Não estava para conversa. Percebi de cara o mau humor e tentei puxar assunto. Sei que pré-adolescentes andam no fio da navalha, são início de projeto que ninguém sabe definir. Querem liberdade, mas a receiam igualmente. De qualquer forma, resolvi insistir. A neta valia o esforço.

Depois de alguma hesitação, abriu o baú. Os pais não permitiam que ela tivesse celular. Era a última da turma sem o aparelho, sentia-se discriminada e não tinha acesso a programas dos amigos que se comunicavam pelo zap. Entendi o drama. Argumentei que o assunto valia uma missa, digo, uma conversa com os pais. Avisei que conversar não garante nada a priori, mas permite conhecer os argumentos do interlocutor. Permite, também e sobretudo, quebrar gelos. De brinde, poderia perceber que adultos são dialogáveis. Não quis saber. A zanga criava uma blindagem de incomunicação.

Breque. Outro dia, estava ouvindo um comentário do Nelson Motta sobre celulares. Falou sobre o caráter hipnótico e diversionista dos aparelhos. Flagrava-se em redes sociais, deslizando o dedo indicador pela tela durante uma, duas horas. Para quê? Para porra nenhuma, bradou.

As reclamações continuaram. Queria andar sozinha pelas ruas, sem adultos na cola. Era o canto sedutor da liberdade, salve ela. Fui solidário a este desejo tão forte e humano, mas expliquei-lhe que a cidade anda perigosa, imprevisível, maliciosa, impiedosa. Disse-lhe que, na sua idade, o Menino ia sozinho para todo canto em bondes e lotações, gastava solas de Vulcabrás em direção à escola. Misturava-se, também sozinho, com multidões flamengas em domingos de Maracanã. Hoje, seriam atitudes quase temerárias. Outros tempos, outros medos.

Breque segundo. Praticamente um em cada cinco brasileiros mora em áreas com presença explícita de traficantes de drogas ou milicianos. A bandidagem está presente em todas as frestas sociais. Do clube de futebol às apostas eletrônicas, de empresas de ônibus a postos de gasolina. Não se surpreenda se o homem da carrocinha da Kibon ou o vendedor de pirulitos cônicos de açúcar queimado (ainda existem?) tiver vínculo com a barra pesada. É a realidade, que deixou de ser ficcional para ser faccional.

A neta não disse que queria mocotó, mas precisava de espaço só dela. Nuvem negra pairava naquela cabecinha em mutação. Viajei imediatamente para um quarto de porta fechada, sede da República Popular da Grumânia. Sob um pôster debochado do Robert Crumb, o Menino estava em plena fase de troca de pele. Ouvia um pouco do Schubert herdado do Grande (quase chorava com a Sinfonia Inacabada) e tremia com os solos de flauta do duende Ian Anderson no Jethro Tull. Era clássico e desvairado ao mesmo tempo, sem tendência clara. Era Woodstock, mas com terno e gravata. Sem diálogo com os da casa, comandava a orquestra em absoluta solidão, à qual parecia condenado. Tinha a impressão, qual Vinícius de Moraes nos primórdios, que estava destinado ao sofrimento. A vida tratou de, em ritmo de cágado, abrir a porta. Lá fora tinha dor, mas também algumas promessas de prazer.

A atual geração enfrenta turbulências existenciais semelhantes às da minha, mas sofre ameaças que desconhecemos lá atrás. Uma pesquisa recente mostrou que mais de 80% dos jovens entre 11 e 17 anos no mundo são insuficientemente ativos, gatilho para problemas de saúde na maturidade. Telas, altissonantes imperatrizes da modernidade, são sedutoras e induzem ao imobilismo. O Menino tinha vários campos de pelada à disposição. Da terra batida ao cimento áspero, éramos craques em movimento. Com bola de meia, plástico ou couro. Sem pagar pedágio para ninguém.

Na idade da neta, surgem encruzilhadas e demandas. Tudo fica em aberto, as aparências valem pouco. Quem vê (só) cara, não vê nada. Um célebre poema da polonesa Wislawa Szymborska refere-se a uma foto de Hitler ainda bebê. “E quem é essa gracinha de tiptop?/É o Adolfinho, filho do casal Hitler!/Será que vai se tornar um doutor em direito?/Ou um tenor da ópera de Viena?”. Depois de listar fofuras, ela conclui: “Não se ouve o ladrar dos cães nem os passos do destino”. Sabemos para onde foi aquele bebê. Não sei, ninguém sabe, aonde vão dar as escolhas da neta. Uma coisa, entretanto, posso garantir. Não economizarei saliva, nem palavras, para acompanhá-la na estrada que escolher. O que tenho de melhor para lhe oferecer está na frase final de uma música dos Beatles, Hey bulldog: “If you’re lonely, you can talk to me”.

Abraço. E coragem.