Veja, ilustre passageiro, o belo tipo faceiro que você tem ao seu lado. Assim começava uma propaganda muito popular nos bondes do Rio de Janeiro, anunciando uma mezinha para resolver problemas respiratórios. O tipo faceiro resumia a imagem idílica que se tinha do carioca genérico. De bem com a vida, malandragem benigna, vacinado contra mal me queres e efeitos colaterais dos pasteis da Central do Brasil.

Quando a revista inglesa Time Out classificou uma rua de Botafogo como um dos lugares mais descolados do planeta, achei que seria prêmio pela faceirice. Ledo e ivo engano. A Arnaldo Quintela está no centro de protestos de moradores das vizinhanças pelas mesmas razões das de tantas outras ruas cariocas infectadas pela praga dos bares. É sede de uma boemia descontrolada, que inferniza milhares de moradores até alta madrugada, sete dias por semana. A diversão de alguns é o horror de muitos. Há inúmeros relatos de gente que não consegue dormir ou precisa de drogas pesadas para conciliar o sono. A circulação pelas calçadas virou esporte de risco. Poderes executivo e legislativo são cúmplices da baderna.

Bem, já que os botecos substituíram tremoços e ovos coloridos por iguarias gourmet e decibéis homicidas, quem sabe as praças, suburbanas ou não, aceitam exilados em busca de silêncio? Levantamento recente mostrou o estado deplorável da maioria delas. Bancos quebrados, brinquedos para crianças deteriorados, grama largada, lixo espalhado. Quem se anima a deixar-se levar por sinfonias da passarada em ambientes assim, tão abandonados?

Pensei que sol, mar e montanhas no horizonte poderiam recuperar a imagem benfazeja da turma faceira. Estaria salva a carioquice. Calçadões na orla da zona sul seriam um bom começo. O prefeito, este senhor tão camaleônico, decretou uma série de providências para acabar com a esculhambação geral da área. Ora viva! Teríamos menos barulho nos quiosques, retirada da camelotagem, repressão aos que, na mão grande, se apoderam de trechos da areia para fins privados. Antes mesmo de vigorar, as medidas foram canceladas. Em nome da “liberdade de empreender” e do oportunismo eleitoral, está mantida a lei da desordem. O prefeitinho, do alto do seu chapéu demagógico, já disse que “Maricá é uma merda”. Acho que ele quer expandir a fronteira fecal e transformar o Rio numa cidade “em situação de merda”. Tapete vermelho para os turistas, colchão de pregos para os locais.

Restava uma esperança derradeira. Qual é o lugar onde as pessoas estão mais vulneráveis e carentes de conforto, solidariedade e acompanhamento sensível? O hospital. Estaria nele, abrigada em jaleco, a sobrevivência do carioca mítico? Descubro que o janota metido a sambista sancionou uma lei que obriga hospitais, clínicas de planejamento familiar e unidades de saúde a exibir, pasmem!, cartazes com frases como “o nascituro é descartado como lixo hospitalar”. Sim, é o discurso reacionário de correntes religiosas antiaborto, imparáveis em sua jornada rumo à Idade Média. Mulheres vítimas de estupro, com gravidez de alto risco e fetos anencéfalos são submetidas à doutrinação em momento de grande fragilidade. Como disse a jornalista Mariliz Pereira Jorge: “O hospital, que deveria ser espaço de proteção, virou confessionário forçado. Não há escuta, há condenação”.

Parece que, junto com os bondes, desapareceu a leveza de uma cidade que profissionalizou a desordem e maltrata quem nela vive. Pior. Brotou uma indiferença, um imobilismo, um conformismo, que tomam como destino aquilo que é obra de humanos/desumanos interesses. Para onde foi a rebeldia que levou, há 57 anos (completados no dia 26 de junho), cem mil manifestantes contra a ditadura, no centro da cidade? Para onde foi a indignação, a capacidade de mobilização das associações de moradores, hoje sombras do passado não tão remoto? Onde os faceiros que tomaram praças e avenidas para pedir anistia e exigir eleições diretas? Rhum Creosotado não dá conta de responder. A cidade, desconsolada, chora.

Abraço. E coragem.