The horror, the horror (Joseph Conrad)

Sentar em cima de barril de pólvora. Expressão já antiga, do tempo dos corsários e da aniquilação de populações autóctones pelas potências coloniais. Aquelas que minha geração ouviu dizer encarnarem a “civilização”. Significava flertar com o perigo, brincar com fogo (sem fazer xixi na cama). Caiu em desuso por uma razão tão banal quanto lamentável: pólvora deixou de simbolizar o maior perigo de todos.

O composto negro dos traques juninos, granadas e munição de guerra, inventado pelos chineses, foi substituído, no imaginário do Grande Medo, pelo arsenal nuclear. Desde o lançamento das bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki, alvos civis, abriu-se a Caixa de Pandora. Multiplicaram-se armas capazes de levar à extinção da vida no planeta. Nada do delírio de 1914, quando jovens soldados foram em festa às trincheiras, iludidos com a propaganda de que aquela seria a “guerra para acabar todas as guerras”. Se o arsenal nuclear for acionado hoje pelo oligopólio da Morte (9 países têm armamento nuclear, num total de 12.500 ogivas), não sobrará ser vivo para contar a história.

Desde 1945, houve ao menos um momento em que o Apocalipse fez uma mesura e quase descolou sua entrada triunfal. No início dos anos 60, depois que os Estados Unidos organizaram a fracassada invasão da Baía dos Porcos, em Cuba, na tentativa de liquidar a revolução socialista da ilha caribenha, a União Soviética enviou para lá ogivas nucleares. Dissuasão de novas aventuras contrarrevolucionárias. Descoberto o arsenal, faltou pouco para um conflito nuclear. Na era atômica, qualquer erro de avaliação, por menor que seja, sinalizará o The End para a esfera enlouquecida que habitamos.

Aflito com o que anda acontecendo no mundo, a sucessão interminável de dejetos e ameaças, resolvi mergulhar nas origens da era nuclear. Encarei a monumental biografia (mais de 600 páginas) de J. Robert Oppenheimer, o cientista que liderou a equipe que viabilizou o primeiro artefato atômico da história. Já havia visto o filme dirigido por Christopher Nolan, mas senti necessidade de aprofundar as muitas questões (éticas, militares, políticas) desencadeadas pelo Projeto Manhattan. Não dá para abordá-las todas neste espaço limitado, mas vou destacar algumas que considero muito importantes.

Talvez a principal conclusão, perturbadora e revoltante, seja a de que, no útero, a bomba atômica era militarmente desnecessária. Kai Bird e Martin J. Sherwin, autores da biografia, provam com riqueza de detalhes que os nazistas estavam muito longe de desenvolver armamento nuclear. Assinaram a rendição em maio de 1945. Além disso, no primeiro semestre de 1945 o Japão estava militarmente derrotado. Bombardeios selvagens com bombas incendiárias reduziram mais de metade de Tóquio a um monte de escombros fumegantes. Isso em uma noite! Entre 50 e 90% das populações de 67 cidades japonesas foram mortas em bombardeios semelhantes, antes de Hiroshima e Nagasaki. O alto escalão nipônico já discutia os termos da rendição. Por que, então, aniquilar covardemente duas cidades que não tinham qualquer relevância militar?

A resposta foi dada em Los Alamos pelo general Leslie Groves, coordenador geral do Projeto Manhattan. Em março de 1944, numa conversa na presença do físico polonês Joseph Rotblat, o general disse que “o principal objetivo deste projeto é dominar os russos”. Rotblat, em choque, achava que o trabalho fosse para impedir a vitória nazista e não que “a arma que estávamos construindo seria dirigida contra o povo que estava fazendo sacrifícios extremos para esse objetivo”. Naquele mesmo ano, Rotblat desligou-se do projeto. Pode-se dizer que a bomba atômica foi o primeiro lance da Guerra Fria.

É importante registrar que cientistas de renome tornaram pública sua desaprovação às armas atômicas. Denunciaram a intenção de usá-las contra populações civis e defenderam um freio na produção dos artefatos. Isidor Rabi, físico detentor do Prêmio Nobel em 1944 e amigo próximo de Oppenheimer, havia se recusado a participar do Projeto Manhattan com um argumento poderoso: “Não quero que 300 anos de evolução da Física resultem na produção de uma bomba”.

Não há qualquer perspectiva de desativação do arsenal nuclear mundial. O fechado clube militar atômico mantém a capacidade de nos devolver à idade da pedra. Estamos à mercê do imponderável, de indivíduos e interesses que podem tornar macabra realidade o que o premiê soviético Nikita Kruschev disse ao presidente norte-americano John Kennedy durante a crise dos mísseis em Cuba: “Podemos chegar ao tempo em que os sobreviventes invejarão os mortos”.

No início dos anos 70, assisti no extinto cinema Madri o antológico “Planeta dos macacos”. Na cena final, Charlton Heston caminha por uma praia deserta, quando se depara com o que sobrara da Estátua da Liberdade. Descobre, assombrado, que o lugar onde estava, habitado por símios, era a Terra pós-apocalipse nuclear. Em desespero, ajoelha-se e desabafa: “Vocês explodiram tudo. Malditos sejam! Deus os mande para o Inferno”. Profecia? Quem avisa amigo é?

Abraço. E muita, muita, coragem.