Assim tem início o primeiro capítulo do meu livro: Os Judeus são a Nossa Desgraça – Antissemitismo e Direita Radical do Século XIX ao XXI
A Tarde que Mudou Tudo
Berlim, novembro de 1879
A neve caía suavemente sobre Berlim naquela tarde, cobrindo as ruas com um manto branco que parecia querer abafar os passos apressados dos estudantes que se dirigiam ao auditório principal da Universidade Humboldt. Entre eles, Marcus Friedmann, um jovem estudante de direito, ajustava seus óculos embaçados pelo contraste entre o frio exterior e o calor dos corredores lotados.
“Você vai ver, Friedmann, o Professor Treitschke é brilhante!”, exclamou seu colega Hans Weber, enquanto ambos procuravam lugares nas fileiras da frente. Marcus assentiu educadamente, mas algo o incomodava. Nos últimos meses, tinha notado mudanças sutis nas atitudes de alguns professores e colegas. Olhares atravessados, comentários velados, uma frieza que não existia antes.
O burburinho no auditório cessou quando Heinrich von Treitschke, então com 45 anos, emergiu na plataforma. Sua figura imponente, realçada pela barba bem aparada e o olhar penetrante, comandava respeito imediato. Completamente surdo desde a juventude, Treitschke havia desenvolvido uma presença de palco particularmente poderosa, compensando sua incapacidade auditiva com uma voz forte e articulada e uma atenção meticulosa ao ambiente visual. O professor organizou seus papéis com movimentos precisos, quase rituais, enquanto o silêncio expectante crescia.
Na terceira fileira, a Professora Elena Schmidt, da Faculdade de História, observava tudo com olhos críticos. Ela tinha lido os artigos preliminares de Treitschke no Preußische Jahrbücher e pressentia que algo importante – e perturbador – estava prestes a acontecer.
“Prezados colegas…” A voz grave de Treitschke ressoou pelo auditório. Suas primeiras palavras eram medidas, formais, quase entediantes em sua precisão estatística. Números, percentuais, dados sobre distribuição populacional. Marcus relaxou um pouco – parecia apenas mais uma palestra sobre demografia.
Foi então que aconteceu.
“Die Juden sind unser Unglück.”
As palavras caíram no auditório como pedras em um lago plácido, criando ondas que se expandiam em círculos cada vez maiores. Marcus sentiu seu estômago contrair. Ao seu lado, Hans concordava entusiasticamente com a cabeça.
No outro lado do auditório, o professor Heinrich Graetz, historiador judeu respeitado e autor da monumental obra Geschichte der Juden (11 volumes, publicados entre 1853-1875), tomava notas meticulosas. Ele já havia enfrentado Treitschke anteriormente em debates teóricos e, nas semanas seguintes, publicaria uma refutação detalhada deste discurso no jornal alemão-judaico Allgemeine Zeitung des Judentums em 30 de dezembro de 1879, expondo as distorções metodológicas e preconceitos nas teorias de seu colega.
Treitschke continuava, sua voz agora carregada de uma autoridade que transformava preconceito em “teoria científica”. Cada palavra era escolhida com cuidado cirúrgico, cada estatística apresentada com precisão matemática. O veneno era servido em taças de cristal.
“Observe”, dizia ele, “como 9,4% dos estudantes de Direito em Berlim…” Marcus sentiu os olhares se voltarem sutilmente em sua direção. Sua presença ali, percebeu com um aperto no peito, estava prestes a se tornar uma estatística, uma prova da “teoria” que estava sendo construída diante de seus olhos.
A Professora Schmidt rabiscava furiosamente em seu caderno: “Método perigoso – transforma observação em conclusão predeterminada. Usa ciência como máscara.” Ela já tinha visto algo similar em outros contextos, mas nunca tão meticulosamente construído.
Do lado de fora, a neve continuava caindo, indiferente à transformação que ocorria dentro daquelas paredes. Em uma única tarde, o antigo preconceito religioso estava ganhando uma nova e perigosa roupagem. Não mais gritos nas ruas ou acusações religiosas, mas gráficos, estatísticas e linguagem acadêmica refinada.
Quando a palestra terminou, o auditório explodiu em aplausos. Marcus permaneceu sentado, suas mãos imóveis no colo. Hans o cutucou, animado: “Não é fascinante como ele consegue explicar cientificamente o que todos já sabiam?”
A Professora Schmidt guardou seu caderno manchado de tinta e observou os estudantes saindo. Em seus trinta anos de Academia, nunca tinha testemunhado algo tão perturbador: o momento exato em que o preconceito ganhou legitimidade científica.
Marcus foi um dos últimos a sair. Na porta do auditório, olhou para trás uma última vez. Treitschke ainda estava lá, organizando seus papéis com aqueles mesmos gestos precisos, metódicos. O jovem estudante não sabia, mas estava testemunhando o nascimento de algo que mudaria o curso da história – o momento em que o ódio aprendeu a falar a língua da ciência.
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