Até há pouco tempo, era para mim um completo desconhecido. De repente, uma enxurrada de comentários sobre um certo Léo Lins me chamou a atenção. Seria mais um desses casos de notoriedade instantânea tão comuns nas redes sociais?
Consta que o cidadão apresentou-se num teatro e cometeu uma longa fieira de piadas preconceituosas. Foi processado e condenado a oito anos de prisão pelo conteúdo ofensivo delas contra vários grupos. A sentença reacendeu vários debates importantes, que merecem atenção. Há limites para a liberdade de expressão? Há limites para o que se considera humor?
Não vou comentar aspectos legais, embora me pareça que a juíza seguiu estritamente a legislação em vigor sobre crimes de injúria racial e afins. Na sentença, a magistrada citou várias das piadas, todas abomináveis, horrendas, desprezíveis. O que me interessa é evitar os tiroteios lacrativos tão comuns no espaço virtual e pensar sobre “fenômenos” como Léo Lins, que tem 3 milhões de seguidores no Instagram e atrai grandes plateias para suas apresentações.
Nada de conclusões categóricas. Prefiro expor minhas dúvidas. Léo Lins e sua obra podre não surgiram no vácuo. Somos uma sociedade profundamente racista, o preconceito rotineiro se manifesta em escolas, shoppings, campos de futebol, relações sociais, locais de trabalho e moradia. Estamos habituados ao “ponha-se no seu lugar”, “quem você pensa que é?”, ao que Roberto DaMatta definiu como “resto abominável de uma sociedade escravocrata, aristocrática e patrimonialista”. Fomos educados para normalizar a inferiorização racial e o desprezo por grupos de diferentes.
Há os que criticam a punição a Léo Lins alegando que ele, pendurado num crachá de comediante, falou apenas para um público limitado, que pagou para vê-lo. Na era digital este é um argumento tolo. O que ele fala é imediatamente reproduzido para milhões de frequentadores de redes sociais, que replicam som e imagem para outros tantos milhões. Qual é a consequência desta cadeia de acontecimentos na consolidação de estereótipos e preconceitos? Serão apenas piadas “desagradáveis”, insultos restritos, ou ferramenta útil para, em terreno adubado por históricas discriminações, reproduzir o lixo desinformativo e separatista?
Para não passar em branco, fecho as narinas, tomo um Engov e mostro algumas das pérolas de Léo Lins. “Pra adotar criança, vai na África que tem plantação. Escolhe pelo pé, se for escurinho vai dar like no insta, traz para o Bruno Gagliasso”. “Negro reclama de não arrumar emprego, mas, na época da escravidão, já nascia empregado e também achava ruim, aí é difícil ajudar”. “Cachorro é como se fosse um filho com leucemia. É um compromisso para 15 anos”. “Tem ser humano que não é 100% humano. O nordestino do avião? 72%”. “Como vou emagrecer? Pegando AIDS! Você não adora comer de tudo? Sai comendo gay sem camisinha!”. Quem é capaz de rir disso, está a um passo de assistir com prazer uma sessão do documentário nazista Der ewige jude (O judeu eterno), de 1940, encomendado por Goebbels e baseado na vasta mitologia antissemita acumulada por séculos.
Há opiniões variadas e respeitáveis sobre a melhor forma de tratar casos como o de piadas hediondas. O assunto não é nada novo. Quem assistia a Escolinha do Professor Raymundo há de lembrar personagens/caricaturas como o judeu sovina, a portuguesa ignorante, o caipira bronco, o homossexual escrachado. Tudo parecia muito inocente, chancelado por Chico Anysio, artista talentoso. Serão mesmo sátiras inofensivas, apenas humor “desafiante declarado da hegemonia progressista” (como afirmou, em linguagem característica, um acadêmico da UFBa), ou casos graves de racismo recreativo?
Por falar em sátira, lembro do comportamento de Getúlio Vargas, ditador no Estado Novo. Dizia-se que frequentava os espetáculos de teatro de revista na praça Tiradentes, que o satirizavam em sketches e músicas. Divertia-se muito com as zombarias. De quebra, não tirava os olhos das vedetes, especialmente da Virgínia Lane, que acabou habitué do Palácio do Catete. Caso típico de piada que não mata, nem derruba governo. Quase um século depois, há muitos ruídos no território da comicidade, que podem não matar de imediato, mas causam estragos de consequências imprevisíveis que a sociedade precisa avaliar.
Abraço. E coragem.