Nó Górdio

Nó Górdio

A medida que passam os anos – e no que me diz respeito estou chegando aos 80 – a realidade; as pessoas; os discursos; os manifestos; os comportamentos; as ideologias; as bandeiras; os compromissos éticos, enfim, todos os parâmetros que usamos no transcorrer da vida e sobre os quais construímos nossos princípios; nossos objetivos; nossas atitudes; nosso intelecto; nosso conceito sobre o que fazer; sobre o como fazer e sobre o quando fazer, sofrem uma metamorfose lenta, porém constante, quanto ao olhar com o qual os contemplamos, metamorfose essa que nada mais é do que o resultado do já visto somado ao que hoje vemos; do já pensado adido ao pensar do presente; da soma de tantas mentiras bem pensadas quanto de inúmeras verdades que morreram na praia; de perguntas inteligentes e respostas sem sentido, que fomos acumulando ao longo dos anos que voavam sem que o percebêssemos.

Como num caleidoscópio de parque de diversões, tudo depende da posição em que nos encontremos quando nos for dado julgar atos ou fatos de qualquer natureza; do conhecimento teórico ou prático que tenhamos sobre a situação que estejamos analisando: da capacidade de comparar para poder decidir; da sensibilidade de poder perceber as nuances existentes entre o equilíbrio e o desequilíbrio que sempre aninham dentro de situações divergentes ou antagônicas, ainda que aparentemente complementares.

E eis então que a realidade aleivosamente nos atropela, e o que até esse momento parecia um conto de fadas ou das mil e uma noites com final feliz, se transforma num terrível conto real e concreto que veio à luz num 7 de outubro de 2023, e cujo fim ninguém se atreve por enquanto a prognosticar.

As guerras, sejam elas quais forem, são sempre filhas de guerras anteriores e mães das próximas. Sim, matar e morrer em vão são duas das muitas marcas registradas do Homo sapiens-sapiens, desde que ficou em pé pela primeira vez na História.

Considero obsoleto determinar a cronologia dos fatos, das guerras e guerrinhas, que levaram até esse fatídico dia em que o grupo terrorista Hamas -transpondo sem qualquer dificuldade as fronteiras do Estado de Israel- adentrou e perpetrou as barbaridades desumanas que vimos acontecer, e depois, deixando um rasto de sangue inocente atrás de si, retornaram ao covil, no qual certamente festejaram as suas “façanhas”.

E nesse exato episódio eis que começam a ser formuladas as perguntas de praxe. Perguntas que exigem respostas claras e dolorosas, assim como o castigo dos responsáveis por tamanha e criminosa incompetência. Essa é a questão que não pode, não deve, e não será deixada de lado.

As forças de defesa de Israel desleixaram a prontidão vigente desde os  primórdios da fundação do Estado -com a única exceção das vésperas da guerra de Yom Kipur- e o fizeram para não deixar dúvida quanto à culpabilidade da cúpula, que no último ano estava totalmente politizada e preocupada em apoiar a tentativa de golpe contra o Judiciário por parte do desgoverno Netaniahu, que a qualquer preço buscava controlar o Supremo para não ser condenado nos três processos de corrupção nos quais está profundamente envolvido.

Tampouco devemos separar o que vem acontecendo nos territórios ocupados por Israel na guerra dos seis dias em 1967. É de uma gravidade que não apenas põe em risco a segurança física do Estado de Israel, mas carcome pouco a pouco, de forma sorrateira e sistemática, os princípios e valores que Israel herdou de seus fundadores e que até pouco tempo atrás serviam de pilares ao edifício no qual habita a Democracia israelense. E isto também serviu e ainda serve para que o desvio de finalidade das tropas tenha sido um dos pontos nevrálgicos do fracasso de Tzahal na defesa da fronteira com a faixa de Gaza.

Impossível ignorar a composição do atual governo de Israel, que desde a assunção ao poder se debate em confrontos ideológicos contra o espírito e a razão de ser do Estado.

A direita, liderada pelo ‘Herut’ e completada por castas religiosas fundamentalistas que nada tem a ver com o Estado laico e democrático, transformou o exercício do poder numa cruzada contra as leis, contra o Poder Judiciário, contra o convívio entre as diversas e diferentes correntes de imigração de judeus da diáspora, deixando de prestar atenção às fronteiras, e assim permitindo que o dia 7 de outubro passasse a fazer parte de um seleto grupo, como a Inquisição e o Holocausto.

A batalha continua em andamento, e de uma coisa tenho certeza: as feridas arderão no coração de Israel muito tempo depois que esta guerra a mais no nosso caminhar como povo, se transforme apenas nalgumas páginas dos livros de História.

É de se esperar que o amor incondicional ao Estado de Israel e a pertença ao povo judeu, não sejam um empecilho para que possamos definir e implementar políticas e estratégias que realmente ajudem, e não que nos afundem mais ainda num poço já cheio de sangue inocente.