantes do velho continente. Isso e o ar mais temperado faziam com que os arredores lembrassem a Europa Central onde Rafael havia crescido. Ele adorava desfrutar as férias lá com seus filhos de uma maneira parecida com a que passara sua própria infância. Íamos juntos para ver as vacas sendo ordenadas e outros afazeres rurais de manhã bem cedo. Sempre que encontrava uma oportunidade ele parava numa porteira para nos explicar a vida na fazenda, apontando para galinhas, vacas, porcos, perus, ovelhas e outros animais e dizendo como deveriam ser criados. 

No começo dos anos 1980, Visconde de Mauá havia mudado muito. Ainda havia famílias indo passar o verão e fins de semana prolongados nas suas pousadas, mas em geral a região tinha se tornado refúgio para os únicos hippies autênticos que ainda existiam no Brasil e talvez no mundo. Com seus cabelos longos e descuidados, suas roupas não convencionais caindo aos pedaços e estampadas com motivos indianos, desenhos de cogumelos alucinógenos e de folhas de cannabis, eram alienados para valer; totalmente fora da sociedade, loucos demais até mesmo para nós. 

Suas cabanas tinham um ar de tendas celtas, com desenhos psicodélicos, retratos de Jimi Hendrix, Janis Joplin e John Lennon espalhados nas paredes, ao lado de referências a viagens lisérgicas, letras de músicas e o sempre presente símbolo hippie. Sua intensidade evocava talvez os últimos ecos de Woodstock. Para nós, conviver com eles era como fumar a ponta de um baseado acendido por gigantes num passado neolítico.

Mauá ficava cerca de quatro horas do Rio e nos feriados chuvosos e sem praia, não havia dúvida para onde ir. As montanhas, as florestas e os rios nos faziam sentir próximos de nossos heróis do rock inglês, ou pelo menos do visual das capas de seus discos. Em uma de nossas idas, conseguimos levar algumas garotas da escola. Lidar com membros do sexo oposto na mesma frequência intelectual que a gente era uma enorme novidade. O que era ainda mais constrangedor, é que podiam estar interessadas em nós. Quando as levamos para conhecer uma cachoeira e elas ficaram de topless, nós encaramos sua iniciativa de forma madura conseguindo manter nossas bocas fechadas e sem babar.

À noite, de volta ao acampamento montado no Vale do Pavão, acendemos uma fogueira, abrimos garrafas de vinho e compartilhamos a comida enlatada. O bem-estar do banho forte e gelado na cachoeira tinha aberto nosso apetite. Apesar da comida horrível, o vinho, e principalmente o fogo, criaram uma atmosfera especial. Depois da janta, fomos até as barracas, tiramos os violões de suas capas e nos preparamos para tocar. 

“Porra Kristoff, esse baseado está todo babado, toma cuidado!”

“Meu irmão, foi você que apertou ele frouxo demais de novo, coloquei a goma para ver se ele não abria. ”

“Nunca pensei que você fumasse também Leninha, muito bem!” Depois de provavelmente ter dado uma de babaca misógeno, dei uma risada sem graça. “E aí? Está curtindo Mauá?”

“Muito legal aqui, lindo, sem sítios, rústico, adoro coisas assim.”

Uma das outras meninas, a Tetê, falou: “E então, vocês não iam fazer um concerto para a gente? Cadê?”

“Aê! Vamos levar Stairway to Heaven para elas.”

 Era uma do Led Zeppelin, fácil demais, quase apelativa, mas a gente sabia que elas iam curtir. Logo na abertura da música, a flauta transversal do Kristoff ressoou no silêncio da mata. Por ser o único som na redondeza, foi uma viagem. A música evoluiu de um estilo medieval para um rock mais pesado. Não conhecia a letra inteira, mas enrolava num inglês convincente.

“There’s a lady who knows, all that glitters is gold…”

O primeiro número foi um sucesso e dava para ver que tinham adorado. Se fôssemos espertos, teríamos parado ali ou tocado só mais uma, talvez Time do Pink Floyd. Mas não, encorajados pela receptividade, partimos para uma improvisação meio jazzística e dali a coisa desandou. Para a gente, os acordes, as levadas e os solos eram um bate-papo sofisticado e emotivo ao qual a gente já estava acostumado. Para as garotas, aquela era uma linguagem que não entendiam e que as fizeram se sentir excluídas. A ideia original era a de impressioná-las, mas o resultado não poderia ter sido mais diferente: elas ficaram olhando umas paras as outras, se perguntando o que diabos estava acontecendo.

Eu era o tipo de cara que nunca sabia quando uma garota estava dando em cima dele, mas apesar da leseira, podia perceber que havia uma tensão rolando entre a Leninha e eu. Embora fosse cara de pau com meninas que nunca tinha visto na vida, era tímido demais com as que conhecia e isso impediu uma aproximação direta naquele contexto. Contudo, tive a malícia de colocar meu saco de dormir ao lado do dela na barraca, pensando que quando ela entrasse, a seguiria imediatamente e uma coisa acabaria levando a outra. Por conta da nossa viagem musical, só a primeira parte saiu de acordo com o plano. Leninha foi para a barraca dormir antes de acabarmos. A segunda parte nunca aconteceu. Quando, horas depois, me deitei ao seu lado e tentei acordá-la, ela não respondeu e fiquei com medo de como reagiria se insistisse.

Na segunda noite, o frio tinha se tornado insuportável. Esquecemos a bobagem roqueira anglo-saxã e um dos caras foi até a Maromba – o vilarejo hippie que ficava próximo – para ver se havia algum lugar para a gente ficar, mesmo que tivéssemos que alugar. Depois de três ou quatro horas, ele voltou com boas notícias: tinha encontrado um quarto, um quarto apenas, para oito de nós e fomos para lá felizes.

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