Vai procurar alegria/Fazer moradia na luz do luar, vai vadiar (Zeca Pagodinho)
Acontece com todo o mundo. A gente anda por aí, distraído, cruza com alguém conhecido e, pimba!, não cumprimenta. Não é por mal, o pensamento está pousado na morte da bezerra, fugindo das mazelas cotidianas. De um modo geral, o rápido desencontro não resulta em ruído forte, laços não se rompem pela distração vadia.
Descobri, casualmente, que faço essa desfeita quase todos os dias. Andando pelo calçadão da avenida Atlântica, cruzo com o vulto simpático, sorriso congelado em bronze, aceno que chama jogar conversa fora sem culpa ou titubeio. Nunca parei para sorrir de volta ou imaginar dois dedos de prosa com a estátua do Dorival Caymmi. Até que…
Proseando com o compadre Miguel, livreiro da Folha Seca, ele me chamou a atenção para um diálogo gravado entre Caetano Veloso e o Dorival. A baianidade, ritmo tranquilo, girava em torno da preguiça, folclórica virtude do Dorival. Disse ao Miguel que admiro os que fogem da obrigação neurótica de estar sempre em estado de produção, das multidões que transformaram telas em novos órgãos do corpo humano. Vai daí, resolvi explorar o jeitão preguiçoso de viver.
Dorival e Jorge Amado eram grandes amigos. Suas conversas, reais e surreais, deram bons causos. Vejam esse. Estavam eles na casa de Jorge, em Salvador. Dorival recostado numa rede (ah, as redes baianas…), com os pés no chão, uma perna de cada lado da rede. Jorge, sentado numa cadeira em frente ao amigo. Depois de um silêncio gostoso, Caymmi perguntou:
– Jorge, você que está aí em frente, me diga: minha braguilha está aberta?
– Não, Dorival, tá não.
Caymmi espreguiçou-se, respirou fundo, e arrematou:
– Então eu mijo amanhã…
É bom não confundir preguiça com indolência. Dorival compôs alguns dos maiores clássicos da música brasileira. Seu tempo não era movido a turbina, sua necessidade nada tinha de mercantil. Como dizia o poeta Ferreira Gullar, a arte existe porque a vida não basta. Vida que, para Caymmi, ia muito além de compor e cantar. “Compor vou compondo devagar e sempre, tu sabes como é, música com pressa é aquela droga que tem às pampas sobrando por aí. O tempo que tenho mal chega para viver: visitar Dona Menininha, saudar Xangô, conversar com Mirabeau, me aconselhar com Celestino sobre como investir o dinheiro que não tenho e nunca terei, graças a deus, ouvir Carybé mentir, andar nas ruas, olhar o mar, não fazer nada e tantas outras obrigações que me ocupam o dia inteiro”. Em outro momento, sintetizou: “Uma certa vagabundagem faz bem. Sem essa vagabundagem, não sai”.
No Código Penal de 1890, lia-se que vadiagem é crime. Deixava em aberto a definição de vadiagem, o que resultou, claro, na perseguição de ex-escravos que encontravam enormes dificuldades para entrar no mercado de trabalho. Na aurora do samba, músicos eram considerados vadios e, flagrados com seus instrumentos, iam em cana. João da Baiana tocava seu pandeiro quando foi preso. Solto, o instrumento permaneceu na delegacia, “apreendido”.
Num livro publicado em 2004, Lya Luft defendeu uma “reforma das nossas prioridades”. Cansou de ouvir gente dizendo não ter tempo “nem para respirar”. Sugere uma “faxina em nossos compromissos e deveres”. Claro que há algumas obrigações inegociáveis, que amarram o tempo e a vida. No entanto, há outras que, pesadas corretamente, poderiam ser adiadas ou mesmo canceladas. O objetivo da faxina seria “aliviar a vida, o coração e o pensamento”. O prazer de ficar à toa ou na presença de quem se gosta, sem cronometragem, ajuda um bocado.
Adaptando Mario de Andrade para os dias de hoje, eu diria que muito Elon Musk e pouco Dorival Caymmi os males do mundo são. E antes que me esqueça: cada vez que voltar a cruzar com a estátua do compositor de Marina, O Vento, Maracangalha e Sábado em Copacabana, em frente à colônia de pescadores, vou dar-lhe um saravá silencioso. Sem preguiça.
Abraço. E coragem.