O documentarista chileno Patricio Guzmán produziu uma pequena obra-prima ambientada no deserto do Atacama. Em Nostalgia da luz, ele movimenta o olhar para o alto e para baixo. Acima, devido ao ar despoluído, está uma das imagens mais amplas e claras do céu, que permite observação cósmica sem paralelo. É no Atacama que estão alguns dos mais potentes telescópios do planeta, visitados por pesquisadores de todo canto em busca de pistas sobre mistérios, belezas e assombros. Entre eles, a origem do universo.

Depois de registrar estas maravilhas do engenho humano, Guzmán muda o ângulo para baixo e mostra silhuetas encurvadas, raspando o chão árido. O que faziam aqueles espectros? O que buscavam? A resposta é terrível. Durante a ditadura Pinochet, centenas ou milhares de presos políticos foram assassinados, seus corpos despedaçados e fragmentos de ossos espalhados pelo deserto. Mulheres ligadas aos presos tentavam localizar, com ferramentas rudimentares, estes fragmentos, que poderiam sugerir valas comuns. Fizeram isso durante anos. Impressionantes seus rostos tristes, sua perseverança sobre-humana, sua esperança dilacerante.

Andei pensando (faço isso de vez em quando…). O contraste flagrado por Guzmán (cujo antológico A batalha do Chile é uma lição política seminal), o sublime em contato íntimo com o sórdido, é o caldo nutritivo de nosotros viventes. É como caminhar em êxtase pela pista Cláudio Coutinho, na Praia Vermelha, e, na saída, esbarrar nos banidos da sociedade, esparramados pelas calçadas, sem esperança e ignorados por quem passa. O conjunto é inseparável.

Não digo desde os cueiros, mas desde muito cedo acreditei que a trajetória humana seria uma escalada rumo à Razão e ao aperfeiçoamento da política, do homem como animal político. Uma construção em escala sempre ascendente (com os solavancos presumíveis). Permaneço fiel, em grandes traços, a este desenho, mas o Fradinho sacana que habita minhas entranhas anda puxando-me as orelhas. Ajusta aí o foco, perceba a loucura!

Vamos lá. Guerras cada vez mais letais espalham-se, começa uma nova corrida armamentista com aroma nuclear, a fome não para de crescer, doenças preveníveis estão voltando amparadas por negacionismos de coturno variado, crises humanitárias de todo tipo açoitam milhões, preconceitos vestem fantasia respeitável. O quadro dantesco, entretanto, não tira o sono de um mundão de gente, aquela que está no que Elio Gaspari chama de “andar de cima”. A obscena distribuição de riqueza no planeta, que não mudará pacificamente, gera bolhas de consumo ostentatório e cenas francamente ofensivas.

Um anúncio no jornal divulga o Dinner in the Sky. Os abonados farão uma refeição nas alturas, pendurados num guindaste, que transformará a simples forragem do estômago, o rango saciador, numa “experiência”. Claro, acompanhada de imagens para acariciar o infinito narcisismo de quem já não sabe onde gastar fortunas e orbita seus próprios umbigos.

Novos modelos de celulares (o último multiplica a tela original por três) agravam a dependência generalizada de telas. Os brasileiros são campeões neste vício. Passam, em média, mais de 9 horas diárias na internet (um terço disso em redes sociais). A sociedade passou a girar em torno destas geringonças. Pesquisa recente mostrou que, no mundo, pais consultam em média 70 vezes os celulares durante o tempo de convívio com familiares, interrompendo dois terços das interações. É uma imensa válvula de sucção que prejudica a qualidade dos relacionamentos e multiplica solidões.

Uma amiga, que convive com muitos pais de adolescentes, contou o seguinte. Nas festas eles acabam entrando em estado de grande ansiedade. Sabem por quê? Fora do contato virtual pelas telas, olho no olho, ficam sem ter o que falar. Sem o amparo de memes, emojis, réplicas de futilidades, são forçados a olhar o Outro sem filtro. Pelo que ouvi, a experiência é, não raro, aflitiva, e pode derivar em aumento de consumo de álcool para aliviar a tensão.

No ritmo que a banda está tocando, talvez não precisemos esperar que um asteroide gigante, rocha peregrina, colida com a Terra e nos leve à breca. Consta que os gregos antigos, sempre eles, afirmaram que os deuses primeiro enlouquecem aqueles a quem querem destruir. Daí então, dar-te eu irei… Desculpem, contrabando do Sinhô. Voltando. Daí então, a Razão fará uma mesura, dará um triplo carpado e acabará em cortejo febril no Irajá. Junto com toda a Humanidade.

Abraço. E, apesar de tudo, coragem.