A raça humana/não consegue suportar muita realidade (T. S. Eliot)
Quem mora neste balneário metido a besta conhece bem a expressão malandragem. Embora alguns a levem na maciota, uma brincadeira com assinatura carioca, a verdade é outra. Desde pequeno a ouço com muitas variantes. Quando a cidade era cortada por trilhos, apareceu o malandro que, ardiloso, tentou vender bonde para matutos mineiros. Provavelmente deu com os burros n’água. Mineiro (o folclórico) é quieto, mas de tolo não tem nada. Outros malandros inventaram truques para vender bilhetes de loteria. Existiam os do mundo cão, hábeis na navalha e exploradores do que a crônica policial chamava de baixo meretrício.
As práticas foram se aperfeiçoando e hoje sentam praça na administração municipal do Rio. Temos, aí está!, um prefeito malandro. Adora fazer jogo de cena, fantasiado de gente boa. Na prática, a cidade que governa está entregue às traças. Montado no jogo das aparências, anda lorotando por aí que o Rio deve ser a “capital honorária” do Brasil. Mais um carimbo ilusório, fantasia rota, para quem mora e circula pela cidade, onde o direito de ir e vir em segurança foi amputado e a desordem urbana e a incivilidade reinam sem concorrência e em cada rua, em cada esquina. Não conheço estatísticas, mas suspeito que o Rio não faria feio num torneio de ansiedade, insônia e sustos paranoides.
Desconheço os critérios, mas a Unesco escolheu o Rio como Capital Mundial do Livro em 2025. Sério mesmo? Alguns dos bairros mais populosos da cidade não têm sequer uma livraria decente. A calle Corrientes, em Buenos Aires, tem muito mais livrarias do que o Rio inteiro. Não há políticas públicas de incentivo permanente à leitura e ao consumo de livros. Salvam a honra e o apetite literário dos cariocas os heroicos sebos, polos de resistência bibliófila. Não há mais livrarias como a José Olympio e a Civilização Brasileira, que, muito além da venda de livros, eram pontos de encontro de intelectuais e de convivência entre leitores e seus autores prediletos. O prefeito, claro, capitaliza a notoriedade que lhe caiu no colo. Vai assinar eventos efêmeros, brilharecos que renderão aplausos alugados e morrerão no último dia do ano. Malandragem de baixa estirpe.
Ano passado, o bairro de Copacabana foi violentado muitas vezes por eventos privados. A prefeitura alugou a areia da praia para todo tipo de furdunço. O maior deles, com uma autodenominada periguete recebida a pão-de-ló, forçou os moradores a um exílio interno, ornado por trânsito caótico, vias interditadas, montanhas de lixo, urina e resíduos impublicáveis espalhadas por todo canto. Animado com a publicidade, o Malandro do Piranhão decretou: maio será, doravante, o mês de grandes eventos. Tradução: conformem-se, cidadãos, seu direito de ir e vir estará limitado por um tempinho. Já estou abastecendo meu bunker com provisões e paciência. Daqui a alguns dias, uma certa Lady qualquer coisa (seria a Neide Aparecida, atualizando suas perucas?) vai sacudir a pança e comandar a massa. Ótimo para os que também vão sacudir panças. Nosotros, os demais, fecharemos pra balanço e aguardaremos a borrasca passar.
Se o Reizinho da Cidade Nova gosta de mobilizações, que tal seria transformar o mês de maio, por exemplo, num período de convocação da população para mutirões de conserto e manutenção das escolas municipais? Seria uma forma criativa de aproximar os cariocas da triste realidade dos equipamentos educacionais públicos desta cidade e uma alternativa não demagógica de fazer política ao lado da que João do Rio chamava “alma encantadora das ruas”. Sem plumas, paetês e figurinos exóticos, mas com verdadeiro amor pela cidade.
Ainda em Copacabana (desculpem o excesso de citações do bairro, mas é aí que moro), aconteceu uma situação que resume o espírito de porco que anda reinando por aqui. O cinema Roxy, inaugurado em 1938, fechou as portas e seus restos mortais foram transformados em Roxy Dinner Show. Trata-se de casa de espetáculos para turistas, com refeições inacessíveis ao cidadão médio.
Assim tem funcionado o botequim. Tapete vermelho e balangandãs para turistas, salve-se quem puder para os locais. Com trilha sonora eletrônica em volumes assassinos.
Abraço. E coragem.