O anúncio do prêmio Nobel de Literatura de 1978 abriu todos os baús de espantos. O vencedor foi um judeu polonês radicado em New York, que escreveu toda a sua obra em ídish, idioma ancestral dos ashquenazitas, já naquela época enfrentando a crise definitiva como meio de comunicação.

Isaac Bashevis Singer foi a Estocolmo receber o prêmio das mãos do rei da Suécia e proferiu um discurso irônico e muito bem-humorado. Comentou que não se cansavam de lhe perguntar por quê insistia em escrever num idioma com cada vez menos praticantes, reduzindo tendencialmente o número de leitores. Disse que a resposta era simples. Sendo judeu religioso (ironia: era um agnóstico nada ortodoxo), acreditava na vinda do Messias (outra gozação, digo, ironia) e, com a sua chegada, ressuscitariam os judeus de todas as épocas. Ora, o que fariam muitos deles? Sacudiriam a poeira dos séculos e perguntariam onde encontrar bons textos em ídish para se atualizar. Era para eles, ex-mortos, que escrevia.

Em sua biografia, Singer conta como surgiu a ideia de contar histórias, vulgo literatura. Seu pai, rabino em uma cidadezinha polonesa, atuava como uma espécie de juiz. Dava conselhos sobre todos os assuntos. Crises existenciais e conjugais, brigas entre vizinhos, interpretações de textos sagrados, como sobreviver ao preço da cebola na feira (que andava pela hora da morte). Certa vez, Singer viu um casal estremecido quase partir pra ignorância. Trocaram insultos dignos das pragas de Scholem Aleichem. Depois de algum tempo, com a mediação do velho Pinchas, saíram de mãos dadas, sem adiar carícias. O pequeno Isaac pensou: taí uma boa história. Começou a colecioná-las e contá-las. Uma estrada que o levaria ao Nobel.

O caminho até Estocolmo foi como a vida: dores, encantos, quebra-molas, suspiros & retiros. Aprendi lendo sobre sua trajetória como é fundamental imaginar, inventar, sonhar. Mais do que tudo, Singer, egresso de um universo limitado e de poucas cores e esperanças, encaminhou algumas respostas ao mistério do prazer que sentem os que escrevem, utópicos andarilhos em busca de diálogo. Para que servem as utopias?

Chamo ao palco Eduardo Galeano. O uruguaio apaixonado por futebol e gentes costumava citar Fernando Birri, cineasta, poeta e escritor argentino, quando lhe perguntavam sobre utopias. Durante uma palestra na Colômbia, perguntaram a Berri se havia utilidade nas utopias. Respondeu que elas estavam no horizonte, sendo, portanto, inalcançáveis. Ir em sua direção é saber disso: não se chegará a elas. Qual é, então, o sentido, de buscá-las? É o da própria caminhada, suas surpresas, belezas e enigmas. Completo com o sevilhano Antonio Machado: Caminante, no hay camino/Se hace el camino al andar.

Não é nada fácil construir estas caminhadas. Tarefa de gerações. Conheci muita gente que se perdeu antes de começá-las. Cruzei com outros tantos que, desenganados, ficaram rancorosos, isolaram-se, negaram as utopias. O Grande bem que tentou, mas naufragou de sonhos ressecados. Sonhou construir prédios, terminou lidando com cáries e tártaros. Angustiou-se no terreno afetivo. Desviava-se dos buracos da estrada, criando atalhos que aliviavam o peso n’alma. Seu rosto, porém, imensamente triste, mostrava que a caminhada não iria longe. Não foi mesmo.

Minha geração descobriu cedo que boa companhia esclarece o roteiro. Nosso século está fazendo questão de sabotar a via coletiva. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, a solidão foi responsável por cerca de 871 mil mortes anuais entre 2014 e 2019. Decupando a estatística: a cada hora, cem pessoas morreram por causa do problema. Estar só atinge mais os adolescentes e jovens adultos, o que é uma tragédia. Justamente na fase de alçar voo, humanos se isolam ou são isolados. Os laços comunitários, a presença do Outro, a importância de olhar além das telas, tudo desintegra.

Infelizmente, o velho Pinchas Singer, com sua sabedoria intuitiva e sua percepção da vida, já não existe para anunciar os horizontes. Resta a esperança de que as novas gerações esbarrem nas estradas que começamos a trilhar e fracassamos em terminar. Quem sabe usam um bocadinho do que acumulamos para recomeçar a jornada.

Abraço. Coragem e perseverança.