Não faz muito, estive nas estepes da Ásia Central. Região de uzbeques, cazaques e que tais. Viagem inesquecível. Paisagens planas, intimidade respeitosa de homens com a Natureza, silêncios expressivos. O melhor é que apreciei tudo isso sem sair do lugar, apenas fechando os olhos e ouvindo o poema sinfônico de Borodin composto em 1880. Está tudo lá.
O primeiro contato com Borodin veio através de um LP dos anos 60 com canções russas (ainda o tenho, com os amarelos de idade avançada na capa). Eugene Ormandy regia a Orquestra de Filadélfia, cargo que ocupou por mais de 40 anos. Minha geração viveu a transição acelerada das formas de ouvir música. Do disco de goma-laca (78 rpm), que quebrava com irritante facilidade e fazia a festa do demagogo Flávio Cavalcanti, ao LP de vinil (33 rpm), passando depois por fitas cassete, CDs e as atuais plataformas etéreas. Num dos filmes Men in Black, um protagonista comenta que não tinha mais paciência para trocar o formato do disco branco dos Beatles. Ainda ouço CDs com frequência, os LPs de vinil voltaram espantosamente à moda, mas isso já é outra história.
A aceleração das transformações tecnológicas, que não se reduzem à música, me leva a pensar no que aguardam a nova geração e as que virão em seguida. Com filhos e netos nas vizinhanças, dá calafrios desenhar os possíveis cenários do futuro. Não caio na tentação fácil do “antigamente tudo era melhor”. Bestialidades, estupores e inseguranças vêm de muito longe. No entanto, há sinais no horizonte que anunciam tempestades.
Para começo de conversa e manifestação de tristeza, descubro que o hábito da leitura anda patinando. Pesquisa recente mostrou que, no Brasil, 53% dos entrevistados não tinham lido nenhum livro em 2024. No mesmo ano, quase 7 milhões de leitores foram perdidos em relação a 2019. Parece evidente que o vácuo está sendo preenchido por telas de todos os tamanhos e, com elas, cresce a impaciência para dedicar-se à leitura. Livro é objeto grávido de interrogações. Esconde um pacto com a surpresa e o encantamento que se revelam lentamente. Construir na imaginação personagens e histórias exige dedicação, cada vez mais escassa entre os seduzidos pela luz azul do mundo virtual. Aonde isso vai chegar? Ninguém sabe, é como no velho samba da União da Ilha: Como será o amanhã?/Responda quem puder.
A Primeira Guerra Mundial resultou em cerca de 20 milhões de mortos. Usou-se à farta armamento químico. Dizia-se que seria a guerra para acabar com todas as guerras. Vinte e um anos depois do seu final em 1918, a Alemanha nazista invadiu a Polônia, dando início ao conflito mais letal da história (cerca de 80 milhões de mortos). Hoje, os gastos militares no mundo chegam a US$ 2,7 trilhões, cifra maior do que o PIB do Brasil. O investimento na Morte não perde tração. O premiê do Reino Unido, filiado ao Partido Trabalhista (!), acaba de apresentar um plano para construir seis novas fábricas de armas e explosivos, ao custo de US$ 2 bilhões. Esta é a herança que estamos deixando para a turma que chega. Um espírito belicoso, de destruição em massa, de desumanização e ódio. A argamassa solidifica com a ascensão da extrema-direita à tripa forra.
Há duas semanas comentei a patologia chamada bebê reborn. Uma dona de boneca, por exemplo, está na Justiça pleiteando licença maternidade pela posse do plástico humanoide. Quer mais? Em Berlim, funciona um bordel high-tech que oferece aos clientes bonecas para sexo. O serviço é anunciado como alternativa para viver experiências “diferentes” sem “trair de verdade” a parceira. Parece que estamos nos encaminhando para um mundo simulado, um metaverso, o mundo bizarro sugerido nas histórias do Super-Homem. A vida transformada, no limite, em rede social.
Estou partindo do pressuposto de que o planeta continuará existindo. Nem isso se pode garantir. A crise climática não dá trégua. De acordo com a Organização Meteorológica Mundial, há 80% de chances de que pelo menos um dos próximos cinco anos supere 2024 como o mais quente da história.
A geração anterior à minha viu surgirem as bombas atômicas e termonucleares. A minha acompanha a erupção da informática e da automação acelerada de todas as dimensões da vida. Ao mesmo tempo, o Brasil, como acentuou um colunista da Folha de S. Paulo, “está aparvalhado, de fanfarras militares, berrantes, motosserras, negacionismo, homofobia e assombrações religiosas”.
Misturem-se todos esses ingredientes e se terá uma pequena ideia da encrenca que a garotada terá pela frente. Seria bom que ela assumisse a inquietação. Não tivesse vergonha de indignar-se. Carregasse de dúvidas todas as fronteiras existenciais. Seriam os primeiros passos para não apenas estar no mundo, mas ajudar a transformá-lo. Que inclua na rotina ouvir trecho de música do Lenine (o recifense, não o barbicha revolucionário): Meu amor/O que você faria/Se só te restasse um dia?/Se o mundo fosse acabar/Me diz o que você faria. Não adianta procurar respostas no Google.
Abraço. E coragem.