O diagramador do jornal não deve ter percebido. Colocou em páginas consecutivas, uma ao lado da outra, dois assuntos aparentemente isolados, mas organicamente ligados. Na primeira, verdadeira revelação de horror, somos informados de que quase um terço dos adultos brasileiros (entre 15 e 64 anos) são analfabetos funcionais. Estamos estagnados aí desde 2018. Este mundão de gente não consegue interpretar frases elementares e tem enorme dificuldade para ler com um mínimo de fluência.

Os números aterradores mostram a indigência do sistema educacional básico, amputando o exercício pleno da cidadania. Além da falta crônica dos investimentos necessários, há situações que transformam as escolas em locais perigosos para alunos e professores. De acordo com levantamento do MEC, oito em cada dez professores de escolas públicas já presenciaram atos de bullying em sala de aula. São cada vez mais frequentes, também, os casos de agressões a professores.

A essas barreiras estruturais juntam-se os vícios das onipresentes telas. Conta uma jornalista, hoje professora da graduação, numa crônica recente do Ruy Castro: “É uma luta para fazer com que os alunos leiam um livro inteiro. Eles vivem grudados no TikTok ou no Instagram e não têm concentração. Outro dia, ao ver que todos estavam ao celular, parei a aula. Perguntei a alguns o que estavam vendo – e muitos não se lembravam. Não se lembravam do que tinham acabado de ver 15 segundos atrás!”.

No mundo digitalizado e dinamizado por tecnologias que se renovam rapidamente, o analfabetismo não é diferente de uma prisão. O analfabeto funcional exclui-se não apenas de amplos mercados de trabalho, mas do maravilhamento com as novidades que afirmam a criatividade humana. Não tomará conhecimento, por exemplo, da mais recente descoberta do telescópio James Webb. Analisando imagens do exoplaneta K2-18b, detectou moléculas que podem indicar a presença de formas de vida. Isso a 120 anos-luz de distância da Terra (cada ano-luz representa cerca de 9,5 trilhões de quilômetros)!

Bem, o que aparecia na página ao lado? Um adolescente de 15 anos, tratado como “missionário” e “profeta mirim”, diz ser capaz de curar o câncer. Faz pregações usando gestual e vocabulário de adultos. Simula ataques epilépticos como sinal de contato com transcendências. Já ultrapassou 1 milhão de seguidores em redes sociais. Cada vez que ouço falar neste tipo de charlatanismo, sou tomado por um misto de indignação e compaixão. Charlatães aproveitam-se de carências várias e prometem o impossível. Vejam vocês. Se alguém, qualquer alguém, fosse mesmo capaz de curar o câncer, melhor seria fechar todas as clínicas oncológicas, sucatear os equipamentos terapêuticos e incinerar os medicamentos usados em quimioterapia. Convocava-se o milagreiro, organizar-se-iam (desculpem o modo Jânio Quadros) filas de atendimento e a doença seria banida. Claro que isso jamais acontecerá e as multidões de crédulos, tomadas por dor e desespero, continuarão a idolatrar os mistificadores. Angústia nunca foi boa conselheira.

Há outros minipastores sapateando no rico mercado da fé. Tenho pena desta gente miúda. Encurtam a infância, sacrificada por interesses adultos. Por outro lado, quem consultaria uma criança ou adolescente em busca de orientação de qualquer tipo? É gente imatura, que está em formação, inocente do impiedoso vale de lágrimas, submetida a uma sólida corrente de inseguranças. Podem vestir-se como adultos, mas menores continuam sendo.

Duas páginas de jornal, dois aspectos que nos ajudam a compreender – e temer – o ornitorrinco Brasil.

Abraço. E coragem.