Volto a este espaço antes do que esperava. A tempo de dividir com vocês algumas observações sobre o que acaba de acontecer com o filme Ainda estou aqui. Sei que pode parecer um assunto meio ultrapassado, a gente vive num mundinho acelerado, tudo é fluido, acontece e desacontece em ondas de zás-trás. O que parece hoje ser perene, amanhã submergirá em camadas pré-históricas. A fila galopa.
Antes de qualquer consideração, e para evitar mal-entendidos, registro nos autos que assisti o filme e gostei dele em bloco. Não tenho condições de comparar, nem quero, atuações e detalhes técnicos com filmes que não vi (todos os demais indicados ao Oscar) e, por isso, dispenso as claques que se formaram para acompanhar o tribunal do big business cinematográfico. Ainda estou aqui, esse é seu grande mérito e é isso que me interessa, conta uma história do Brasil sórdido que desmentiu a falácia do “brasileiro cordial” e feriu duramente minha geração. Isso é muito poderoso, como foi também, por exemplo, Uma noite de doze anos, sobre prisioneiros tupamaros durante a ditadura civil-militar uruguaia (1973/85).
Isto posto, prestei atenção na excelente entrevista que Walter Salles e Fernanda Torres deram à jornalista Christiane Amanpour, da rede CNN. Fernanda destaca o público imenso que foi ao cinema (5 milhões de espectadores, um prodígio na era dos streamings) e está convencida de que todos, não importando suas posições ideológicas, saíram convencidos de que as situações que o filme retrata são inaceitáveis. Ela atribui, por consequência, um papel pedagógico instantâneo às imagens. Gostaria de ter esta certeza.
Cacá Diegues, cineasta morto recentemente, dizia que, na alvorada do Cinema Novo, sua geração tinha a pretensão de, através das imagens, mudar a história do cinema, mudar a realidade brasileira e mudar o mundo. Sonhos generosos, que a vida entortou. Já perto da morte, Cacá tinha olhar diferente: “Um filme não muda nada. Ele não é uma arma para mudar o mundo. É uma forma de pensar o mundo de outra maneira, de provocar pensamentos mais originais”. Tendo a concordar com ele.
É ótimo que uma baita atriz como a Fernanda Torres seja celebrada de muitas formas. É o reconhecimento do valor da arte. Há, no entanto, um outro aspecto, muito bem traduzido pelas torcidas que se formaram para a premiação do Oscar. Não creio que elas se pautaram, ao menos em grande parte, pela reintrodução na agenda nacional do tema dos desaparecidos durante a ditadura civil-militar. Seria esperar demais de um país que convive, indiferente, com a impunidade de torturadores e assassinos ligados ao aparelho de Estado, que elegeu um presidente que os exaltava. A grande expectativa das arquibancadas virtuais eufóricas era, isto sim, o desejo de “lavar a alma” no núcleo duro da matriz cinematográfica mundial.
Evidente que não nego a importância de relatar o caso do Rubens Paiva e as consequências de seus sequestro e morte sobre a família. É o microcosmo do clima de medo, insegurança, terror, que vivíamos sob as botas militares e seu braço civil. Saber disso, entretanto, é necessário mas não suficiente para mobilizar a sociedade contra novas aventuras ditatoriais. Há mediações complexas entre imagem, consciência e ativismo.
É longo e imprevisível o caminho para a formação de uma consciência política que seja agente de transformações reais. Ele transcende filmes e atores. Os operadores da política (partidos, sindicatos, todos os tipos de associação) têm em Ainda estou aqui uma ferramenta disponível para ajudar na construção de uma memória coletiva libertária. Que se apropriem dela, criativamente. Que a história, tal como acontece com o personagem Tom Baxter no filme A Rosa Púrpura do Cairo, saia da tela, da imagem projetada, e dialogue com seu grande protagonista: o povo brasileiro.
Abraço. E coragem.
Jacques
Em tempo: Já que falei em valor da arte, reproduzo trecho do artigo da Dorrit Harrazim, publicado no dia 2 de março passado. Ela fala da brutal intervenção de Donald Trump sobre o John Kennedy Center for the Performing Arts. Deborah Rutter, sumariamente defenestrada pelo Laranjão, comentou na despedida: “Artistas mostram a gama de emoções da vida – as maiores alturas da alegria e as profundezas do desespero. Eles seguram um espelho para o mundo, refletindo quem somos e ecoando nossas histórias. O trabalho deles nem sempre nos faz sentir confortáveis, mas lança luz sobre a verdade”.