Não é segredo./Somos feitos de pó, vaidade,/E muito medo. (Millôr Fernandes)

Foi puro acidente. Procurava alguma novidade na plataforma de filmes quando esbarrei na série britânica “Adolescência”. Não tinha referências sobre ela, desconhecia atores e diretor, o trailer não foi especialmente animador. Resolvi arriscar. O impacto da história é avassalador. Vai muito além dos limites da sequência dos fatos e transita para questões universais. É material farto para uma boa conversa, e muitos sustos. Não darei spoilers.

Para início de conversa, esqueça clichês hollywoodianos. Não há heróis e vilões e, neste sentido, a série reproduz à perfeição a fase adolescente de todos nós. É uma etapa turbulenta, que traduz no terreno pessoal o que Gramsci observou na dinâmica da história social: “O velho mundo agoniza, um novo mundo tarda a nascer, e, nesse claro-escuro, irrompem os monstros”. São estas criaturas assustadoras, que lutam para desvencilhar-se dos adultos, relíquias subitamente indesejáveis, mas ainda não construíram novas referências, que coagulam em Jamie, protagonista da série (que ator fantástico está incubado em Owen Cooper!).

Todos já atravessamos este terreno movediço. Com estratégias diferentes, pelejamos contra a solidão e as rejeições, vivenciamos a descoberta de novas sensações no corpo e as inadaptações. Olhando por este lado, o adolescente dos anos 50 não difere do que está nas paradas nos dias que correm. Há, no entanto, elementos novos que potencializam as enormes inseguranças da garotada. Refiro-me aos efeitos das redes sociais no cotidiano. Estamos, afinal, no reino das telas e seus mecanismos de sociabilidade não raro tóxica.

A vergonha que eu, espinhas no rosto e dúvidas na alma, tive ao levar LPs de música clássica para uma festinha dançante (Schubert e Tchaicovsky não tinham culpa de serem os únicos do pobre acervo do Menino) não ultrapassou as paredes de um modesto apartamento na Tijuca. Hoje, eu seria ridicularizado em redes implacáveis, execrado como um sem noção, banido sem direito a recurso de muitos círculos. Os assédios, as crueldades, os ódios, ocupam Maracanãs de audiência e multiplicam a dor que pode ter consequências graves. Quem pode avaliar e julgar os limites dessa dor?

Durante um bom tempo, o Menino em transformação fechava a porta do quarto, bunker batizado de Grumânia, território onde ditava as regras. Na mais absoluta solidão. Faltou ali o que percebo faltar em muitos ambientes familiares: diálogo, percepção do Outro, quebra de hierarquia. Hoje, é muito comum terceirizar-se a comunicação. O Outro é uma tela, turbinada pela última e sedutora tecnologia. As consequências já estão em curso. É uma doença que se instala aos poucos e tem a cumplicidade de adultos que renunciam ao dever de orientar e, se necessário, divergir/confrontar.

Pesquisa recente feita pela Fiocruz mostrou que, entre 2000 e 2022, houve, no Brasil, uma aceleração da taxa de suicídio entre as pessoas de 10 a 19 anos. Claro que há múltiplos fatores que determinam esta tendência, não sou tolo de simplificar uma questão cabeluda. Suspeito, entretanto, que, por trás dela, há uma espécie de crise de solidão e indisponibilidade para o diálogo. Num mundo acelerado, a pausa para as trocas afetivas vira vertigem. O poeta Paul Valéry viajou profeticamente quando disse (no início do século vinte!) que “o ser humano atual não cultiva nada que não se possa abreviar”.

No início afirmei que não daria spoilers. Vou quebrar um tantinho esta promessa. Já na curva final da série, pai e filho conversam mediados pelo celular. De repente, o pai solta a palavra “filho”. Sai sem perceber. Há um silêncio do outro lado da linha. Ao quebrá-lo, o filho diz (a imagem não aparece, mas acho que ele devia estar cabisbaixo) “você nunca tinha me chamado desta maneira”. Os minutos seguintes são dilacerantes, transformadores. Eu me pergunto: quantos destinos seriam alterados por uma palavra afetuosa, que não fosse apenas insinuada, mas dita como oferta de abraço e atenção? Há, no ar, um permanente pedido de socorro, que poderia ser sintetizado por um trecho da ópera-rock Tommy (interpretação antológica do The Who, em Woosdstock): See me/Feel me/Touch me/Heal me.

Não percam “Adolescência”.

Abraço. E coragem.