O resto é silêncio (William Shakespeare)
Ontem, faria sessenta e oito anos. A Indesejada das Gentes solou o bolo de aniversário. Com Ela, não se negocia. Fez plantão no quarto despojado e não se comoveu com o cortejo de amigos que se revezavam na cabeceira do leito, inconformados com o que estava para acontecer. Caronte já preparava os remos para a travessia final. O barqueiro sombrio desconhece o sentido de concessões.
Com pedaços de lucidez que lhe restavam, desejou apenas escapar do mês de fevereiro. Em anos diferentes, fora nele que morreram pessoas queridas. Não conseguiu. Sob os cantares de mockingbirds, que estavam particularmente agitados sob o sol californiano, parou de respirar no ano passado, no último dia do mês agourento.
Habitávamos extremos opostos. Ela tinha a irrequietude de um suricato. Talvez por isso tenha colecionado frustrações afetivas. Preferiu morar longe da família, embora demonstrasse por entrelinhas que não conseguiria viver sem ela. Mudava de planos à tripa forra, parecia estar ausente mesmo quando ficava ao alcance do olho. Escorregadia como os bons dribladores. Através dos alimentos, como cozinhava bem!, cativou, encantou e agregou vizinhos. A cozinha foi, provavelmente, sua área de descarga, de alívio das tensões, do sossego que, fora dali, não se permitia. Recuperou receitas ancestrais da avó materna, pássaro de Makow Mazowiecki, e as publicou num livreto precioso.
Dei-lhe esquecimento e silêncio, que duraram décadas, uma cicatriz no joelho, crueldade adolescente, o pavor de um fantasma (lençol semovente) em noite de ausência dos pais. Criei rivalidades artificiais, rixas pueris. Afrontava sua paixão beatlemaníaca dizendo que os Rolling Stones eram os maiorais. Bobagem que servia para demarcar territórios em épocas de disputa pela atenção dos adultos.
Hoje, muita estrada percorrida, estou convencido de que não é possível conhecer totalmente uma pessoa. Há tantas pedras no caminho, tanto caos e insegurança pendurados, tanta contradição cotidiana, que o máximo que se consegue é uma silhueta precária. Adaptamo-nos a ela para espantar a solidão. Afinal, caetaneando, de perto ninguém é normal.
No final da década de 80, passei por uma fase difícil, que resultou em muitas reavaliações. Com o degelo, selei um tratado de mútua tolerância com ela. Reconhecemos nossas diferenças, mas tentamos, sem rigidez, criar um pouco de intimidade. Visitei-a no exterior algumas vezes, conversamos um tantinho quando ela vinha aqui. Revelou-me, certa vez, um trauma de rachar. O pai morreu de ataque cardíaco aos 41 anos. Um dia antes, ela lhe deu um sanduíche de pão francês com leite condensado. Ao saber da morte fulminante, imaginou que tinha sido a culpada. Por envenenamento! Criança com 9 anos incompletos, pode-se calcular o tamanho do estrago psíquico.
Meses antes de morrer, demonstrou um afeto por mim que não esquecerei. Procurou um presente que teria a minha cara. Achou-o numa feira de antiguidades (sou mesmo muito antigo). Era um lindíssimo tinteiro francês, guarnecido por um leão (tara recorrente dos colonialistas europeus) e velho de séculos, que hoje enfeita minha escrivaninha. Todos os dias me saúda com mesuras imaginárias. Prova definitiva de que construímos laços, apesar de fantasmas e silêncios. Dá uma saudade estranha. Filme falado em sânscrito, sem legendas ou dublagem, que faço questão de não decifrar.
Eu estava no quarto, à cabeceira de seu leito final. Preparou-se para minha vinda com um cabeleireiro amigo, modelador de cabeleiras hollywoodianas, como se fosse receber o imperador da Abissínia. Perguntou-me sobre preferências alimentares. Esses cuidados, esses carinhos, tão imensamente significativos no momento da despedida derradeira, a Ceifadora não ia levar, não.
O sujeito oculto desta pequena, mas necessária, memória é Felicia Gruman Penido. Minha irmã.
Abraço. E coragem.