O governo já não fala, emite sons, palavras cortadas ao meio, promessas reduzidas a siglas, ordens que saem dos gabinetes como tosses secas, sem garganta nem destino, e ainda assim encontram ouvidos, encontram braços, encontram gente disposta a executar sem perguntar, a obedecer sem saber, a repetir sem entender, e um país assim não precisa de ideologia, basta-lhe um manual de conduta e o medo bem distribuído como pão racionado, e há tanto medo que já se confundiu com prudência, com civilidade, com responsabilidade nacional, dizem coisas como é melhor não mexer nisso agora, melhor esperar mais um pouco, melhor não confrontar por enquanto, sendo que o agora nunca é o momento certo, e o depois nunca chega, e é nessa hesitação continuamente adiada que se constrói o regime mais eficaz que já tivemos, aquele onde quase ninguém manda e quase todos se calam.
Há quem se levante todo dia com a firmeza mecânica de quem já não espera mais nada, vai trabalhar, ou ao menos tenta, come o que der para comprar com o que restou do salário, escuta o noticiário como quem observa o trânsito, não para entender, mas para confirmar que tudo continua exatamente onde estava, e se alguma mudança chega, chega para pior, e mesmo assim segue-se adiante, porque parar exige mais coragem do que continuar, e coragem é coisa que a gente já gastou como sola de sapato, dizem que o povo está cansado, talvez esteja, mas cansaço, quando vira desculpa, deixa de ser sintoma e passa a ser método, e método, disso sabemos bem, é coisa que este país sempre teve, mesmo que nunca tenhamos ousado dar-lhe esse nome.
O homem que comanda, se é que isso ainda pode ser chamado de comando, esse ofício de agarrar-se ao poder pendurado em cada nova rachadura como quem transforma o desmoronamento em escada, esse homem, portanto, não governa, administra a erosão com a habilidade de quem sabe que a terra cede devagar, e se o buraco se abre com elegância, ninguém grita, e os que andam com ele, ministros de coisa nenhuma, homens de vocabulário inchado e espinha flexível, distribuem palavras como se fossem destinadas apenas ao uso externo, porque por dentro já aprenderam a calar o que pensam, se é que pensam, e se pensam, é apenas no que perderiam caso deixassem de cumprir seu papel na engrenagem.
E o povo, esse mesmo que é chamado de soberano quando se precisa do seu voto e de submisso quando se anunciam cortes, observa tudo com os olhos treinados da normalização, esse hábito lento de aceitar o intolerável desde que ele venha parcelado e sem fazer muito barulho, ninguém quer escândalo, já basta o ruído do cotidiano, os preços, os turnos, os sustos, as sirenes que não dizem se vêm de fora ou de dentro, as estatísticas lidas em voz neutra por apresentadores que ainda acreditam que neutralidade é uma forma de virtude e não de omissão.
Nas escolas se aprende muito pouco e se desaprende muito depressa, e isso parece ser conveniente para todos os envolvidos, os professores que já não ousam, os pais que já não perguntam, os alunos que já nascem treinados para o pragmatismo, aqui não se educa para pensar, educa-se para obedecer, e obedecer é mais fácil quando não se conhece alternativa, por isso se conta a história aos pedaços, as datas importantes são as que servem para desfiles e cerimônias, os nomes que não têm estátua nunca existiram, e a geografia é mais mapa do que chão, um contorno cheio de linhas e zonas e ameaças, mas sem cheiro, sem poeira, sem gente, e assim se cresce num país onde o conhecimento é concessão e a dúvida, perigo, e cresce-se torto, que é o único jeito de caber dentro da estrutura.
O que se vê é um pacto, não dito, não assinado, mas firmado com cada gesto de conformidade, uma cidade cercada por câmeras, uma aldeia que desaparece antes do amanhecer e ninguém menciona no café da manhã, um velho empurrado no mercado e ninguém viu, uma criança sem escola que já aprendeu a calar, e a palavra segurança, dita com tanto fervor, tornou-se a cortina que cobre tudo o que não se quer discutir, há quem aponte o dedo para fora, porque sempre é mais confortável ter um inimigo externo do que encarar a podridão interna, e enquanto isso o país afunda sobre si mesmo, em silêncio, como uma casa construída sobre memória mal resolvida.
Ainda existem os que se dizem bons, e talvez sejam, ao menos aos sábados, ou quando publicam nas redes sociais que o mundo precisa de mais amor, e quando se veem diante da injustiça dizem que é complicado, que não é tão simples, que há dois lados, que é preciso considerar o contexto, e com essas palavras constroem muros mais eficientes que o concreto, porque impedem o pensamento de andar, a compaixão de atravessar, a dúvida de pousar, e onde não se permite dúvida, não há ética, só obediência com verniz de civilidade.
E há beleza, isso não se pode negar, uma beleza que engana, que distrai, que embriaga, as pedras brilhando ao sol, os campos tremendo com o vento, os nomes antigos ainda sussurrados nas ruas velhas, mas tudo isso é superfície, e por baixo a terra treme, não por causa de terremoto, mas por uma tensão que ninguém quer nomear, e que por isso mesmo se torna mais forte, mais funda, mais permanente, como uma rachadura atravessando o centro da consciência.
Escrever, então, não é vaidade, é urgência, porque há coisas que precisam ser ditas antes que se tornem invisíveis, porque quando tudo for normal, até o absurdo será norma, e haverá formulários para a crueldade, filas para a vergonha, carimbos para o silêncio, e se ninguém falar, só restarão os arquivos, e sabemos bem que há arquivos que nunca se abrem, e outros que, quando abertos, já não servem para nada, porque não há mais ninguém vivo que se lembre do que eles significavam.
E se um dia, talvez não hoje, talvez não amanhã, alguém perguntar onde estavam os que sabiam, os que viam, os que podiam ter feito alguma coisa, talvez descubram que estavam exatamente aqui, onde estamos agora, sentados, imóveis, com os olhos abertos mas sem piscar, esperando que alguém, qualquer um, fizesse por nós aquilo que sempre soubemos que nunca faríamos por ninguém.