Hoje as palavras soam como eufemismos covardes: açougueiros são chamados de governadores, e um massacre com 120 mortos em um só dia, de ‘operação policial’ (Sérgio Rodrigues)

Tinha muitos assuntos para comentar. Podia ser a proposta parlamentar de criação de uma bancada cristã no Congresso, mais um passo rumo ao neomedievalismo. Nada contra animar o debate sobre o suicídio de um adolescente na Flórida, fruto de relação tóxica com um chatbot. Seria também apropriado acompanhar a luta de Lô Borges contra a Morte, ele que, com uma rapaziada mineira, criou o Clube da Esquina, fonte de encantamento, Vida e inspiração. Forçado pelo surrado motivo de força maior, seguirei outro caminho.

Não posso ignorar os acontecimentos de 28 de outubro no Rio. Nasci, cresci e sempre vivi no Rio. Pertenço, de múltiplas formas, a esta cidade. Sempre foi uma relação agitada, intercalando amor e ódio. Minhas melhores relações pessoais e visuais, muitas já desaparecidas, têm digitais cariocas. O mesmo com as desafeições e frustrações. A carnificina em duas favelas, comandada pelo medíocre governador do Rio, filhote do bolsonarismo e gigolô da violência de classe, me toca de maneira particular. É o sangue da minha cidade que transborda para o luto de suas periferias abandonadas pelo poder público.

Vou deixar minha indignação comer solta. Certa vez, Rubem Braga, o Urso genial das crônicas, disse sobre o ato de escrever: “Imprudente ofício é este, viver em voz alta”. E lá vou eu beber nesta fonte. Duela a quién duela, à moda, vade retro, do Farsante das Alagoas.

Para quem tem longa quilometragem neste balneário, massacres, assassinatos hediondos, perseguições violentas, não são novidades. Alguém ainda se lembra do rio da Guarda? Era nele, nos anos 60, que policiais, dublês de juízes e membros honorários de pelotões de fuzilamento, desovavam mendigos assassinados por eles. “Limpeza” da cidade. A Scuderie Le Cocq, que atuou nas décadas de 60 a 80, foi talvez o primeiro grupo de extermínio conhecido na crônica policial. Um de seus integrantes tinha amplo espaço na televisão, cultuado como herói por uma parte da população. Um programa radiofônico sensacionalista diário dava palco, nos anos 60, à violenta Invernada de Olaria, conhecida pelo tratamento brutal que dava aos presos. Foi nas entranhas policiais corruptas que nasceram as milícias, que hoje dominam parte da cidade, tocando terror e diversificando atividades. Identificam-se, cinicamente, como grupos de “autodefesa” dos cidadãos.

Li opiniões sobre a operação policial que pariu mais de 100 cadáveres. Muitas delas tinham sangue nos caninos. É gente que não se importa com o espírito “justiceiro” da polícia, que aplica rotineiramente e sem escrúpulos a pena de morte quando os alvos são negros e pobres. A carne mais barata do mercado é a carne negra (Elza Soares). Comportam-se como súditos leais quando estão nos bairros abonados. Como disse o escritor e jornalista Sérgio Rodrigues: “Nossas elites sempre delegaram a instituições violentas, das milícias do Império às atuais polícias militares, a tarefa de lidar com a massa de despossuídos fermentada em séculos de escravidão”.

Sem política pública de segurança, sucessivos governadores do Rio organizam expedições armadas midiáticas contra as periferias da capital, sem qualquer efeito na organização e operação das facções criminosas. Basta lembrar da lista vergonhosa que antecedeu Cláudio Castro: Anthony Garotinho, Rosinha Garotinho, Sérgio Cabral, Pezão e Wilson Witzel. No feliz achado da Cora Rónai: “Isso não é lista de nomes. É maldição”. Complemento: eleitos pelos cidadãos…

Cadê a repressão à demanda de drogas que alimentam esta indústria da morte? Onde os setores de inteligência para asfixiar as fontes de recursos que financiam a compra de armas e drogas? As organizações criminosas expandiram-se para todos os estados, atuam em promiscuidade com policiais e outros agentes do Estado, participam da institucionalidade política. Tutti buona gente.

Lorpas e pascácios, excitados pelo vocabulário trumpista, apostam na solução por mudança de nomenclatura (sic). Sugerem chamar a bandidagem de terroristas. Pronto, eis a saída para o abacaxi. Bem, talvez seja a hora de ampliar o conceito de terrorismo. Quem subemprega, sonega impostos, paga salários obscenos, lava dinheiro em paraísos fiscais, superfatura alimentos, estaria enquadrado no rótulo. Afinal de contas, o resultado de suas ações é desespero, melancolia, dor e, no limite, morte. Um terror! Que tal avançar um pouquinho mais? Estados que patrocinam intervenções militares ou promovem guerras de extermínio, matando a rodo em ambos os casos, seriam, claramente e por motivos óbvios, terroristas. Seus representantes cairiam na mesma nomenclatura das facções criminosas. Resolvido? Pois sim…

Honestamente, não tenho esperança de reversão do quadro atual da segurança pública, ao menos no curto e médio prazos. Há tantas variáveis em jogo e tão pouca vontade política de enfrentar a encrenca que a perspectiva não é boa. Durma-se com um barulho desses. De helicópteros, gritos de dor e metralhas.

Abraço. E, apesar de tudo, coragem.