Erico escreveu que seu amigo mais íntimo é o que ele vê todas as manhãs no espelho do quarto de banho. É quando ele se barbeia e estabelece diálogos mudos, construindo uma conversa que se parece a sonhos noturnos, pois se processa fora do tempo e do espaço. Se sente acanhado e desconfortável com alguém que conhece tão bem seus segredos e fraquezas. O espelho não mente, logo, se teme enfrentar o olhar que vem dele. Entretanto, estão habituados um ao outro – “envelhecemos juntos”, escreveu Erico. Essa confissão está na abertura do seu livro autobiográfico “Solo de Clarineta”, e mais para o final do primeiro volume o escritor que se definia como contador de histórias descreve seu primeiro encontro com o futuro amigo Maurício Rosenblat. Ambos, no final da adolescência, conversam num campo de futebol como expectadores de uma partida. Maurício sabia que Erico escrevia e gostava muito de livros como ele. O amigo de toda vida do Erico foi indicado por ele para trabalhar na editora Globo, onde fez boa parte de sua fama. Todo sábado à noite o casal Rosenblat abria as portas de sua casa para escritores e artistas. Lembro do Moacyr Scliar comentando com alegria uma dessas festas. O amigo é o melhor espelho, aproveita a parceria e não critica muito um ou outro desequilíbrio. Sinto alegria em trazer esse tempo passado, aliás, é no tempo que os amigos mudam, os amigos se separam, se estranham, se desentendem, se amam. As amizades são essenciais, e uma vida sem amigos é uma vida triste e sofrida.
Poucas coisas na vida são mais misteriosas do que a gente, quem é cada um além da carteira de identidade. Como o ser humano vai mudando a forma de se ver, as verdades familiares, bem como seus mitos. Quantas formas diferentes de pensar sobre si, quantos encontros e desencontros, fracassos e sucessos, amigos e inimigos. Somos constituídos de pedaços costurados, escreveu Montaigne. Penso que há pedaços bem costurados, mas há outros que destoam, estão mal arrematados, revelam sintomas que nos constituem, como ocorre na fase do espelho. Aliás o espelho tem alma escreveu Guimarães Rosa no seu conto “O espelho”.
O espelho é um objeto sem vida, que reflete a imagem de quem nele se mira, logo é um paradoxo escrever que o espelho tem alma. Porém, ao longo da história o espelho foi sempre temido, como se tivesse vida própria. Algumas crenças advertem o quanto é perigoso alguém se ver no espelho à noite nas encruzilhadas ou na casa de um morto, tanto que se cobrem os espelhos da casa em que se vela o defunto. Algum dia a atração milenar do espelho teria que buscar uma explicação diante da sedução e do terror.
Coube ao psicanalista Jacques Lacan, em 1936 e depois em 1949, escrever sobre a fase do espelho na criança. Dos seis meses aos dezoito essa fase é a porta de entrada para se entender alguns dos mistérios do ser humano. As vivências precoces desses tempos ficam marcadas no inconsciente – as marcas mnêmicas – de como cada um foi amado, desejado pelo outro. O narcisismo nasce durante essa fase essencial na vida da gente. A gente cresce, amadurece, mas restam sempre tensões do quanto o outro ama a gente, ou odeia. Sêneca escreveu: “Perguntas-me qual foi meu maior progresso? Comecei a ser amigo de mim mesmo”. Sempre convém se perguntar o quanto a gente é amigo de si mesmo. Uma forma de se avaliar é o quanto já se fez as pazes com os pais, bem como consigo mesmo. A outra é seguir os poetas que tanto escreveram sobre o tempo, e de como o essencial na vida é o quanto cada dia é uma oportunidade para olhar a vida com sensibilidade e gratidão.
Recentemente, conversei sobre o amigo íntimo do Erico Verissimo com um amigo e colega, que disse: “E o inimigo íntimo?”. Respondi: “Boa pergunta, é assim que se faz uma análise”, portanto benvindo os inimigos íntimos, são sempre desafios a enfrentar.