Hoje é um dia de coincidências desconfortáveis. Em 31 de março de 1685, nascia em Eisenach, Alemanha, um dos maiores gênios de todos os tempos. Johann Sebastian Bach atravessa os séculos desconcertando, surpreendendo, convocando. Certa vez, um confrade ateu disse que, se deus existisse, sua voz seria uma melodia de Bach. Vou mais longe. O grande mestre escreveu muitas peças com temas religiosos, de inspiração cristã. Pois ouvi-las e incorporá-las independe das convicções religiosas/ateias do ouvinte. Experimente ouvir a ária Erbarme dich mein Gott, da Paixão Segundo São Mateus. O diálogo voz humana – violino que lá aparece atinge uma dimensão sublime, difícil de rotular, difícil de desgrudar. Dá algum sentido ao tempo de viver.
Duzentos e setenta e nove anos depois do nascimento de Bach, no mesmo 31 de março, uma conspiração vitoriosa iniciou no Brasil uma ditadura que durou 21 anos. Classe média reacionária, burguesia e imprensa golpistas, e militares que vomitaram sobre suas atribuições constitucionais depuseram o governo democrático de João Goulart e submeteram o país a toda sorte de arbítrio: censura, perseguição política, assassinato de dissidentes, cancelamento de eleições, extinção de partidos políticos, vigilância policial em sindicatos e organizações populares, intimidação nos meios acadêmicos.
Ainda hoje, tem gente ignorante ou de má-fé que fala em “contrarrevolução” e aponta o dedo-duro para Jango, chamando-o de “comunista”. Logo ele, próspero estancieiro gaúcho, quadro histórico do PTB, partido reformista criado por Getúlio para minar a influência da esquerda revolucionária sobre as massas. A verdade é que defender, como Jango o fez, a reforma agrária (democratizando o acesso à terra), a reforma eleitoral (dando direito de voto aos analfabetos) e a democratização do sistema educacional, era tabu para a classe dominante brasileira, cujo atraso jamais deve ser subestimado. Com providencial apoio material e logístico do imperialismo norte-americano, fartamente documentado, o golpe civil-militar jogou o Brasil nas trevas da ditadura.
Certa vez, meu filho perguntou como era o cotidiano sob o regime dos generais. Senti que ele tinha uma imagem sombria muito abrangente, como se debaixo de cada marquise e tapete, dentro cada latão de lixo e sacola de supermercado, atrás do trio elétrico, tivesse um tira, um milico, um araponga, de tocaia, pronto para distribuir coices e ejacular “teje preso!”. Não era bem assim. A repressão tinha múltiplas faces. Das mais violentas, como a que dizimou, com apetite assassino e sob torturas medievais, a resistência armada antiditatorial, às que se manifestavam sem derramar sangue, como a censura a todos os tipos de manifestação cultural e a perseguição nos locais de trabalho (tenho um amigo que passou em primeiro lugar no concurso para o BNDES e foi descartado por ter “ficha suja” para o padrão brucutu dos meganhas). No entanto, não bastava sair à rua para ser algemado. Os tentáculos do Estado autoritário eram assustadores porque, muitas vezes, invisíveis, e sempre irrecorríveis.
Comecei a faculdade na Ilha do Fundão poucos meses depois da promulgação do infame Ato Institucional número 5, em 13 de dezembro de 1968, que fechou de vez o regime. No primeiro semestre de 1969, a ilha era frequentemente invadida por militares, que cercavam o Bandejão, formavam o chamado corredor polonês e exigiam documentos de nós, frangotes aterrorizados pelos covardes armados. Os que, por azar, não dispunham de documentação, eram sumariamente levados para camburões. Este foi o clima que vigorou por bastante tempo naquele espaço criado para celebrar a ciência e o conhecimento. Palavras vazias para as nulidades fardadas.
Sessenta e um anos depois do golpe, ainda somos assombrados pelos herdeiros assumidos da aventura protofascista. Descobrimos que nossa luta para derrotar a ditadura não terminou. Usando as palavras do jornalista Bernardo Mello Franco, “a extrema-direita fincou raízes, cresceu e se tornou hegemônica no campo conservador”. O país que imaginávamos construir, mais solidário e menos injusto, ainda é uma miragem remota, cercada por resistências ferozes e nostálgicos de cadeiras do dragão.
Lembrar do que aconteceu em 1964 é importante como polimento da memória histórica e alerta para a geração que está chegando. Hoje, no entanto, vou dar-me o direito de viajar para 1685, olhar para o outro 31 de março, e celebrar o gênio que nos torna mais humanos. Vou ouvir o CD (!) com as Variações Goldberg, interpretadas pelo pianista chileno Claudio Arrau, fechar os olhos e imaginar que este mundo ainda tem jeito. Serei, por breves momentos, aquele sobre o qual disse Maiakovski: “Dizem que, em algum lugar, parece que no Brasil, existe um homem feliz”.
Abraço. E coragem.