Olha bem no dicionário e reflita: não há nenhuma palavra com um significado só (Millôr Fernandes)

Colecionador e pesquisador precisam de sorte. Num porão semiabandonado, o filatelista sonha esbarrar no Olho de Boi. Num sebo, soterrado por livros e revistas empoeirados, o pesquisador atento, e bem-aventurado, descobrirá a edição original do Almanhaque 1949, autografada pelo Barão de Itararé. Dentro de uma lata enferrujada, amassada e descartada de Balas Balsâmicas Silva Araújo, o numismata pode encontrar a pataca há muito desejada. Pé de pato, mangalô, três vezes. Salve o pé de coelho!

Imaginem então a excitação do jornalista, escritor e pesquisador Thiago Uberreich quando descobriu o conteúdo de um lote de áudios que ganhou de um desconhecido. Eram registros sonoros de transmissões pela TV dos jogos da seleção brasileira na Copa de 70. Estavam no acervo da falecida TV Tupi (canal 6, no Rio de Janeiro) e, há muito, dados como perdidos. A transmissão naquela Copa foi feita por um pool de emissoras, com imagem e locução unificadas. Ali, ao alcance dos tímpanos de Thiago, ressuscitavam Fernando Solera, Geraldo José de Almeida, Walter Abrahão e Oduvaldo Cozzi. Equipe de lordes da voz, antíteses dos esgoeladores sem noção que dominam as narrações de hoje.

A ascensão dos locutores estridentes não é gratuita. Ela se dá no exato momento em que tudo no tecido social parece demandar algazarra e som nas alturas. Desde a praga dos bares aos shows megatônicos nas praias, dos “debates” tóxicos nas redes sociais à prática política. O silêncio, a introspecção, o murmúrio, o papo calmo, viraram esquisitices. Coisa de gente chata.

Com o excesso de ruído, perde-se o espetáculo das vozes ao redor. Drummond conversava com a amendoeira que coloria seu olhar na janela do apartamento em Copacabana. Quantas poesias nasceram desta troca silenciosa? Numa das cenas mais belas da história do cinema, com enorme carga dramática, não há palavras. No final de Eles não usam black tie, os personagens de Gianfrancesco Guarnieri e Fernanda Montenegro catam em silêncio as pedrinhas que vinham misturadas com os grãos de feijão. Tinham acabado de passar por experiências difíceis, traumáticas. Suas expressões mostram cada nervo rompido, cada angústia, cada afirmação de solidariedade. Quem precisava de palavras? The sounds of silence.

Certa vez, perguntaram ao José Saramago o que achava da morte de palavras, aquelas que desaparecem pelo desuso. Respondeu lamentando-se e projetando um futuro em que nos comunicaremos por monossílabos. O empobrecimento vocabular acentua-se com a linguagem telegráfica das mensagens eletrônicas e o tombo na leitura de livros. Este tipo de silêncio destrói conteúdos.

Há vozes sufocadas, muitos pedidos de socorro que caem no vazio. As populações periféricas nas grandes cidades não conseguem interlocução para agregar vozes à luta permanente contra violências identificadas e toleradas. Moradora do Complexo da Maré, conjunto de favelas na Zona Norte do Rio, descreve sua infância com trilha sonora de tiros e gritos. “Cresci achando que o mundo era assim. Que era normal ter tiro toda hora. Aqui na Maré a gente conhece a maldade cedo”. E vai seguindo a procissão, a cidade barulhenta, surda às vozes de seus filhos persistentes.

Como Thiago, eu gostaria de recuperar vozes do passado. Melhor dizendo, uma voz. No Bar Mitzva, o Menino discursou por cercaintimidade de 15 minutos. Texto decorado depois de meses de ensaios. Escrito em ídish, idioma com o qual tinha pouca . O Grande, enfatiotado e cabelo reco fazendo dupla com o Menino, segurou o microfone e lascou: “Manda brasa!”. A coisa foi toda gravada, mas a expressão robertocarlista acabou cortada na edição final. Tantos anos depois, eu queria ouvir novamente o Zissinho sair do sério por breves segundos e me animar daquele jeito. Se pudesse, eu pediria que, depois, ele largasse o microfone e me abraçasse. Em silêncio cúmplice. Faria muita diferença.

Abraço. E coragem.