Há trinta anos, em 4 de novembro de 1995, Binyamin Netanyahu declarou guerra a Israel. Com três tiros disparados contra as costas do sionismo humanista, socialista e pluralista, aquele que buscava a paz e o reconhecimento de que, entre o rio e o mar, deveriam existir dois Estados, Israel e Palestina, foi assassinado Yitzhak Rabin. Com ele, desmoronou o sonho de uma paz justa e duradoura.
O assassinato de Rabin não foi um episódio isolado nem obra de um indivíduo solitário. Tratou-se do resultado de um longo processo de doutrinação de gerações de judeus religiosos, nascidos após 1967 e, sobretudo, depois de 1977. Para compreender plenamente esse processo, é necessário regressar às origens do movimento sionista, no final do século XIX.
A principal vertente do sionismo em seus primórdios, na década de 1890, foi o sionismo socialista. Até a formação do Estado, em 1948, os pioneiros judeus sionistas fundaram os kibutzim e moshavim, o sistema público de saúde, as universidades, o sistema educacional gratuito, o sindicato dos trabalhadores e toda a infraestrutura de um novo país que, até então, era apenas deserto e sonho. Durante cerca de nove décadas, o Partido Trabalhista governou Israel, eleito de forma democrática e representando os ideais fundadores do movimento.
A Guerra dos Seis Dias (1967) e a subsequente conquista da Cisjordânia, Jerusalém Oriental e Faixa de Gaza despertaram, entre os setores religiosos e o sionismo revisionista, a reivindicação da anexação e colonização desses territórios. Nas escolas religiosas e, sobretudo, no movimento juvenil Bnei Akiva, a mitzvá[1] le’yashev et ha’aretz (“assentar-se na Terra”) transformou-se no mandamento central do sionismo religioso.
Após a Guerra do Yom Kipur (1973), a comissão de inquérito condenou o governo trabalhista pelo fracasso em prever o conflito. Como consequência, nas eleições de 1977, o Likud, partido da corrente revisionista[2] de direita, venceu as eleições e formou governo com o Partido Sionista Religioso e o partido ultraortodoxo. Desde então, o Likud governou quase de forma contínua, com breves intervalos.
Apesar de sua ideologia revisionista, de extrema direita e favorável ao “Grande Israel” e à anexação dos territórios ocupados, Menachem Begin, líder histórico do movimento terrorista Etzel e posteriormente primeiro-ministro pelo Likud, demonstrava profundo respeito pelo sistema democrático e pela independência do poder judiciário. Quando o rabino Reuven Kahana, líder do partido Kach (precursor e mentor de Itamar Ben-Gvir), subia à tribuna da Knesset, todos os membros do Likud se retiravam em protesto, por se tratar de um partido racista, antidemocrático e de extrema direita. Esse episódio é fundamental para compreender a transformação da direita israelense e a sua situação atual.
Paradoxalmente, foi Begin quem assinou, em 1979, o Acordo de Paz com o Egito, devolvendo todo o Sinai e desmantelando a cidade de Yamit. Criticado por setores da direita e por membros de seu próprio partido, respondeu:
“Sim, a paz exige sacrifícios, mas o pior acordo de paz é melhor do que todas as guerras.”
Em 13 de julho de 1992, Yitzhak Rabin venceu as eleições após 15 anos de hegemonia do Likud. Logo ao assumir, iniciou o processo que culminaria, em 13 de setembro de 1993, na assinatura dos Acordos de Oslo, nos quais Israel e a OLP, sob a liderança de Yasser Arafat, reconheceram mutuamente o direito de ambos os povos à autodeterminação nacional.
Em março de 1993, Netanyahu assumiu a liderança do Likud. A partir de então, unificou a direita, a extrema direita, os partidos do sionismo religioso e os partidos ultra ortodoxos em uma frente única contra o Acordo de Oslo e o governo de Rabin, acusando-o de traição e de colocar em risco a segurança nacional.
As manifestações tornaram-se progressivamente mais violentas. Em 2 de outubro de 1995, rabinos-chefes do judaísmo ortodoxo realizaram, em frente à residência de Rabin, o ritual místico de Pulsa de Nura, clamando por sua morte.
O auge das manifestações ocorreu em 5 de outubro de 1995, na Praça Sion, em Jerusalém, onde líderes do Likud e da direita assistiam, de uma varanda, aos manifestantes que portavam cartazes de Rabin com uniforme nazista e gritavam: “Morte ao traidor!”.
Em 4 de novembro de 1995, movimentos e partidos de centro e esquerda promoveram uma grande manifestação em apoio ao processo de paz, reunindo mais de 300 mil pessoas. Eu estava entre elas. Encerramos o ato cantando Shir LaShalom — o hino da paz e da esperança. Acreditávamos, sinceramente, que a paz estava ao nosso alcance.
Mas, enquanto a esquerda sonhava com reconciliação, a direita conspirava. O clima de incitação ao ódio, legitimado por Binyamin Netanyahu, líderes políticos da direita e da extrema direita e rabinos do sionismo religioso e messiânico, culminou no assassinato de Rabin por Yigal Amir, militante do partido Kach (hoje representado por Otzma Yehudit, de Ben-Gvir). Amir foi o executor, mas a ideologia e o ambiente que tornaram o crime possível foram construídos de cima, pelos líderes políticos e espirituais.
Naquela noite, a democracia israelense foi ferida mortalmente. Netanyahu iniciou um processo de erosão dos valores fundamentais do Estado democrático, judaico, liberal e pluralista, processo que, décadas depois, em 2022, desembocaria nas tentativas de golpe contra o sistema judiciário, a imprensa, a sociedade civil, as minorias e no massacre de 7 de outubro de 2023.
Após o assassinato de Rabin, Netanyahu venceu as eleições de 1996. Perdendo as eleições em 1999, passou 9 anos fora do poder. Nesse período, ocorreu a retirada de Gaza, e em 2007 o Hamas assumiu o controle de Gaza.
Retornando ao poder em 2009, Netanyahu surpreendeu com um tom aparentemente moderado e, em discurso na Universidade Bar-Ilan, reconhecendo, ao menos formalmente, a solução de dois Estados. Pouco depois, no entanto, retrocedeu, afirmando que “nunca haverá um Estado palestino”. A guinada definitiva ocorreu com dois fatores centrais:
- A criação, em 2012, do Fórum Kohelet, think tank financiado por setores conservadores israelenses e norte-americanos, responsável por definir a agenda ideológica da direita — incluindo a reforma judicial, a Lei do Estado-Nação e a marginalização do árabe como língua oficial.
- O envolvimento de Netanyahu em escândalos de corrupção (casos 1000, 2000 e 4000), que o tornaram refém de seus aliados da extrema direita e dos partidos religiosos.
A partir desse momento, consolidou-se o chamado “Bloco Natural”, que governou Israel por 16 anos, até os dias de hoje, com apenas um breve intervalo (2021–2022). Em 2022, Netanyahu formou o governo mais à direita da história do país, composto por cerca de 25% de ministros oriundos de partidos messiânicos, responsáveis pela colonização da Cisjordânia e defensores da anexação total dos territórios ocupados e da limpeza étnica dos palestinos, e outros 25% dos partidos ultraortodoxos, exigindo leis religiosas e benefícios exclusivos para o setor haredi. Com mais da metade de seu partido radicalizado, Netanyahu formou um governo de caráter fascista, messiânico e fundamentalista, empenhado em consolidar o que denomino “ditadura democrática”.
Essa definição se sustenta nas declarações de vários ministros do atual governo: “Fomos eleitos pelo povo, pela maioria, portanto temos o direito de fazer o que quisermos.”
Durante todo esse período, Netanyahu sustentou uma política de fortalecimento do Hamas, com o objetivo de enfraquecer a Autoridade Palestina e justificar a ausência de um interlocutor para a paz. O governo israelense permitiu que o Qatar transferisse mensalmente milhões de dólares ao Hamas, plenamente ciente de que esses recursos eram destinados a armamentos e túneis. Sua doutrina de “gerenciar o conflito” visava perpetuar o status quo da guerra constante, utilizando o medo como instrumento de dominação política e social.
A dependência de Netanyahu em relação aos grupos de extrema direita provocou uma radicalização da política contra a população palestina da Cisjordânia, enquanto sua submissão aos ultraortodoxos resultou em leis religiosas, isenções militares e privilégios econômicos exclusivos.
A ofensiva contra o Poder Judiciário tornou-se o eixo central de seu governo, uma tentativa deliberada de enfraquecer o Supremo Tribunal da Justiça e eliminar os freios institucionais. O ataque à imprensa, ao sistema educacional, às ONGs de direitos humanos e às instituições civis completou esse quadro de desintegração democrática.
A política de “alimentar o lobo mau” explodiu em 7 de outubro de 2023. O massacre perpetrado pelo Hamas no sul de Israel revelou o fracasso da estratégia de Netanyahu, ou, talvez, sua premeditação. Mesmo ciente do fortalecimento militar do Hamas, o primeiro-ministro nada fez para contê-lo. A pergunta que se impõe é: por quê?
A resposta talvez venha apenas de uma Comissão Nacional de Inquérito, a mesma que Netanyahu hoje tenta impedir, embora tenha exigido uma em 2006, após a Segunda Guerra do Líbano, durante o governo do partido Kadima e do primeiro-ministro Ehud Olmert.
Sob intensa pressão internacional do presidente Donald Trump, Netanyahu encerrou a guerra, ciente de que, ao fazê-lo, teria de enfrentar a Justiça, as eleições e a opinião pública. Imediatamente, a seu mando, ministros iniciaram uma nova guerra interna, tentando abalar as bases do sistema democrático israelense. Este governo mergulhou Israel em um ciclo de guerras internas e externas, corroendo a confiança nas instituições e dividindo profundamente a sociedade.
Hoje, embora as pesquisas indiquem uma clara maioria da oposição (71 cadeiras contra 49 do “Bloco Natural”), o governo insiste em reivindicar um “mandato popular” absoluto, um argumento autoritário travestido de legitimidade democrática.
Para sobreviver, Binyamin Netanyahu declarou guerra a Israel. O primeiro passo foram três tiros. Rabin morreu, mas seu legado não. Somente a união de judeus e árabes em Israel poderá transformar esta guerra em uma vitória da esperança e no cumprimento do legado de Rabin:
A PAZ.
[1] Leis religiosas. Ao total 613 leis como o shabat (proibição de trabalhar no sabado), kashrut (leis alimentares).
[2] Vertente do sionismo de direita a favor do Grande Israel.