Assisti recentemente os dois primeiros episódios do documentário Folha Corrida, que tem na direção e equipe de pesquisa/apoio os queridos irmãos Chaim e Rachmiel Litewski. O tema é a colaboração do Grupo Folha com a repressão durante a ditadura civil-militar instalada em 1964. O Ministério Público Federal abriu inquérito que analisará a responsabilização do grupo em violações dos direitos humanos cometidas no período 1964-1985.
Assinante da Folha de São Paulo há mais de trinta anos, resolvi aproveitar o gancho para refletir sobre o papel geral da imprensa na implantação e consolidação da ditadura. Como cauda do cometa, dou uma espiada nas reiteradas acusações de golpismo que determinados setores lançam sobre a Folha. Como a acusação é genérica, suponho que este golpismo refira-se aos dias que correm.
Parto de uma premissa: abandonem-se as ilusões sobre a imprensa na sociedade capitalista. Sem duvidar da integridade e da competência de muitos jornalistas aqui e alhures, que têm minha admiração e respeito, os objetivos de jornais e grupos de comunicação não são diferentes dos de qualquer empresa privada. Os proprietários visam o lucro, vivem da exploração de mais-valia e defendem, com estratégias mutantes e linguagem adaptável, os interesses da classe dominante. Noves fora, este é o resumo da ópera.
Isto posto, vejamos o que disse a mídia impressa na alvorada da ditadura. O Globo, entre 2 e 4 de abril de 1964: “Ressurge a democracia! Vive a nação dias gloriosos”, “Salvos da comunização que celeremente se preparava, os brasileiros devem agradecer aos bravos militares que os protegeram de seus inimigos”, “Fugiu Goulart e a democracia está sendo restaurada, atendendo aos anseios nacionais de paz, tranquilidade e progresso”. Correio da Manhã, 31 de março e 1 de abril: “Basta! Fora! Só há uma coisa a dizer ao senhor João Goulart: saia!”. Tribuna da Imprensa, 2 de abril: “Escorraçado, amordaçado e acovardado, deixou o poder como imperativo de legítima vontade popular o Sr João Belchior Marques Goulart, infame líder dos comuno-carreiristas-negocistas-sindicalistas”. Jornal do Brasil, 1 de abril: “Desde ontem se instalou no País a verdadeira legalidade”.
O que pensava O Estado de São Paulo, jornal que representava as elites quatrocentonas da pauliceia desvairada? Júlio de Mesquita Filho, dono do jornal, propôs a dissolução do Poder Legislativo em todos os níveis, a anulação dos mandatos dos governadores e prefeitos e a suspensão do habeas corpus. Perfil e sombra dos “democratas” dantanho. Mesquita, Marinho, Nascimento Brito e outros “empresários da notícia” afinados aos interesses burgueses ameaçados pelas tímidas reformas do governo João Goulart.
Indo para a Folha de São Paulo. Eu a leio desde os anos 70, quando o regime exercia draconiano poder de censura e coerção. Ao longo de todos estes anos, o jornal não foi uma linha reta. Fez coberturas importantes no assassinato do jornalista Vladimir Herzog (quadro do PCB, morto sob tortura nas dependências do DOI-CODI), na campanha pelas Diretas e no atentado do Riocentro. Acho que a direção percebeu, nestes dois últimos casos, o aroma de mudanças no ambiente político. A ditadura dava sinais de esgotamento, a linha do jornal acompanhou esta percepção, em benefício dos que lutávamos pelo fim do regime.
É importante lembrar alguns dos jornalistas/colaboradores que passaram pela Folha e lhe deram uma personalidade sem equivalente na imprensa brasileira. Alberto Dines, Claudio Abramo, Newton Rodrigues, Jânio de Freitas, Carlos Heitor Cony, Otto Lara Resende, Isac Akcelrud, Lourenço Diaféria, Ricardo Kotscho, Florestan Fernandes, Marcelo Coelho, Aloysio Biondi, Vladimir Safatle: globetrotters do ofício. Como registro adicional, lembro de uma série de matérias que o Eduardo Suplicy escreveu sobre a China, numa época em que isso podia resultar numa visitinha noturna de agentes do DOPS.
Dando um salto para o presente, o jornal desidratou e perdeu muito do peso que tinha, especialmente nas seções de economia e política. Apesar disso, mantém uma equipe respeitável, que, como leitor e atento observador de coisas e loisas, não posso prescindir. Ruy Castro, Alvaro Costa e Silva, Mariliz Pereira Jorge, Drauzio Varella, Mario Sergio Conti, Thiago Amparo, Vera Iaconelli, Antonio Prata, Muniz Sodré, Juca Kfouri, Tostão, Conrado Hübner Mendes, Laerte, Jean Galvão e Bennett (cartunistas), ensaios do caderno Ilustríssima. Fora esses e alguns colaboradores eventuais, há o João Pereira Coutinho, um liberal inteligente, com quem mantenho diálogo silencioso em torno de muitas divergências. Sobre ele, que não apela para ofensas, usa bons argumentos e tem muito bom-humor, vai uma observação. Acho mutilante ler apenas os que, a priori, pensam como nós. É a tal da bolha, que, no fundo, funciona como espelho narcísico e ignora a mais rica das tradições da esquerda: o diálogo com os contrários. Marx debatia com Bruno Bauer, Engels enriqueceu seu tempo contestando Dühring, Leandro Konder propôs conversa com Mário Henrique Simonsen.
Não leio “a” Folha, mas artigos, reportagens e colunas da Folha. Como acredito que fazem todos os leitores de qualquer jornal. E aqui chego à acusação recorrente que mencionei no início. Seria o jornal da família Frias um órgão a favor do golpismo (assim mesmo, genérico, atemporal, que é como aparece nos dedos apontados)? Estaria ombreado, por exemplo, à estrutura recém desarticulada que tentou impedir a posse de Lula em 2023 e implantar uma nova ditadura? A alegação dos acusadores é de que isso fica claro nos editoriais e, adicionalmente, numa cobertura enviesada por supostos apoios velados ao bolsonarismo (as entrevistas com o JMB e Carla Zambelli o “demonstrariam”).
Confesso, mea maxima culpa, que não costumo ler os editoriais da Folha. No entanto, aqueles que li mostram uma oposição antipetista, que se manifesta em críticas a programas econômicos e escolhas políticas, mas não estimula, promove ou defende golpe para derrubar governo (como no caso clássico, já mencionado, do Correio da Manhã, em março/abril de 64). Alguma surpresa? Só para ingênuos.
Por outro lado, o jornal publica uma imensa diversidade de opiniões sobre a conjuntura político-econômica nacional. Dezenas delas claramente antigolpistas e com chamada de capa. Cito, pela contundência, o artigo Biblioteca oficial do crime bolsonarista, do dia 3 de abril passado, assinado por Conrado Hübner Mendes (professor da USP, doutor em direito e ciência política e membro da SBPC). Esta diversidade, longe de ser tóxica, é estimulante. Ler não é aderir, pensar não é concordar. Em tempo: achei ótima a ideia de entrevistar JMB e a Zambelli. Com perguntas pertinentes, o jornal desnudou com elegância estes personagens pérfidos. Quando se quer matar um vampiro, joga-se luz sobre ele.
Há um outro detalhe, nada irrelevante. Qual seria a atitude de jornalistas experientes e nada conservadores se percebessem que o jornal colabora para derrubar governo? Fariam voto de silêncio? Participariam, “vendidos” e na calada da noite, da conspiração para quebra da legalidade? Imagino a cena surrealista de gente como Mario Sergio Conti e Alvaro Costa e Silva, iluminados por lampiões trêmulos, esfregando as mãos e passando o pano para bacanais golpistas. A coisa é tão verossímil quanto acreditar que Eurico Miranda não passava de um rubro-negro infiltrado nas hostes vascaínas.
Acho que a ditadura deixou um rastro de intolerância no convívio com as diferenças. Isso é agravado com a lógica das redes sociais. Vejo em setores da esquerda uma reação pavloviana quando esbarra em posições/opiniões divergentes. Atira-se de imediato e sem delongas, com evidente fragilidade conceitual, os rótulos de “golpismo” e “fascismo”. A generalização, como sempre, esvazia o sentido destas palavras. Claro que existem fascistas e golpistas, o combate a eles deve ser implacável. É preciso, entretanto, identificá-los e diferenciá-los dos adversários conservadores. Sob pena de se montar uma estratégia equivocada para enfrentá-los.
Abraço. E coragem.